Um acontecimento que amanhã passa o seu ducentésimo
terceiro aniversário, em relato circunstanciado, acompanhado de desenhos e
mapas, revelador de registos fulcrais do declínio de um homem que
fora um excelso protegido das glórias do mundo e a quem as próprias forças
climáticas e as traições dos seus pareceram contrariar então, prova, uma vez mais do "sic transit gloria mundi", irrisório e fatal. Uma leitura de impacto, esta Batalha
de Waterloo, por David Martelo. Do seu blog “A Bigorna”.
18 de Junho de 1815 WATERLOO
18 de Junho de 1815 WATERLOO
Entre
1809 e 1814, no seguimento da 3.ª Invasão Francesa, as forças britânicas,
portuguesas e espanholas, lideradas por Sir Arthur Wellesley – futuro duque de
Wellington – logram sucessivas vitórias sobre o exército gaulês, ainda na
Península Ibérica. Seguidamente, já em território francês, contribuem
decisivamente para a queda de Napoleão Bonaparte. O imperador abdica, em 20 de
Abril de 1814, e parte para o exílio na ilha de Elba. Wellington conseguia,
assim, vergar um dos mais brilhantes generais de todos os tempos, mas sem nunca
ter tido a oportunidade de com ele se confrontar, cara a cara, num campo de
batalha. Mas o destino encarregar-se-ia de, volvidos cerca de 14 meses,
proporcionar esse inesquecível frente-a-frente.
A
26 de Fevereiro de 1815, Napoleão evade-se da ilha de Elba, onde cumpria o
exílio imposto pelas potências vencedoras, e, menos de um mês depois, entra em
Paris. Ao mesmo
tempo que Luís XVIII se põe em fuga, Bonaparte reassume a sua condição
imperial, iniciando os Cem Dias da sua segunda e efémera passagem pelo poder.
Percebendo que os aliados não demorarão a fazer-lhe a guerra, tenta
reorganizar o exército para lhes fazer frente. Embora seja notório o entusiasmo
que a sua reaparição provocara nas fileiras do exército, Napoleão não tarda a
perceber que lhe faltam grandes chefes militares para comandar os corpos de
exército. Dos marechais ainda vivos, o imperador nomeia Davout para as funções
de Ministro da Guerra e Soult para Chefe do Estado-Maior. Com quem mais é que
pode contar? Berthier falecera; Marmont, Gouvion Saint-Cyr, Pérignon, Victor e
MacDonald mantêm-se leais ao rei Luís XVIII; Masséna está demasiado velho;
Mortier encontra-se enfermo; aceita Ney, mas rejeita a oferta de Murat. Com
este panorama, é obrigado a recorrer aos generais-de-divisão que lhe parecem
mais aptos para o comando dos corpos. Apesar de todas estas
dificuldades, Napoleão consegue reunir, em apenas dez semanas, um exército de
124.000 homens. Com esse exército, tirando partido da configuração plana do
território belga, espera poder conduzir uma campanha rápida, que, uma vez
vitoriosa, produza resultados políticos favoráveis.
Os
aliados, por seu turno, contam com um exército angloholandês de 106.000 homens,
directamente sob as ordens de Wellington, que se concentra nas imediações de
Bruxelas. Num movimento convergente, marcham ao encontro deste exército mais
duas outras formações aliadas: os prussianos de Blücher, totalizando 117.000
soldados, e os austríacos de Schwarzenberg, com um efectivo de 210.000 homens,
mas que têm um itinerário mais longo a percorrer para se juntarem aos outros
dois exércitos.
Em
15 de Junho de 1815, o exército napoleónico põe-se em movimento. Procurando
evitar a junção das forças de Blücher com as de Wellington, movimenta-se por
linhas interiores e vai tentar batê-las separadamente.
Quando
a ala esquerda do exército francês, comandada pelo marechal Ney, procura
cumprir a missão de se apoderar do estratégico nó de Quatre-Bras – situado
cerca de 10 km a sul do local da batalha de Waterloo e dominando o eixo Namur-
Bruxelas, itinerário mais curto entre os prussianos e os anglo-holandeses –. vai
encontrar a posição já ocupada por uma brigada do exército de Wellington.
