Foi num ensaio de Maria Alzira Barahona que comecei
a perceber melhor a técnica narrativa em “A Sibila”, que tive de estudar para orientar um 12º ano, no ano
lectivo de 96/97, sendo esse livro de Agustina B. Luís de leitura obrigatória. À admiração por Agustina sucedeu igualmente a gratidão por Maria Alzira Barahona, no seu
estudo imprescindível a uma leiga, (tal como o foram os estudos de Carlos Reis para a descodificação de “Os Maias”), pois que os estudos literários dos
meus primeiros anos de ensino nada tinham a ver ainda com técnicas
estruturalistas abrangendo vários parâmetros de análise, embora o estudo
estilístico estivesse já em foco, nos meus tempos de Coimbra.
Da leitura do trabalho de Alzira Barahona, de que perdi o rasto, mas julgo que
terá o título que encontro citado na Internet – “Um tempo de Derivação” - e da leitura prévia de “A Sibila”, resultaram, além da síntese dos capítulos, em tópicos, uma planificação para orientação de leitura, que reponho
aqui, como homenagem a uma escritora, de facto, fabulosa, no descritivo
conceituoso, breve e sardónico, de depuração humanística brilhante, reveladora
de elaborado conhecimento do mundo e da alma, para além de outras dinâmicas de
escrita, que o ensaio de MAB nos fez
verificar. Limitarei a planificação apenas aos conteúdos programáticos, as
estratégias seguidas baseando-se nos habituais exercícios do manual sobre
leituras específicas, também de textos de apoio, o tempo para uma leitura
integral sendo distribuído apenas por 12 tempos lectivos.
PLANIFICAÇÃO A MÉDIO/ CURTO PRAZO
D. O TEXTO NARRATIVO
(Conclusão):
V- A NOVELÍSTICA PORTUGUESA
CONTEMPORÂNEA
1- INTRODUÇÃO: A EVOLUÇÃO DO
ROMANCE NO SÉCULO XX:
a) O
rompimento com a herança realista: A fuga da realidade quotidiana, a
desvalorização da diegese
b) O
simbolismo e a corrente da consciência: o predomínio da análise do eu. A
recusa da cronologia linear -> A multiplicidade de planos temporais. O tempo
da memória (La durée)
2- AGUSTINA BESSA LUÍS e a confluência de correntes várias: O
romance rural (Herculano, Camilo): a
corrente simbolista (Raul Brandão,
Teixeira de Pascoais); o neo-realismo.
3- “A SIBILA”, uma obra original e universal:
3.1
– Estrutura:
Externa: 19 capítulos.
Interna: Estrutura circular
(O fim retomando o início: A evocação de Germa, uma longa analepse). Todavia: Mobilidade
constante do eixo da história, arquitectura labiríntica, fragmentária,
ziguezagueante, com progressão temporal, mau grado o ritmo descontínuo.
3.2 – Narradores:
Homodiegético: Germa.
Heterodiegético:
Autor, demiurgo, omnisciente.
3.3: Tempo:
Cronológico: Cerca de um século. Marcos
fundamentais: 1850 – (Nascimento de Maria); 1859 - (Conhece Francisco
Teixeira); 1870 - (Casamento); 1877 – (Nascimento de Quina); 1917 - (Nascimento
de Germa); 1950 - (Morte de Quina; 1953 - (Evocação de Germa).
Tempo do
Discurso: Não uniforme,
descontínuo, desordenado, evasivo, constantemente perturbado na sua linearidade
por digressões, analepses, prolepses,
justaposições (silepses), elipses, resumos, comentários, juízos de valor – tempo de
memória.
Tempo
psicológico: Morte de Quina, por exemplo –( Monólogo interior).
3.4 – Espaço:
Físico:
- (Rural):
“Entre-Douro e Minho”(Espaço
privilegiado: “Quinta da Vessada”
(Casa, cozinha, sala, quarto. Eira.
Pombal (Valores simbólicos). “Marouços”. “Água- Levada”. “Folgozinho”. -
(Citadino): “Casa do João”.
“Casa de José e das primas”.
Social: Representantes
vários de diversos estratos sociais do mundo rural: Maridos
opressores, conquistadores, mulheres oprimidas, matriarcas, emigrantes,
marginais, burguesia rural, aristocracia rural …
Psicológico:
Monólogos interiores; sonhos;
visões; reflexões.
3.5- Personagens: Riqueza de caracterização.
Modeladas: Quina, protagonista. Germa.
(Aspectos comuns)
Planas: Bernardo Sanches. Maria; Francisco Teixeira;
Estina; Condessa de Monteros; João Abel; Custódia…
3.6 – Accção: (Inexistência
de intriga: ausência
de correlação de causa a efeito entre as cenas. Não sequência narrativa).
Central: Em torno de Quina:
Núcleos
predominantes: A
conquista do poder económico e espiritual. A análise introspectiva.
Secundária:
-
De relação com Quina: Caracterização
psicológica de Quina.
-
De caracterização dos comportamentos de personagens secundárias.
-
De caracterização de ambientes e costumes sociais.
- Referentes
aos elementos temáticos: Casamento; Noção de propriedade: Oposição
Cidade/Campo; Relações familiares; Luta de classes; A Morte…
3.7 – Estilo:
-
O discurso digressivo: Riqueza,
complexidade, densidade e propriedade vocabulares: Os discursos figurativos,
valorativos, conotativos, modalizantes. A linguagem cuidada. A reflexão, a
ironia. A terminologia e aforismos rurais. Os símbolos.
-
A
arte da rosácea: A
fragmentação, a ornamentação, o jogo de luz e sombra, a fixação momentânea, a
confluência na unidade através da multiplicidade: a confluência do real e do
transcendente, do profano e do sagrado, como a rosácea do templo, pólo unificador dos mundos temporal e
espiritual.
-
Universalidade
e intemporalidade da obra:
Porque exemplarmente retratado o Homem,
na sua dimensão múltipla, de aspirações, conflitos, relações, costumes e
crenças, num jogo constante entre o real e o transcendente, em
que o tempo ganha valor intemporal
e os espaços e coisas
valor simbólico, numa cosmogonia poderosa, através do veículo poderoso da
palavra, do dizível, da reflexão, da análise.
Foi em 1953 e 1954, que este livro de
Agustina alcançou dois prémios sucessivos – Delfim Guimarães e Eça de
Queirós – lembro-me do seu êxito, das referências à sua genialidade, sendo
ainda bastante jovem, 31 anos apenas. Mas nunca a li, mais centrada nas matérias
com que iniciava o percurso universitário e, mais tarde, desviada para outras leituras
do foro profissional ou de diversão mais ligeira. Realmente, o meu primeiro contacto
com Agustina tive-o por dever profissional, nesse ano lectivo de 1996/97, e se
o foi por dever de ofício, foi também de deslumbramento, como leitura
descodificada pelo excelente ensaio de M. Alzira Barahona. Um dia comprei “A Brusca” (Livros RTP), um livrinho de contos que logo pus de parte, como,
parecia-me, um retomar de universos já consabidos, e eu apreciar a ligeireza
dos livros de expressão mais clara e de enredos talvez de descodificação mais imediata
e aprazível.
Mas Agustina morreu, dela muito se fala,
com um entusiasmo que só a morte permite, apagadora de possíveis deslustres
vivenciais – o que não foi o seu caso. As vozes são unânimes nas loas à sua
inteligência e crítica criativa. Forcei-me, pois, a ler “A Brusca”, e concordei
com o que se diz da capacidade de Agustina
de
desmontar a alma humana numa penada reveladora de extraordinária sensibilidade
e argúcia crítica. Por isso é de lá, desse primeiro conto – A Brusca - que
extraio um passo comprovativo desse dom que só uma inteligência superior
possibilitou, aliada a um total domínio linguístico na sua expressão coesa de ironia
subentendida, conhecedora, como ninguém, do mundo, mas tranquilamente expresso,
sem pretender ofuscar com o brilho sensual do discurso queirosiano. E todavia,
ofuscando, na escalpelização simples, racional e definitiva desse comportamento
humano.
A Brusca
é uma bela mansão senhorial dos tempos de Afonso o Bolonhês, vendida por um “senhor d’Além, “homem
organizado nos vícios e promíscuo nas
confidências” a um “Camilo Timóteo,
de génio fadista mas agradável”, “com gostos literários” e “incapaz de procriar”,
ao qual transmite os seus “desgostos
de família”. Camilo Timóteo compra a mansão, leva para lá, além dos seus livros e as velhas cadeiras de
palhinha, uma mulher manceba que lhe encheu a casa de filhos, todos de
diferentes pais. A casa senhorial gradualmente se transformará em pardieiro, com
o aumento das crianças, obrigando a transformações tenebrosas, de indiferença
boçal pelo requinte do espaço. Transcrevo a página que o narra, e mais a figura
de uma mulher-mãe, sem pruridos de decência, aureolada, todavia por uma postura
de honestidade estrutural inocente, que só um espírito superior como o de
Agustina consegue descodificar, em remate magistral, mas onde sobressai
igualmente uma figura de homem, certamente que condenada à maledicência da
vizinhança pacóvia e cruel, no seu individualismo indiferente às opiniões
alheias, de uma certa fraqueza bonacheirona ou ingénua, de constante admiração
perante a vida. Eis a página:
«
Toda a casa, naquele correr de três salas com varandas de ferro cordoveses,
sofreu novos desastres com a prole da Tília que ia crescendo. Apareceram
quartos esquinados e ergueram-se tabiques num estilo aciganado. Parecia que uma
turba de saltimbancos acampara nos salões, com as suas tendas, os seus cães e o
guarda-roupa sujo. Depois, como uma clarabóia gigante, chegou a abrir-se uma
galeria junto ao telhado. Era como se o coração da Brusca fosse arrancado. Aquele
vão enorme, banhado duma luz poeirenta, causava o confrangimento dum corpo
aberto para uma autópsia. A Tília, mulher guedelhuda e caprichosa,
comandava as obras sem que Camilo Timóteo lhe pusesse travão. Ele era-lhe
reconhecido porque lhe vira sempre dedicação, e não pensava em impor-lhe os
seus próprios valores. Privá-la da maternidade parecia-lhe cruel. Amava as
crianças com um certo desprezo sem ilusões. Achava perversas as leis da
espécie e, no entanto, sagradas. Uma mulher fecunda causava-lhe uma certa
inquietação e até surpresa sempre nova; e, desse modo, quando a Tília apareceu
grávida pela segunda vez e calou durante uns tempos o seu estado, ele sentiu-se
comovido, mais do que humilhado. Ela era ainda rapariga e, apesar da sua vida
desabusada, guardava nela uma certa candura, uma espécie de confiança na vida
que excluía todo o pudor. Esse segundo filho teve-o dum dançarino então muito
conhecido nos ranchos populares. Era um homenzinho arisco e vaidoso, mestre na
gota e no vira cruzado. Gabava-se de ser o pai de três ou quatro crianças da
Tília, mas não era verdade. Depois que ele mostrara desprezar Camilo Timóteo e
se riu dele, a Tília deixou de lhe falar. Procurou-a bastantes vezes, mas só
encontrou uma frieza que ele não soube explicar. Até na traição há
uma fidelidade própria; uma mulher pode servir os sentidos e guardar um
respeito descarnado e extremo àquele a quem acaba de trair.
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