quarta-feira, 5 de junho de 2019

Na morte de AGUSTINA BESSA LUÍS



Foi num ensaio de Maria Alzira Barahona que comecei a perceber melhor a técnica narrativa em “A Sibila”, que tive de estudar para orientar um 12º ano, no ano lectivo de 96/97, sendo esse livro de Agustina B. Luís de leitura obrigatória. À admiração por Agustina sucedeu igualmente a gratidão por Maria Alzira Barahona, no seu estudo imprescindível a uma leiga, (tal como o foram os estudos de Carlos Reis para a descodificação de “Os Maias”), pois que os estudos literários dos meus primeiros anos de ensino nada tinham a ver ainda com técnicas estruturalistas abrangendo vários parâmetros de análise, embora o estudo estilístico estivesse já em foco, nos meus tempos de Coimbra.
Da leitura do trabalho de Alzira Barahona, de que perdi o rasto, mas julgo que terá o título que encontro citado na Internet – Um tempo de Derivação” - e da leitura prévia de “A Sibila”, resultaram, além da síntese dos capítulos, em tópicos, uma planificação para orientação de leitura, que reponho aqui, como homenagem a uma escritora, de facto, fabulosa, no descritivo conceituoso, breve e sardónico, de depuração humanística brilhante, reveladora de elaborado conhecimento do mundo e da alma, para além de outras dinâmicas de escrita, que o ensaio de MAB nos fez verificar. Limitarei a planificação apenas aos conteúdos programáticos, as estratégias seguidas baseando-se nos habituais exercícios do manual sobre leituras específicas, também de textos de apoio, o tempo para uma leitura integral sendo distribuído apenas por 12 tempos lectivos.

PLANIFICAÇÃO A MÉDIO/ CURTO PRAZO

D. O TEXTO NARRATIVO (Conclusão):
V- A NOVELÍSTICA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
1- INTRODUÇÃO: A EVOLUÇÃO DO ROMANCE NO SÉCULO XX:
a)      O rompimento com a herança realista: A fuga da realidade quotidiana, a desvalorização da diegese
b)      O simbolismo e a corrente da consciência: o predomínio da análise do eu. A recusa da cronologia linear -> A multiplicidade de planos temporais. O tempo da memória (La durée)
2- AGUSTINA BESSA LUÍS e a confluência de correntes várias: O romance rural (Herculano, Camilo): a corrente simbolista (Raul Brandão, Teixeira de Pascoais); o neo-realismo.

3- “A SIBILA”, uma obra original e universal:
3.1 – Estrutura:
Externa: 19 capítulos.
Interna: Estrutura circular (O fim retomando o início: A evocação de Germa, uma longa analepse). Todavia: Mobilidade constante do eixo da história, arquitectura labiríntica, fragmentária, ziguezagueante, com progressão temporal, mau grado o ritmo descontínuo.
3.2 – Narradores:
                        Homodiegético: Germa.
                               Heterodiegético: Autor, demiurgo, omnisciente.
3.3: Tempo:
                Cronológico: Cerca de um século. Marcos fundamentais: 1850 – (Nascimento de Maria); 1859 - (Conhece Francisco Teixeira); 1870 - (Casamento); 1877 – (Nascimento de Quina); 1917 - (Nascimento de Germa); 1950 - (Morte de Quina; 1953 - (Evocação de Germa).
Tempo do Discurso: Não uniforme, descontínuo, desordenado, evasivo, constantemente perturbado na sua linearidade por digressões, analepses, prolepses, justaposições (silepses), elipses, resumos, comentários, juízos de valor – tempo de memória.
Tempo psicológico: Morte de Quina, por exemplo –( Monólogo interior).
3.4 – Espaço:
            Físico:
- (Rural): “Entre-Douro e Minho”(Espaço privilegiado: “Quinta da Vessada” (Casa, cozinha, sala, quarto. Eira. Pombal (Valores simbólicos). “Marouços”. “Água- Levada”. “Folgozinho”. - (Citadino): “Casa do João”. “Casa de José e das primas”.
            Social: Representantes vários de diversos estratos sociais do mundo rural:  Maridos opressores, conquistadores, mulheres oprimidas, matriarcas, emigrantes, marginais, burguesia rural, aristocracia rural
            Psicológico: Monólogos interiores; sonhos; visões; reflexões.
3.5- Personagens: Riqueza de caracterização.
                Modeladas: Quina, protagonista. Germa. (Aspectos comuns)
Planas: Bernardo Sanches. Maria; Francisco Teixeira; Estina; Condessa de Monteros; João Abel; Custódia…
3.6 – Accção: (Inexistência de intriga: ausência de correlação de causa a efeito entre as cenas. Não sequência narrativa).
                Central: Em torno de Quina:
                               Núcleos predominantes: A conquista do poder económico e espiritual. A análise introspectiva.
                Secundária:
                        - De relação com Quina: Caracterização psicológica de Quina.
                               - De caracterização dos comportamentos de personagens secundárias.
                               - De caracterização de ambientes e costumes sociais.
- Referentes aos elementos temáticos: Casamento; Noção de propriedade: Oposição Cidade/Campo; Relações familiares; Luta de classes; A Morte…
3.7 – Estilo:
            - O discurso digressivo: Riqueza, complexidade, densidade e propriedade vocabulares: Os discursos figurativos, valorativos, conotativos, modalizantes. A linguagem cuidada. A reflexão, a ironia. A terminologia e aforismos rurais. Os símbolos.
                - A arte da rosácea: A fragmentação, a ornamentação, o jogo de luz e sombra, a fixação momentânea, a confluência na unidade através da multiplicidade: a confluência do real e do transcendente, do profano e do sagrado, como a rosácea do templo, pólo unificador dos mundos temporal e espiritual.
                - Universalidade e intemporalidade da obra: Porque exemplarmente retratado o Homem, na sua dimensão múltipla, de aspirações, conflitos, relações, costumes e crenças, num jogo constante entre o real e o transcendente, em que o tempo ganha valor intemporal e os espaços e coisas valor simbólico, numa cosmogonia poderosa, através do veículo poderoso da palavra, do dizível, da reflexão, da análise.

