Não, não se fala em trabalho, isso parece ter passado à história. Dinheiro e poder sim, este, para se ter aquele, aquele para se
conquistar este. Dantes, o poder
do capital era sinónimo de exploração do trabalho e tratou-se de o eliminar, o capital resultante do trabalho. Em todo o caso, a exploração ainda se
mantém, pois muitos se queixam disso e exigem mais recompensa por tantas horas
de ocupação diária sem a remuneração adequada. Por isso se assiste a mudanças
frequentes dos empregados, pelo menos é o que eu vejo no café-esplanada do “meu”
Continente, por onde perpassam
figuras sucessivas de empregados a servir cafés ou sumos e doçuras, ao balcão, os
quais devem ganhar muito pouco, pois não há meio de assentarem, e até mesmo nas
outras caixas isso sucede, rostos sucessivos, talvez de estudantes para
sobreviverem enquanto se preparam para a vida. O certo, também, é que vivemos
hoje segundo a teoria do trabalho como prazer apenas e ninguém fala em dever,
aplicação, dedicação, embora seja necessária uma certa estabilidade funcional,
para evitar o caos total.
Caos! É disso que trata, afinal, a
crónica de António Barreto, como sempre
impecável nas suas análises do nosso status governativo de “unhas e dentes”
resfolgando sobre os tais elementos de conquista pecaminosa do seu prazer, à custa
da nação e do empréstimo exterior: Dinheiro, poder, poder e dinheiro… e tudo
muito bem disseminado e oculto, numa panorâmica política onde a corrupção é
mato. António Barreto explica, os
seus comentadores dão achegas.
OPINIÃO
Dinheiro e poder
Na verdade, com ilegalidades se cumpre a
lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política
tem tanta importância para o poder económico.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 23 de Junho de 2019
É possível que as comissões de
inquérito parlamentar e os grandes processos judiciais relativos a casos
políticos e financeiros não dêem qualquer resultado prático, nem sequer
permitam o apuramento de responsabilidades. Os
assaltos, os roubos qualificados, a destruição de empresas, os empréstimos
públicos pecaminosos e vários tipos de corrupção ficarão, provavelmente,
impunes. Grande parte
deles, pelo menos. Os casos de que hoje se fala, a utilização de dinheiro
para obter poder e o exercício de poder político para conquistar propriedade e
fortuna, serão capítulo importante na história do país. Dentro de algumas décadas, os estudiosos, os
escritores e os cineastas terão ao seu alcance centenas de milhares de páginas
de relatórios e de processos que apenas servirão para isso: fazer história.
Já não é nada mau. Os procedimentos judiciais e o voto das comissões de
inquérito pouco ou nada servem para apurar a verdade, mas serão de enorme
utilidade para fazer história.
Na
verdade, aquilo a que estamos ainda a assistir, já na fase de
rescaldo, é um dos maiores episódios de luta pelo poder, de partilha dos
dinheiros públicos e de concorrência entre famílias e partidos de que há
memória. Ficará na história como mais uma reviravolta na balança de poder. Nos
últimos cinquenta anos, é certamente a terceira vez que tal acontece. Primeiro, com a Revolução de Abril, destruiu-se o capitalismo português, liquidaram-se
alguns grupos económicos e alterou-se a relação de forças entre capital e
trabalho. Já nessa altura se deu um sinal de que o capitalismo estrangeiro,
apesar de ter ficado sob observação, não seria ameaçado. Poucos anos depois, a
vaga democrática restaurou algum capitalismo, desta vez mais dependente do
exterior. A Comunidade Económica Europeia, futura União, ajudou. Os processos
de revisão da Constituição e das reprivatizações serviram para dar alguma
esperança à iniciativa privada, tendo-se construído ou reconstruído grupos
económicos e financeiros, cada vez mais dependentes, mas com algumas raízes em
Portugal. A crise internacional de 2008, a bancarrota de 2009 e a segunda vaga
de privatizações, acompanhadas da meia década de austeridade e de assistência
internacional, liquidaram de uma vez para sempre os grupos nacionais ou
parcialmente nacionais, destruíram algumas empresas portuguesas ou com bases
importantes em Portugal e entregaram a multinacionais próximas (europeias) ou
remotas (chinesas e angolanas) o essencial da economia e praticamente todo o
sistema financeiro.
O que se tem passado com o BES, o
BPN, a CGD e o BCP deve compreender-se nesta visão mais alargada, mas os que,
no sector privado ou na política, agiram com cupidez, dolo e malícia, só serão
totalmente identificados dentro de muitos anos. Do mesmo modo, a acção de alguns governantes
socialistas e social-democratas ficará um tempo longo à espera de verdadeira
responsabilização. Só então os comportamentos criminosos serão devidamente
apontados. Tarde de mais para reparação e castigo, mas sempre oportuno para o
conhecimento histórico. De qualquer maneira, é bom notar que não se tratou
exclusivamente de corrupção e crime. Muito do que aconteceu, com grandes
empresas e vários serviços públicos, assim como parcerias, concursos e regimes
fiscais, foi produzido e protegido por meios legais, embora constituísse
veículo essencial para a transferência de propriedade, de poder e de dinheiro.
Os telefones, a electricidade, o gás, os cimentos, os petróleos e os correios
fazem parte deste vasto sector de interesses e de luta das classes, onde a
corrupção e o crime são relativamente menores quando comparados com o uso da
lei. Na verdade, com
ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes
financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para o poder económico.
Há uma espécie de offshore moral e legal: na política, a noção de
responsabilidade é outra.
Não se pense que uns partidos só se interessam pelo dinheiro,
enquanto outros só pela política. De todo! A
verdade é que os partidos têm interesse no poder político e no dinheiro, só que
por ordem diferente. Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para
consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro
e aumentar a propriedade. Parece simples e rude, mas a verdade é que a luta
política é muitas vezes simples e rude.
O assalto fenomenal ao poder e ao dinheiro revela bem estes
interesses e este jogo político. O processo actual, diante dos nossos olhos, é
o terceiro ou quarto desde o 25 de Abril de 1974. A
Revolução e a reprivatização das empresas e dos grupos redundaram em monumental
banquete de que se aproveitaram, simultânea ou sucessivamente, direita ou
esquerda. Incluindo vários ministros, primeiros-ministros, secretários de
Estado, deputados, altos funcionários, secretários-gerais de partidos,
banqueiros, gestores e empresários.
É
aliás possível encontrar tendências dominantes de comportamento nos principais
partidos políticos e nos seus simpatizantes. O PCP
detesta o dinheiro e quem o tem. O Bloco abomina o dinheiro dos outros. O PS
aprecia o dinheiro, desde que também tenha. O PSD gosta do seu dinheiro. E o
CDS deseja dinheiro, mas não diz.
Assim, os revolucionários e os
comunistas querem acabar com os ricos e os proprietários. Querem substituir-se
a eles, preferem que seja o Estado o titular dos bens e dos rendimentos, mas
que o Estado seja deles. Os reformistas não querem acabar com os ricos, nem com
os proprietários, mas querem submetê-los ao poder político e também beneficiar.
Uns directamente, tornando-se proprietários, nem que seja ilegalmente. Outros
indirectamente, transformando-se em gestores públicos e políticos, se possível
legalmente. Os conservadores, nomeadamente os de direita, são mais simples e
directos: não querem alterar nada de essencial, querem fazer parte da mesa de
quem tem propriedade e fazenda.
Admite-se
que os partidos, todos os partidos, tenham também uma visão própria do que se
chama o “bem comum” ou o “interesse nacional”. Com certeza. Não se pode ser
totalmente cínico a ponto de negar seriedade e virtude aos outros. Mas convém
ser realista a fim de perceber tudo quanto está em causa. Pena
é que, para apuramento de responsabilidades, os magistrados e os deputados não
ajudem. Por isso, confiamos nos historiadores. Será tarde, mas alguma coisa se
aprenderá.
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
José Cruz Magalhaes, Lisboa 23.06:
Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade
para consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar
dinheiro e aumentar a propriedade."- Uma constatação que só peca por
tardia, no tempo padrão da Justiça e por atrasada, no tempo ingrato da
História.
pedro ferreira, 23.06.2019: Excelente, como sempre, a prosa de AB. Mas sabe a
pouco, a coisa não pode ficar pelo julgamento da história, a justiça tem de
meter os prevaricadores na cadeia, ou ficamos pelo Vara?
Jose, 23.06.2019: AB vem dar uma mãozinha à catarse em curso juntando a
sua voz ao coro dos que vêem ricos ladrões por todo o lado e clamam pela sua
prisão perpétua, se possível. Detesto essa hipocrisia e os hipócritas de
serviço. O que é preciso assumir é que o Capitalismo tem crises cíclicas com
consequências devastadoras para os fracos. Fica-lhe mal, AB, por preconceito
ideológico anticomunista reescrever a história. O 25 de Abril não matou nenhum
Capitalismo português. Em Portugal as relações de produções feudais deram lugar
a relações de produção capitalistas. No Alentejo acabaram os agrários feudais e
há lá capitalistas que pagam salários baixos. No minifúndio não quiseram
rendeiros nem proprietários, fidalgos ou não, substituir as rendas em espécie
por rendas em capital e deu-se o abandono.
Gualter Agrochão, Lisboa 23.06.2019:
O caro José parece ser um apreciador da
"destruição criativa" de Joseph Schumpeter que, porém, parece não ter lido, Ou se leu, foi uma leitura muito apressada.
"Catarse em curso"? O José deve ter já um muito respeitável ADN -
Afastamento da Data de Nascimento!...
Jose, 23.06.2019: Nos diferentes sectores da actividade
económica generalizou-se a contratação colectiva de trabalho a regular as
relações de produção, como tem de ser no Capitalismo. Empresas mudaram de mão e
alargaram o espectro do negócio como a Sonae outras foram ao Estado e voltaram à
iniciativa privada. Tudo se fez nos termos da Lei e dos códigos. A anormalidade
que ocorreu nesses 50 anos foi a crise de 2008 que fez falir os bancos e o
Estado indefeso por ter cedido a soberania aduaneira, monetária, financeira,
cambial, orçamental, de gestão bancária, sem soberania, carrega a "dívida
soberana" gerando uma regressão nunca imaginada pelas pessoas que existem
e vêem a vida andar para trás. Essa desilusão instalada e crescente não se
apaga prendendo "bodes expiatórios". Só repondo o Capitalismo a
funcionar.
Gualter Agrochão, Lisboa 23.06.2019: E repor o Capitalismo (adaptando Churchill, o
pior dos sistemas se excluirmos todos os outros) a funcionar pode significar,
sem cair em abusivas e perigosas simplificações do que é naturalmente complexo,
voltar à "economia do bem comum", aquela que gera soluções
lucrativas para as necessidades do Homem e do Planeta, ao invés de gerar lucro
por via da produção de problemas para o Homem e para o Planeta. Tratar-se-ia,
afinal, de prosseguir o desígnio societal maior do nosso tempo, o
Desenvolvimento Sustentado, resultante da gestão inteligente dos 5P's
estruturais: Planet, People, Prosperity, Peace, Partnership.
Muito
bem Professor António Barreto! Apenas duas notas. A primeira para invocar o bem
conhecido, mas muito mal praticado, que nem tudo o que a lei permite se nos
deve impor e há coisas que a lei não impõe e que se nos devem impor. É o
intemporal conflito, que não deveria ser, entre princípios legais e princípios
éticos e morais. A segunda nota para discordar no que concerne a uma espécie de
"TINA" determinístico deste "capitalismo de conveniência"
que parece trespassar o discurso do Professor. Apesar da minha já provecta
idade de Avô, ainda não desisti da convicção de que os Cidadãos podem fazer
inverter a vertigem suicidária tão lapidarmente retratado em "Dinheiro e
poder".
Colete Amarelo, Aqui mesmo 23.06.2019: O dinheiro não diferencia. É um ditador. Ou seja, sob
as suas ordens, deixa de haver outros valores. Humanismo? Ecologia? Democracia?
Tudo isto o dinheiro subverte, se nos rendemos acriticamente a ele. O que
faz falta ao planeta é a democratização da economia. A política era um
domínio fechado a uma classe que foi democratizado. Falta agora democratizar
a economia. Há muitos tipos de dinheiro. O dinheiro corrupto, fácil,
branqueado, suado, fruto do trabalho inspirado... No nosso país temos o tipo de
dinheiro que corresponde à nossa realidade económica. Viva o dinheiro
democrático.
Luciano Barreira, 23.06.2019 08:11: Nada mais
acertado, as perversidades que os interesses geram são maiores do que o mundo.
A legalidade é o que o homem quiser.
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