terça-feira, 4 de junho de 2019

Seja, pelas nossas alminhas



Salles da Fonseca vai historiando com leveza “perfurante” os factos históricos, que todos eles se vêm encaminhando para os feitos actuais, excelentemente referenciados por João Miguel Tavares, na trajectória apocalíptica que nos é consentânea.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 04.06.19
A ÉPOCA DOS FUNDADORES
Assentes na democracia pluripartidária, foi tempo de descansar.
Sim? Não, é claro!
Acabara o tempo hard, da traulitada; começavam os tempos da discussão sobre o que cada um entendia acerca do bem comum.
Era o tempo dos fundadores - Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa.
E os outros? Os outros ou não eram democratas ou não «davam uma para a caixa», não entram no grupo dos que fizeram doutrina.
Excluído o absurdo, as alternativas de bem comum que se perfilaram no arco democrático foram o socialismo apresentado pelo PS, a social democracia apresentada pelo PPD (que mais tarde se passaria a chamar PSD) e a democracia cristã apresentada pelo CDS. De notar que todas estas alternativas apresentavam pontos comuns que passaram a constituir a base mais alargada das grandes opções políticas nacionais. Refiro-me ao pluripartidarismo, à subordinação das Forças Armadas em relação ao poder legislativo, à independência do Poder Judicial relativamente aos demais órgãos de soberania, à opção europeia.
Eis como, excluindo casos de lógica perturbada, a minha geração em Portugal optou livremente por um modelo que reservava para a propriedade pública os sectores estratégicos (o do PS), alargava praticamente toda a propriedade ao privado ressarcindo o interesse público pela forte tributação (o modelo social democrata do PPD-PSD) e o modelo da economia social de mercado (o do CDS) com a democratização do acesso dos privados aos meios de produção.
E foi essa a discussão que se seguiu?
Bem… talvez tenha sido um pouco diferente mas não me apetece concluir este texto em lágrimas e não vejo motivos para a alternativa alacre.
Fico-me hoje por aqui e vou ver como hei-de retomar o fio da História amanhã.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca

II - OPINIÃO
A crise é da direita ou a crise é do regime?
Diria que um dos mais graves aspectos desta crise é a ausência de qualquer estratégia visível para o país, além da sobrevivência política a curto prazo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 4 de Junho de 2019
Algumas das mais elevadas figuras da nação decidiram dedicar-se nos últimos dias a analisar o regime português. O presidente da República afirmou na sexta-feira que “há uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos”. O líder do PSD declarou no sábado que “a crise não está só à direita, a crise está no regime como um todo”. O ministro das Finanças afiançou no domingo que não há qualquer crise no regime e que o importante é “reduzir a incerteza política”. Em que é que ficamos, afinal? Há crise ou não há crise? É da direita ou é de todo o regime? A minha tese é esta: Marcelo, Rui Rio e Mário Centeno, ainda que com palavras muito diferentes, estão todos a dizer o mesmo. Sim, o país está numa encruzilhada perigosa. E sim, há quase tantas dúvidas como dívidas.
Que eles o digam utilizando palavras muito diferentes é coisa que se explica com relativa facilidade. Cada uma daquelas elevadas figuras fala a partir do ponto que mais lhe convém, como é óbvio. Marcelo é presidente da República, e ao dizer que a direita está feita em fanicos (uma declaração ao mesmo tempo absolutamente verdadeira e absolutamente criticável, no sentido em que não compete a um presidente da República telefonar para a Servilusa a quatro meses das legislativas, ainda que para encomendar um coffin em vez de um “caixão”), Marcelo, dizia eu, está a valorizar o seu próprio papel, enquanto fiel da balança do regime. E, já agora, a justificar também a sua recandidatura para 2021, porque se a direita está reduzida a fanicos e o país precisa de equilíbrio, ele, e só ele, é a garantia de que ao menos uma figura oriunda do centro-direita continuará a mandar em Belém, para “equilibrar”.
Rui Rio, por seu lado, ao estender a crise a todo o regime, e não apenas à direita, está naturalmente a tentar insuflar o colchão que poderá amparar a sua queda após despenhar-se do décimo andar, como tudo indica que acontecerá em Outubro. O que Rio está a dizer é isto: “A culpa não é minha; a culpa é da conjuntura.” Ele terá alguma razão, e já aqui escrevi que qualquer outro social-democrata que estivesse no seu lugar também perderia com António Costa. Mas o ponto não é esse. O ponto é que se a crise é de todo o regime, e aparenta ser tão grave, ninguém percebe que raio Rui Rio tem andado a propor para a combater. Aquilo a que todos temos assistido é à aproximação do PSD ao PS, e sendo o PS o grande partido do regime desde que António Guterres venceu as eleições de 1995, já lá vai quase um quarto de século, é impossível vislumbrar como tal estratégia poderá salvar o que quer que seja.
Por fim, veio Mário Centeno, senhor todo poderoso do Terreiro do Paço, que naturalmente não poderia anunciar uma crise do regime que ele próprio pastoreia. Ainda assim, a ideia da necessidade de diminuir a “incerteza política” vai dar ao mesmo. Centeno exemplificou o problema com o “Brexit”. Ora, a incerteza do “Brexit” é o efeito da crise que atingiu o Reino Unido. Mário Centeno pode até divertir-se a brincar às causas e às consequências, mas no essencial não está a dizer nada de muito diferente de Marcelo ou Rio: todos reconhecem que o regime está ferido e que os seus antigos equilíbrios foram perturbados; ninguém faz a menor ideia de que como enfrentar o problema. Diria que um dos mais graves aspectos desta crise é precisamente esse: a ausência de qualquer estratégia visível para o país, além da sobrevivência política a curto prazo.

Nenhum comentário: