quarta-feira, 26 de junho de 2019

Panorâmica



Não, não se fala em trabalho, isso parece ter passado à história. Dinheiro e poder sim, este, para se ter aquele, aquele para se conquistar este. Dantes, o poder do capital era sinónimo de exploração do trabalho e tratou-se de o eliminar, o capital resultante do trabalho. Em todo o caso, a exploração ainda se mantém, pois muitos se queixam disso e exigem mais recompensa por tantas horas de ocupação diária sem a remuneração adequada. Por isso se assiste a mudanças frequentes dos empregados, pelo menos é o que eu vejo no café-esplanada do “meu” Continente, por onde perpassam figuras sucessivas de empregados a servir cafés ou sumos e doçuras, ao balcão, os quais devem ganhar muito pouco, pois não há meio de assentarem, e até mesmo nas outras caixas isso sucede, rostos sucessivos, talvez de estudantes para sobreviverem enquanto se preparam para a vida. O certo, também, é que vivemos hoje segundo a teoria do trabalho como prazer apenas e ninguém fala em dever, aplicação, dedicação, embora seja necessária uma certa estabilidade funcional, para evitar o caos total.
Caos! É disso que trata, afinal, a crónica de António Barreto, como sempre impecável nas suas análises do nosso status governativo de “unhas e dentes” resfolgando sobre os tais elementos de conquista pecaminosa do seu prazer, à custa da nação e do empréstimo exterior: Dinheiro, poder, poder e dinheiro… e tudo muito bem disseminado e oculto, numa panorâmica política onde a corrupção é mato. António Barreto explica, os seus comentadores dão achegas.

