sexta-feira, 28 de junho de 2019

Bom gosto, bom senso, letargia…



Mais palavras para quê? Tudo é dito e bem, mas como esculturas de areia que o mar desfaz, ou castelos de cartas que um sopro derreia. Num país de inconsciência, de medonha inaptidão, sem mais “restauração” que não seja a dos sabores gustativos, que os écrans reproduzem. Para amortecer.
CRÓNICA: Que fica do que passa? Nada? (E duas notas) /premium
MARIA JOÃO AVILLEZ    OBSERVADOR, 19/6/2019
Que foi preciso ir acontecendo de tão sulfúrico no país para ocorrer uma demissão da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsabilidade, desta envergadura?
1. Há poucas semanas a atenção global estacionou por uma tarde nas chamas de Notre Dame, em Paris. Um coro de pena e lamentos embora hoje, seja já com um desinteresse distraído que vagamente se ouve dizer que “houve uma missa” ou que alguém sugeriu “colocar uma piscina” no ex-tecto da Catedral, quando se iniciar a reconstrução. E há dias, a atenção do país – instituições, escritores, políticos, literatos, amigos próximos, longínquos, povo, mirones, media — fixou-se na despedida de Agustina Bessa Luís. Brevemente: quando no dia seguinte, por sugestão desinteressada mas inteligente de alguém, propus a um meio de comunicação social a publicação de um quase desconhecido texto da escritora, a resposta foi “ah mas agora já não vai ‘dar’, estamos com os 30 anos de Tienamen”, e era verdade: estavam todos na China.
2. Se apenas há força convocatória no célere momento conhecido por actualidade — mas logo enxotado para fora do écran e da vida, porque essa é a regra — a quem interessa o que conta? A quem interessará de facto esta incerta paisagem nossa, humana, política, económica, social, fora do reduto dos “paisagistas” dela encarregues? Que fica deste borbulhante entra-e-sai, como no carrossel das feiras para além de mentes desapossadas? Nada? Que se guarda dos que morrem, sempre heróis com glória e sem mácula — nenhuma mácula — no dia em que partem, embora nos dias seguintes, tempos depois, anos depois, ninguém lhes evoque nem nome, nem legado? E que se retém do que seria obrigatório reter e as coisas da vida servirem de facto para alguma coisa em ver de se dissolverem pelos ares e pelos ventos?
3. Como quase toda a gente pelei-me pela vitória de Portugal na Taça das Nações-excelente jogo, óptimo ritmo, o nosso onze muito concertado. Mas como em um daqueles não anunciados furacões, fiquei aturdida com o “depois”: recitações gloriosas, incessantes evocações patrióticas, louvores, bandeiras, hinos e o nome de Portugal declinado em todos os tons, por entre o elogio ditirâmbico e a lágrima — lágrimas verdadeiras. Não é novo nem de hoje, dirão, mas nessa noite, depois de felicitar Fernando Santos, deu-me para prestar boa atenção ao que vi e ouvi aos portugueses. E foi mau e foi pena. Caramba: que foi preciso acontecer – ir acontecendo — de tão sulfúrico no país para ocorrer uma demissão da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsablidade, desta envergadura? Que soma de erros, faltas e omissões se conjugou entre dirigentes, educadores, pensadores, governantes, para obter tão devastadoras consequências? Para só trinta por cento dos portugueses ter achado a “Europa” merecedora de uma deslocação às urnas, mas mais do dobro ter confundido a pátria com um golo e um voto com uma chatice? Onde se vê em Portugal – e aplicado a quê? — este mesmo ímpeto, fornecimento de energia, disponibilidade grátis, rendição voluntária e orgulho sem dique a controlá-lo, que observei a saída do estádio naquela noite? Quantos daqueles espectadores — prontos para tudo em nome de golos, livres e cantos — eram capazes de um esforço pela sua comunidade, um voluntariado que integrasse ou acolhesse, colaborações em zonas, bairros, escolas, museus? De uma intervenção cívica séria em nome desse país que tanto os embriaga e solicita nos relvados, mas parece que apenas só nos relvados? Haveria certamente muito pasmo ao simples enunciado de algumas destas digamos, solicitações, e temo que a poucos ocorra pôr a render energias e disponibilidades para além de “servir “o futebol com a mesmíssima energia e a mesmíssima disponibilidade.
