Salles da Fonseca vai historiando
com leveza “perfurante” os factos históricos, que todos eles se vêm
encaminhando para os feitos actuais, excelentemente referenciados por João Miguel Tavares, na trajectória
apocalíptica que nos é consentânea.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 04.06.19
A ÉPOCA DOS FUNDADORES
Assentes
na democracia pluripartidária, foi tempo de descansar.
Sim?
Não, é claro!
Acabara
o tempo hard, da traulitada; começavam os tempos da discussão sobre o que cada
um entendia acerca do bem comum.
Era
o tempo dos fundadores - Mário Soares, Francisco Sá
Carneiro, Adelino Amaro da Costa.
E
os outros? Os outros ou não eram democratas ou não «davam uma para a caixa»,
não entram no grupo dos que fizeram doutrina.
Excluído
o absurdo, as alternativas de bem comum que se perfilaram no arco democrático
foram o socialismo apresentado pelo PS, a social democracia apresentada pelo
PPD (que mais tarde se passaria a chamar PSD) e a democracia cristã apresentada
pelo CDS. De notar que todas estas alternativas apresentavam pontos comuns que
passaram a constituir a base mais alargada das grandes opções políticas
nacionais. Refiro-me ao pluripartidarismo,
à subordinação das Forças Armadas em relação ao poder legislativo, à
independência do Poder Judicial relativamente aos demais órgãos de soberania, à
opção europeia.
Eis
como, excluindo casos de lógica perturbada, a minha geração em Portugal
optou livremente por um modelo que reservava para a propriedade pública os
sectores estratégicos (o do PS), alargava praticamente toda a propriedade ao
privado ressarcindo o interesse público pela forte tributação (o modelo social
democrata do PPD-PSD) e o modelo da economia social de mercado (o do CDS) com a
democratização do acesso dos privados aos meios de produção.
E
foi essa a discussão que se seguiu?
Bem…
talvez tenha sido um pouco diferente mas não me apetece concluir este texto em
lágrimas e não vejo motivos para a alternativa alacre.
Fico-me
hoje por aqui e vou ver como hei-de retomar o fio da História amanhã.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca
II - OPINIÃO
A crise é da direita ou a crise é do
regime?
Diria que um dos mais graves aspectos
desta crise é a ausência de qualquer estratégia visível para o país, além da
sobrevivência política a curto prazo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 4 de Junho de 2019
Algumas
das mais elevadas figuras da nação decidiram dedicar-se nos últimos dias a
analisar o regime português. O
presidente da República afirmou
na sexta-feira que “há uma forte possibilidade de haver uma crise na
direita portuguesa nos próximos anos”.
O
líder do PSD declarou no sábado que “a crise não está só à direita, a
crise está no regime como um todo”.
O ministro das Finanças afiançou no domingo que não há
qualquer crise no regime e que o importante é “reduzir a incerteza política”. Em que é que ficamos, afinal? Há crise ou não há
crise? É da direita ou é de todo o regime? A minha tese é esta: Marcelo, Rui
Rio e Mário Centeno, ainda que com palavras muito diferentes, estão
todos a dizer o mesmo. Sim, o país está numa encruzilhada perigosa. E sim, há
quase tantas dúvidas como dívidas.
Que
eles o digam utilizando palavras muito diferentes é coisa que se explica com
relativa facilidade. Cada uma daquelas elevadas figuras fala a partir do
ponto que mais lhe convém, como é óbvio. Marcelo é presidente da
República, e ao dizer que a direita está feita em fanicos (uma declaração ao
mesmo tempo absolutamente verdadeira e absolutamente criticável, no sentido em
que não compete a um presidente da República telefonar para a Servilusa a
quatro meses das legislativas, ainda que para encomendar um coffin em vez de um “caixão”), Marcelo, dizia eu, está
a valorizar o seu próprio papel, enquanto fiel da balança do regime. E, já agora, a justificar também a sua recandidatura
para 2021, porque se a direita está reduzida a fanicos e o país precisa de
equilíbrio, ele, e só ele, é a garantia de que ao menos uma figura oriunda
do centro-direita continuará a mandar em Belém, para “equilibrar”.
Rui
Rio, por seu lado, ao estender a crise a todo o regime, e não apenas à direita,
está naturalmente a tentar insuflar o colchão que poderá amparar a sua queda
após despenhar-se do décimo andar, como tudo indica que acontecerá em Outubro.
O que Rio está a dizer é isto: “A culpa não é minha; a culpa é da conjuntura.”
Ele terá alguma razão, e já aqui
escrevi que qualquer outro social-democrata que estivesse no seu lugar também perderia
com António Costa. Mas o ponto não é esse. O ponto é que se a crise é de
todo o regime, e aparenta ser tão grave, ninguém percebe que raio Rui Rio
tem andado a propor para a combater. Aquilo a que todos temos assistido é à
aproximação do PSD ao PS, e sendo o PS o grande partido do regime desde que
António Guterres venceu as eleições de 1995, já lá vai quase um quarto de
século, é impossível vislumbrar como tal estratégia poderá salvar o que quer
que seja.
Por
fim, veio Mário Centeno, senhor todo
poderoso do Terreiro do Paço, que naturalmente não poderia anunciar uma
crise do regime que ele próprio pastoreia. Ainda assim, a ideia
da necessidade de diminuir a “incerteza política” vai dar ao mesmo. Centeno
exemplificou o problema com o “Brexit”. Ora, a incerteza do “Brexit” é o efeito
da crise que atingiu o Reino Unido. Mário Centeno pode até divertir-se a
brincar às causas e às consequências, mas no essencial não está a dizer nada de
muito diferente de Marcelo ou Rio: todos reconhecem que o regime está ferido e
que os seus antigos equilíbrios foram perturbados; ninguém faz a menor ideia de
que como enfrentar o problema. Diria
que um dos mais graves aspectos desta crise é precisamente esse: a ausência de
qualquer estratégia visível para o país, além da sobrevivência política a curto
prazo.
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