OPINIÃO
Dinheiro e poder
Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para o poder económico.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 23 de Junho de 2019
É possível que as comissões de inquérito parlamentar e os grandes processos judiciais relativos a casos políticos e financeiros não dêem qualquer resultado prático, nem sequer permitam o apuramento de responsabilidades. Os assaltos, os roubos qualificados, a destruição de empresas, os empréstimos públicos pecaminosos e vários tipos de corrupção ficarão, provavelmente, impunes. Grande parte deles, pelo menos. Os casos de que hoje se fala, a utilização de dinheiro para obter poder e o exercício de poder político para conquistar propriedade e fortuna, serão capítulo importante na história do país. Dentro de algumas décadas, os estudiosos, os escritores e os cineastas terão ao seu alcance centenas de milhares de páginas de relatórios e de processos que apenas servirão para isso: fazer história. Já não é nada mau. Os procedimentos judiciais e o voto das comissões de inquérito pouco ou nada servem para apurar a verdade, mas serão de enorme utilidade para fazer história.
Na verdade, aquilo a que estamos ainda a assistir, já na fase de rescaldo, é um dos maiores episódios de luta pelo poder, de partilha dos dinheiros públicos e de concorrência entre famílias e partidos de que há memória. Ficará na história como mais uma reviravolta na balança de poder. Nos últimos cinquenta anos, é certamente a terceira vez que tal acontece. Primeiro, com a Revolução de Abril, destruiu-se o capitalismo português, liquidaram-se alguns grupos económicos e alterou-se a relação de forças entre capital e trabalho. Já nessa altura se deu um sinal de que o capitalismo estrangeiro, apesar de ter ficado sob observação, não seria ameaçado. Poucos anos depois, a vaga democrática restaurou algum capitalismo, desta vez mais dependente do exterior. A Comunidade Económica Europeia, futura União, ajudou. Os processos de revisão da Constituição e das reprivatizações serviram para dar alguma esperança à iniciativa privada, tendo-se construído ou reconstruído grupos económicos e financeiros, cada vez mais dependentes, mas com algumas raízes em Portugal. A crise internacional de 2008, a bancarrota de 2009 e a segunda vaga de privatizações, acompanhadas da meia década de austeridade e de assistência internacional, liquidaram de uma vez para sempre os grupos nacionais ou parcialmente nacionais, destruíram algumas empresas portuguesas ou com bases importantes em Portugal e entregaram a multinacionais próximas (europeias) ou remotas (chinesas e angolanas) o essencial da economia e praticamente todo o sistema financeiro.
O que se tem passado com o BES, o BPN, a CGD e o BCP deve compreender-se nesta visão mais alargada, mas os que, no sector privado ou na política, agiram com cupidez, dolo e malícia, só serão totalmente identificados dentro de muitos anos. Do mesmo modo, a acção de alguns governantes socialistas e social-democratas ficará um tempo longo à espera de verdadeira responsabilização. Só então os comportamentos criminosos serão devidamente apontados. Tarde de mais para reparação e castigo, mas sempre oportuno para o conhecimento histórico. De qualquer maneira, é bom notar que não se tratou exclusivamente de corrupção e crime. Muito do que aconteceu, com grandes empresas e vários serviços públicos, assim como parcerias, concursos e regimes fiscais, foi produzido e protegido por meios legais, embora constituísse veículo essencial para a transferência de propriedade, de poder e de dinheiro. Os telefones, a electricidade, o gás, os cimentos, os petróleos e os correios fazem parte deste vasto sector de interesses e de luta das classes, onde a corrupção e o crime são relativamente menores quando comparados com o uso da lei. Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para o poder económico. Há uma espécie de offshore moral e legal: na política, a noção de responsabilidade é outra.
Não se pense que uns partidos só se interessam pelo dinheiro, enquanto outros só pela política. De todo! A verdade é que os partidos têm interesse no poder político e no dinheiro, só que por ordem diferente. Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro e aumentar a propriedade. Parece simples e rude, mas a verdade é que a luta política é muitas vezes simples e rude.
O assalto fenomenal ao poder e ao dinheiro revela bem estes interesses e este jogo político. O processo actual, diante dos nossos olhos, é o terceiro ou quarto desde o 25 de Abril de 1974. A Revolução e a reprivatização das empresas e dos grupos redundaram em monumental banquete de que se aproveitaram, simultânea ou sucessivamente, direita ou esquerda. Incluindo vários ministros, primeiros-ministros, secretários de Estado, deputados, altos funcionários, secretários-gerais de partidos, banqueiros, gestores e empresários.
É aliás possível encontrar tendências dominantes de comportamento nos principais partidos políticos e nos seus simpatizantes. O PCP detesta o dinheiro e quem o tem. O Bloco abomina o dinheiro dos outros. O PS aprecia o dinheiro, desde que também tenha. O PSD gosta do seu dinheiro. E o CDS deseja dinheiro, mas não diz.
Assim, os revolucionários e os comunistas querem acabar com os ricos e os proprietários. Querem substituir-se a eles, preferem que seja o Estado o titular dos bens e dos rendimentos, mas que o Estado seja deles. Os reformistas não querem acabar com os ricos, nem com os proprietários, mas querem submetê-los ao poder político e também beneficiar. Uns directamente, tornando-se proprietários, nem que seja ilegalmente. Outros indirectamente, transformando-se em gestores públicos e políticos, se possível legalmente. Os conservadores, nomeadamente os de direita, são mais simples e directos: não querem alterar nada de essencial, querem fazer parte da mesa de quem tem propriedade e fazenda.
Admite-se que os partidos, todos os partidos, tenham também uma visão própria do que se chama o “bem comum” ou o “interesse nacional”. Com certeza. Não se pode ser totalmente cínico a ponto de negar seriedade e virtude aos outros. Mas convém ser realista a fim de perceber tudo quanto está em causa. Pena é que, para apuramento de responsabilidades, os magistrados e os deputados não ajudem. Por isso, confiamos nos historiadores. Será tarde, mas alguma coisa se aprenderá.
Sociólogo

COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler, 23.06.2019 : Dinheiro e poder, dois valores pelos quais o Sr. Barreto ainda se bate.
José Cruz Magalhaes, Lisboa 23.06: Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro e aumentar a propriedade."- Uma constatação que só peca por tardia, no tempo padrão da Justiça e por atrasada, no tempo ingrato da História.
pedro ferreira, 23.06.2019: Excelente, como sempre, a prosa de AB. Mas sabe a pouco, a coisa não pode ficar pelo julgamento da história, a justiça tem de meter os prevaricadores na cadeia, ou ficamos pelo Vara?
Jose, 23.06.2019: AB vem dar uma mãozinha à catarse em curso juntando a sua voz ao coro dos que vêem ricos ladrões por todo o lado e clamam pela sua prisão perpétua, se possível. Detesto essa hipocrisia e os hipócritas de serviço. O que é preciso assumir é que o Capitalismo tem crises cíclicas com consequências devastadoras para os fracos. Fica-lhe mal, AB, por preconceito ideológico anticomunista reescrever a história. O 25 de Abril não matou nenhum Capitalismo português. Em Portugal as relações de produções feudais deram lugar a relações de produção capitalistas. No Alentejo acabaram os agrários feudais e há lá capitalistas que pagam salários baixos. No minifúndio não quiseram rendeiros nem proprietários, fidalgos ou não, substituir as rendas em espécie por rendas em capital e deu-se o abandono.
Gualter Agrochão, Lisboa 23.06.2019: O caro José parece ser um apreciador da "destruição criativa" de Joseph Schumpeter que, porém, parece não ter lido, Ou se leu, foi uma leitura muito apressada. "Catarse em curso"? O José deve ter já um muito respeitável ADN - Afastamento da Data de Nascimento!...
Jose, 23.06.2019: Nos diferentes sectores da actividade económica generalizou-se a contratação colectiva de trabalho a regular as relações de produção, como tem de ser no Capitalismo. Empresas mudaram de mão e alargaram o espectro do negócio como a Sonae outras foram ao Estado e voltaram à iniciativa privada. Tudo se fez nos termos da Lei e dos códigos. A anormalidade que ocorreu nesses 50 anos foi a crise de 2008 que fez falir os bancos e o Estado indefeso por ter cedido a soberania aduaneira, monetária, financeira, cambial, orçamental, de gestão bancária, sem soberania, carrega a "dívida soberana" gerando uma regressão nunca imaginada pelas pessoas que existem e vêem a vida andar para trás. Essa desilusão instalada e crescente não se apaga prendendo "bodes expiatórios". Só repondo o Capitalismo a funcionar.
Gualter Agrochão, Lisboa 23.06.2019: E repor o Capitalismo (adaptando Churchill, o pior dos sistemas se excluirmos todos os outros) a funcionar pode significar, sem cair em abusivas e perigosas simplificações do que é naturalmente complexo, voltar à "economia do bem comum", aquela que gera soluções lucrativas para as necessidades do Homem e do Planeta, ao invés de gerar lucro por via da produção de problemas para o Homem e para o Planeta. Tratar-se-ia, afinal, de prosseguir o desígnio societal maior do nosso tempo, o Desenvolvimento Sustentado, resultante da gestão inteligente dos 5P's estruturais: Planet, People, Prosperity, Peace, Partnership.
Muito bem Professor António Barreto! Apenas duas notas. A primeira para invocar o bem conhecido, mas muito mal praticado, que nem tudo o que a lei permite se nos deve impor e há coisas que a lei não impõe e que se nos devem impor. É o intemporal conflito, que não deveria ser, entre princípios legais e princípios éticos e morais. A segunda nota para discordar no que concerne a uma espécie de "TINA" determinístico deste "capitalismo de conveniência" que parece trespassar o discurso do Professor. Apesar da minha já provecta idade de Avô, ainda não desisti da convicção de que os Cidadãos podem fazer inverter a vertigem suicidária tão lapidarmente retratado em "Dinheiro e poder".
Colete Amarelo, Aqui mesmo 23.06.2019: O dinheiro não diferencia. É um ditador. Ou seja, sob as suas ordens, deixa de haver outros valores. Humanismo? Ecologia? Democracia? Tudo isto o dinheiro subverte, se nos rendemos acriticamente a ele. O que faz falta ao planeta é a democratização da economia. A política era um domínio fechado a uma classe que foi democratizado. Falta agora democratizar a economia. Há muitos tipos de dinheiro. O dinheiro corrupto, fácil, branqueado, suado, fruto do trabalho inspirado... No nosso país temos o tipo de dinheiro que corresponde à nossa realidade económica. Viva o dinheiro democrático.
Luciano Barreira, 23.06.2019 08:11: Nada mais acertado, as perversidades que os interesses geram são maiores do que o mundo. A legalidade é o que o homem quiser.

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