4. Deu enfim que pensar aquele espectáculo ao vivo e em directo de pura apologia da menorização. Sim, mesmo se o país assiste (consolado) àquilo todos os dias, espanta-me que poucos se desconsolem com os consolados. Apetece perguntar sem ofender: aquela (tanta) gente, para além “daquilo”, é capaz de quê? E que fica do que se passa: alguma reflexão, algum alerta, alguma ideia?
5. Nota um: ainda João Miguel Tavares? Ainda: muito mais do que o que ele disse – muitas vezes tão capturado por uma aguda fulanização… — interpelou-me a absoluta novidade de ter sido alguém como ele a dizê-lo. Alguém de fora dos autorizados oficiais. Outra geração, outro tom, outros interesses, outros objectivos. Outro “ver”. E depois que se discuta. E uma liberdade já não condicionada por várias “obrigações” (escolho uma: dizer e ensinar que se deve ter vergonha de oito séculos de caminho até Abril de 1974 e ensinar e dizer que a seguir, todos os amanhãs cantaram. E cantam).
6. Nota dois: e agora o resto, que é muito: não se pode ter a ingenuidade de ignorar, disfarçar ou fazer de conta que João Miguel Tavares não fez um arranjão a Marcelo. Fez: disse em voz alta e com audiência nacional o que ele, Marcelo, não quer, não pode ou não ousa dizer (mas obviamente pensa e quer que se diga). E não por acaso, quis “isto” em ano de eleições e a três meses da sua realização. Com a direita moribunda mas um Presidente tão metediço noutros (alheios) poderes, um dia a esquerda acordará com mau sabor na boca.
COMENTÁRIOS
kringa gomes: Belíssimo artigo! Subscrevo cada comentário nele contido. Os portugueses só chegarão, talvez, a saber o país em que vivem quando restar apenas o que é relatado no artigo: futebol, falsas emoções, nada que mereça crédito, total instabilidade, medo e a covardia e servilismo que vai caracterizando  a sociedade que alastra entre nós. Lá para o Natal é bem provável que tudo esteja clarificado. Até o tempo.
Pedro J.: Os bons fogem, desistem disto. O que sobra é uma manada ordeira e uns oportunistas espertos. Alguns dos quais no poder. "É o sistema", como dizia o saudoso gestor que tentou gerir o Sporting até perceber o pântano do futebol nacional, tão semelhante ao da política, que nem se percebe quem aprende com quem.
Maria José Melo: ... não se pode ter a ingenuidade de ignorar, disfarçar ou fazer de conta que João Miguel Tavares não fez um arranjão a Marcelo. Fez: disse em voz alta e com audiência nacional o que ele, Marcelo, não quer, não pode ou não ousa dizer (mas obviamente pensa e quer que se diga). E não por acaso, quis “isto” em ano de eleições e a três meses da sua realização. ‘ Ora aí está! Houve um propósito na escolha de JMT.
francisco oliveira: Há 40 anos vivíamos numa ditadura do PCP, hoje numa ditadura "democrática". O chamado povo continua amorfo, apático, ignorante. A juventude ignora a politica e os chamados políticos. A UE controlada por mãos invisíveis arrastam-nos para futuro incerto desprezando a Historia , culturas, querer apagar a raiz religiosa judaico-cristã. A mediocridade e o polvo estimulam-se mutuamente. Os milhões da Bruxelas, mal geridos servem para alimentar as Offshore e anestesiar o povo. Pelo andar da carruagem, o futuro prevê-se ainda mais brilhante. O forró continua e o povo vai aplaudindo!