Pensando
que atrás da brigada se encontra todo o exército inimigo, Ney não se atreve a
desencadear uma acção ofensiva em forma, optando por uma atitude prudente de
concentração de todas as suas forças.
A ala direita, sob o comando do marechal Grouchy, empenha-se, em Ligny,
contra 3 dos 4 corpos de Blücher. Napoleão, com o grosso das tropas
imperiais, segue à retaguarda, pronto a influenciar qualquer decisão que pareça
mais difícil.
Entretanto, na noite desse mesmo dia,
parecendo não valorizar demasiadamente o risco da movimentação do exército
napoleónico, o duque de Wellington e os oficiais do seu estado-maior
participam, no mais elegante estilo, no baile da duquesa de Richmond, em
Bruxelas.
Enquanto
a acção da ala esquerda, sob o comando do marechal Ney, se mantém indecisa em
Quatre-Bras, Napoleão ordena a Grouchy o ataque contra as tropas prussianas, em
Ligny. Tardando a desenhar-se a vitória, Napoleão vê-se obrigado a reforçar o
ataque de Grouchy com as tropas de reserva, alcançando um sucesso claro, mas à
custa de 8.000 baixas, contra 15.000 dos prussianos.
Para
evitar males maiores, o comando das tropas prussianas entende que é melhor
poupar o resto do seu exército, retirando para norte, na direcção de Wavre. Mas
não abandona a ideia de, logo seja possível, voltar a tentar a junção com as
forças de Wellington.
Pela
sua parte, e a partir de tal situação, Napoleão não pensa noutra coisa que não
seja em bater o exército de Wellington rapidamente e tudo fazer para impedir
que tal junção possa concretizar-se.
A 17 de Junho, ao saber do movimento dos prussianos para norte,
Wellington dá ordens ao seu exército para recuar para a posição de Mont St.
Jean, a pequena distância, para sul, de Waterloo. Nessa posição, o exército
anglo-holandês, além de ocupar terreno ligeiramente dominante, dispõe de
diversos edifícios rústicos e valados que permitem uma boa cobertura para a
condução de uma defesa.
Napoleão,
que, após o fim da batalha de Ligny, resolvera dar descanso aos seus homens, só
nesse dia, cerca das 11 horas, decide ir com o grosso das suas forças juntar-se
às tropas de Ney, enquanto ordena a Grouchy, com uma força de 30.000
homens, para ir no encalço dos prussianos.
Estes,
desde o dia anterior, já lograram alcançar um significativo avanço,
aproveitando a passividade dos franceses.
Grouchy, por seu turno,
executa a ordem de perseguição a um ritmo incompreensivelmente lento, sem
qualquer hipótese de impedir a junção entre prussianos e britânicos.
Ainda
a 17 de Junho, o grosso
do exército francês aproxima-se do Mont St. Jean. Verificam-se, na ocasião, condições
meteorológicas extremamente adversas, com a queda de chuvas diluvianas, factor
que vai condicionar negativamente as operações ofensivas, uma vez que o terreno
enlameado impedirá a infantaria de tirar o máximo partido do poder de choque
das suas colunas, ao mesmo tempo que favorecerá quem adoptar uma postura
defensiva. O mesmo é dizer que tudo se conjuga para dificultar a missão do
atacante e beneficiar a acção de quem defende.
Ao
findar o dia, os dois exércitos encontram-se frente-a-frente. Na manhã de 18 de
Junho, com o início do ataque aprazado para as 9 horas, Napoleão vê-se forçado
a um adiamento de duas horas e meia, na esperança de ver reduzir o grau de 4
humidade que empapa o terreno e impede a velocidade dos movimentos. Assim,
pelas 11h30, a ala esquerda francesa ataca a direita aliada, na posição semi-fortificada
de Hougoumont. Cerca das 13h30, perante a contrariedade de não terem ainda
terminado os sangrentos combates por Hougoumont, onde os britânicos resistem
galhardamente às furiosas investidas dos Franceses, Napoleão ordena o ataque
frontal, ao centro, conduzido pelo 1.º Corpo, de Drouet d’Erlon.