Foi em 1953 e 1954, que este livro de Agustina alcançou dois prémios sucessivos – Delfim Guimarães e Eça de Queirós – lembro-me do seu êxito, das referências à sua genialidade, sendo ainda bastante jovem, 31 anos apenas. Mas nunca a li, mais centrada nas matérias com que iniciava o percurso universitário e, mais tarde, desviada para outras leituras do foro profissional ou de diversão mais ligeira. Realmente, o meu primeiro contacto com Agustina tive-o por dever profissional, nesse ano lectivo de 1996/97, e se o foi por dever de ofício, foi também de deslumbramento, como leitura descodificada pelo excelente ensaio de M. Alzira Barahona. Um dia comprei “A Brusca” (Livros RTP), um livrinho de contos que logo pus de parte, como, parecia-me, um retomar de universos já consabidos, e eu apreciar a ligeireza dos livros de expressão mais clara e de enredos talvez de descodificação mais imediata e aprazível.
Mas Agustina morreu, dela muito se fala, com um entusiasmo que só a morte permite, apagadora de possíveis deslustres vivenciais – o que não foi o seu caso. As vozes são unânimes nas loas à sua inteligência e crítica criativa. Forcei-me, pois, a ler “A Brusca”, e concordei com o que se diz da capacidade de Agustina de desmontar a alma humana numa penada reveladora de extraordinária sensibilidade e argúcia crítica. Por isso é de lá, desse primeiro conto – A Brusca - que extraio um passo comprovativo desse dom que só uma inteligência superior possibilitou, aliada a um total domínio linguístico na sua expressão coesa de ironia subentendida, conhecedora, como ninguém, do mundo, mas tranquilamente expresso, sem pretender ofuscar com o brilho sensual do discurso queirosiano. E todavia, ofuscando, na escalpelização simples, racional e definitiva desse comportamento humano.
A Brusca é uma bela mansão senhorial dos tempos de Afonso o Bolonhês, vendida por um “senhor d’Além, “homem organizado nos vícios e promíscuo nas confidências” a um “Camilo Timóteo, de génio fadista mas agradável”, “com gostos literários” e “incapaz de procriar”, ao qual transmite os seus “desgostos de família”. Camilo Timóteo compra a mansão, leva para lá, além dos seus livros e as velhas cadeiras de palhinha, uma mulher manceba que lhe encheu a casa de filhos, todos de diferentes pais. A casa senhorial gradualmente se transformará em pardieiro, com o aumento das crianças, obrigando a transformações tenebrosas, de indiferença boçal pelo requinte do espaço. Transcrevo a página que o narra, e mais a figura de uma mulher-mãe, sem pruridos de decência, aureolada, todavia por uma postura de honestidade estrutural inocente, que só um espírito superior como o de Agustina consegue descodificar, em remate magistral, mas onde sobressai igualmente uma figura de homem, certamente que condenada à maledicência da vizinhança pacóvia e cruel, no seu individualismo indiferente às opiniões alheias, de uma certa fraqueza bonacheirona ou ingénua, de constante admiração perante a vida. Eis a página:

« Toda a casa, naquele correr de três salas com varandas de ferro cordoveses, sofreu novos desastres com a prole da Tília que ia crescendo. Apareceram quartos esquinados e ergueram-se tabiques num estilo aciganado. Parecia que uma turba de saltimbancos acampara nos salões, com as suas tendas, os seus cães e o guarda-roupa sujo. Depois, como uma clarabóia gigante, chegou a abrir-se uma galeria junto ao telhado. Era como se o coração da Brusca fosse arrancado. Aquele vão enorme, banhado duma luz poeirenta, causava o confrangimento dum corpo aberto para uma autópsia. A Tília, mulher guedelhuda e caprichosa, comandava as obras sem que Camilo Timóteo lhe pusesse travão. Ele era-lhe reconhecido porque lhe vira sempre dedicação, e não pensava em impor-lhe os seus próprios valores. Privá-la da maternidade parecia-lhe cruel. Amava as crianças com um certo desprezo sem ilusões. Achava perversas as leis da espécie e, no entanto, sagradas. Uma mulher fecunda causava-lhe uma certa inquietação e até surpresa sempre nova; e, desse modo, quando a Tília apareceu grávida pela segunda vez e calou durante uns tempos o seu estado, ele sentiu-se comovido, mais do que humilhado. Ela era ainda rapariga e, apesar da sua vida desabusada, guardava nela uma certa candura, uma espécie de confiança na vida que excluía todo o pudor. Esse segundo filho teve-o dum dançarino então muito conhecido nos ranchos populares. Era um homenzinho arisco e vaidoso, mestre na gota e no vira cruzado. Gabava-se de ser o pai de três ou quatro crianças da Tília, mas não era verdade. Depois que ele mostrara desprezar Camilo Timóteo e se riu dele, a Tília deixou de lhe falar. Procurou-a bastantes vezes, mas só encontrou uma frieza que ele não soube explicar. Até na traição há uma fidelidade própria; uma mulher pode servir os sentidos e guardar um respeito descarnado e extremo àquele a quem acaba de trair.

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