Fernando Bernardo: O futuro quer lá saber de enfadonhas notícias. Nenhuma criança ou adolescente quer saber desse género do que se passa assim. E no entanto todos acarretam a nossa história e são o nosso futuro.
Tiago Manso: Obrigado pelo texto. Brilhante a nota 2.
Ana Ferreira: Poucos tiveram a coragem de classificar o contrário daquilo que defendem como sulfúrico, mas enfim, sempre chega o dia em que as máscaras caem, nem que seja por já não se ter travões.
Pérolas a porcos: "Que foi preciso ir acontecendo de tão sulfúrico no país para ocorrer uma demissão da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsabilidade, desta envergadura?" O PREC, que continua...!
Madalena Magalhães Colaço: Nos seus escritos sobre o Salon em Paris Emile Zola dava nota que todos, desde a duquesa ao homem do talho faziam fila para visitar as obras expostas. Esse hábito ficou de tal maneira enraizado que não é só a dita "elite" que frequenta galerias e museus, mas todos se interessam. Há uns meses no museu judaico em Paris a  exposição de Freud era acompanhada por várias conferências, que eram à noite durante a semana, e mesmo assim dias antes já era impossível a inscrição, não consegui assistir "A influência do judaísmo na psicanálise", com grande pena. Da biblioteca de França (BnF), a tantos outros museus menos conhecidos, a programação e exposições são estimulantes e o público adere em massa. Na televisão os economistas estão longe de dominar o debate, e convidam-se historiadores, filósofos, geógrafos ... Em Portugal, programas como a de Ana Sousa Dias, na RTP, que entrevistava todos que para ela tinham algum interesse cultural  desapareceram por completo. Só futebol e  política que na semana seguinte esquecemos.

Paulo António: Portugal está a tornar-se um país onde tudo pode acontecer e....os cidadãos não são chamados a nada, nem a esclarecimentos, nem a tomada de decisões. Estão a tornar-nos em "ratinhos da India" como apelidou o governo belga: https://www.leca-palmeira.com/5g-os-ratinhos-da-india-somos-nos/
maria perry: À medida que um país empobrece, a sua população vai ficando cada vez mais atrasada, em todos os aspectos, cultural, poder de compra, valores éticos. Enquanto os outros países crescem e saem do marasmo, Portugal é ao contrário, está a definhar. Não se justifica isto hoje em dia, numa economia global dinâmica, em que os povos vão convergindo para um bem estar melhor, graças também à rejeição das políticas de esquerda. Em Portugal, o PM é uma mente fraca, inebriada pelo poder, dá tudo aos funcionários públicos para que votem nele e não se interessa que o país afunde. O importante é tentar continuar no poder o mais tempo possível.
Pedro Ferreira: Excelente texto, mas o saber dá muito trabalho e não se adquire no écran dos computadores ou dos telemóveis. Os 75% de analfabetismo da pré- república permanecem nos tempos de hoje, com outro nome: iliteracia. A massificação do ensino na escola pública originou esta situação, mas para quem tem os filhos na escola privada tudo vai óptimo. Lembram-se que diziam de Salazar (injustamente) que gostava de um povo inculto, pois o regime democrático alfabetiza para criar imbecis. Como se explica que o povo, em urnas, escolha para líderes cadastrados e vendedores de banha da cobra? Maria João, não digo que seja o caso aqui no "Observador", mas a generalidade das pessoas não consegue entender o seu texto e antes de chegar ao fim já lhes dói a cabeça. Frequento diversos espaços públicos e constato que nem os jornais gratuitos das mesas as pessoas se dão ao trabalho de ler, um povo que não lê e se limita a ver os bonecos e a ouvir os gritos de uma qualquer apresentadora de TV está condenado a ficar estupidificado. O tempo passou, mas o século XIX que o Eça referia ,está cá e em força e por sinal os países mais atrasados da Europa continuam a ser (grosso modo) a Grécia e Portugal.


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