Mas
também nessa ocasião, os homens de Wellington, utilizando nos valados a técnica
de posicionamento de contra-encosta, furtam-se aos efeitos da artilharia
francesa, para, logo de seguida, sentindo a aproximação da infantaria inimiga,
subirem à crista, dizimando o adversário com os seus implacáveis fogos de
atiradores.
Para
piorar a situação das tropas imperiais, não tardam a perceber que o 4.º Corpo
do exército de Blücher – o único que não estivera na batalha de Ligny e que,
portanto, também não fazia parte das forças que haviam retirado para Wavre –,
comandado por Bülow, se aproxima pela direita do dispositivo francês. São
expedidas ordens para Grouchy
alterar a sua missão e vir atacar Bülow pela retaguarda. De nada valem esses
esforços, porque Grouchy só pelas 17 horas recebe a mensagem enviada por Soult,
o chefe do estado-maior do exército imperial.
Falhado
o ataque de d’Erlon, Napoleão lança mão da cavalaria, executando duas incursões
que rasgam o dispositivo aliado, sem, contudo, o forçarem a um recuo. As
tropas britânicas, ao verem-se submergidas pela cavalaria francesa, rapidamente
passam à formação de quadrado,
continuando a disparar, em todas as direcções, com assinalável eficácia.
«Cada quadrado – escreveria mais
tarde Victor Hugo, em Os Miseráveis – era um vulcão, atacado por uma nuvem»
Entretanto,
cerca das 16h00, inicia-se o ataque do corpo de Bülow ao flanco direito
francês, em Placenoit, obrigando a desviar forças para garantir, no mínimo, o
controlo do itinerário de retirada. No centro da batalha, cerca das 18h30,
depois de diversas cargas da cavalaria francesa, a posição fortificada de La
Hayne-Sainte cai na posse das tropas de Ney. Por uns breves instantes,
constatando que a sua linha cedera na parte central, Wellington admite que a
manutenção da defesa se encontra em risco e, mais do que nunca, espera que a
chegada dos prussianos de Blücher o salvem da situação crítica em que o êxito
da cavalaria francesa o coloca.
Pensando dar o golpe de misericórdia ao
adversário, mediante o empenhamento da Guarda Imperial, ainda intacta, Napoleão
recebe a notícia da tomada de Plancenoit pelas tropas de Bülow. Perante este
novo revés, decide atrasar o ataque ao centro. Ordena, então, que uma fracção
da Guarda Imperial retome a posição de Plancenoit, o que vem a acontecer entre
as 19h00 e as 19h30.
Graças
a esta inesperada trégua, Wellington consegue refazer o seu dispositivo,
empenhando as reservas de que ainda dispõe. Confrontado com este reajustamento
das forças inimigas – a que se somava a cada vez maior probabilidade de estar
para breve a chegada do exército de Blücher –, mandaria a prudência que
Napoleão ordenasse a retirada, procurando salvar o que restava do seu exército.
Todavia,
não tendo perdido a esperança na chegada do corpo de Grouchy e acreditando
na sua boa estrela, Napoleão
decide jogar a última cartada, mandando avançar a Guarda Imperial.
Nesta unidade de elite, restam
nove batalhões, ou seja, menos de 5.000 infantes. Dada a ordem 6 de ataque, a
Guarda progride na direcção das posições aliadas, com a mesma determinação e
imponência dos tempos áureos.
Subitamente,
do lado do inimigo, ouvem a voz: Stand-up, guards! Do meio do trigo,
1.500 diabos vermelhos passam da posição de joelhos à posição de pé e disparam
à queima-roupa, em salvas sucessivas, por linhas paralelas. À primeira descarga
a Guarda hesita e à segunda, ante a surpresa geral, recua. Ao mesmo tempo, no
flanco direito francês, a recém-chegada cavalaria de Blücher inunda o campo de
batalha.
De Grouchy, nem sombra de notícias.
A derrota de Napoleão, embora assinalada por gestos de enorme
bravura, concretiza-se numa debandada precipitada e em grande desordem, a
lembrar os infaustos tempos da campanha da Rússia. Chega ao fim, com uma
derrota infligida pelo seu mais cotado opositor, a extraordinária carreira
militar de um dos maiores cabos-de-guerra de todos os tempos. À derrota militar
segue-se o exílio para Santa Helena, onde acabará os seus dias.
David Martelo – Junho de 2019
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