Um poderoso texto de Paulo Tunhas, sobre a exactidão das figuras reais que
ficam na história, descritas segundo o maior ou menor rigor ou imparcialidade
dos que sobre eles se debruçam, a “clara certidom da verdade”, muitas vezes
dependente, afinal, do ponto de vista de quem a procura. Porque as personagens
dos romances, das tragédias ou das comédias ali estão, imperecíveis, reais,
certeiras, como as ditou o engenho do seu criador.
PERSONAGENS
Romance e história, através dos seus
tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos
géneros permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos
gritam.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 11 nov 2021
Há uma passagem do Ricardo
II de Shakespeare que vive
comigo desde que primeiro a li. É no princípio da quinta cena, a penúltima da
peça, do acto V. Ricardo encontra-se na sua cela e em breve será assassinado.
Entretanto, vai tentando comparar a prisão onde vive com o mundo. Mas o mundo é
povoado por homens e na sua cela ele está sozinho. É, no entanto, preciso
convocar a presença humana. E, para isso, “o meu cérebro tornar-se-á a fêmea
da minha alma; a minha alma será o pai: ambas engendrarão uma geração de ideias
constantemente produtoras e todas essas ideias povoarão este pequeno mundo, e
povoá-lo-ão de inconsequências, como é povoado o universo; pois não há
pensamento algum que se satisfaça”.
Em
circunstâncias menos trágicas, tal é a experiência do leitor, com a diferença
que o cérebro e a alma se encontram nos livros, nos quais a procriação das
ideias se oferece como espectáculo a quem os lê. Dependendo daquilo que se
poderia chamar a nossa energia de crença, as personagens engendradas pela
imaginação do autor vão preenchendo essa particular cela que é a nossa mente.
As personagens vão saindo da noite do mundo e passamos a viver no meio delas,
como se a prisão não existisse, nem a nossa solidão.
Ando,
por razões profissionais, a reler aquelas que são talvez as duas maiores obras
de prosa do nosso século XIX, o Portugal
Contemporâneo e Os Maias.
E, sem surpresa, constato mais uma vez que as personagens do livro de Eça se
imprimem na memória de um modo muito mais claro e definido do que as de
Oliveira Martins. Não me surpreendendo, como disse, a coisa maravilha-me. Mesmo
sabendo muito bem a razão de isto ser assim: a
diferença entre os géneros literários que são o romance e a história.
É
que, no primeiro caso, as personagens são por inteiro, no que possuem de mais
relevante, uma criação do autor e os seus gestos e intenções têm, tanto quanto
possível, uma forma acabada que não apela, para a sua compreensão inteira, a
nada de exterior ao romance, pelo menos no que ao prazer da leitura diz
respeito. Para as conhecermos integralmente, basta-nos a leitura do próprio
romance. Se se quiser, por exemplo, saber quem são João da Ega ou Dâmaso
Salcede basta-nos ler Os Maias. Não é preciso andar a buscar noutros
livros características que nos ajudem a identificá-los. Eles estão ali
inteiros, de corpo e alma.
No
caso das personagens históricas, a situação não podia ser mais diferente. Por
mais efectivos que sejam o estilo, o saber e a visão do historiador, por maior
que seja o seu poder não só de persuasão, mas de convicção, há sempre um resto
que sobra, e esse resto temos de o ir procurar noutros livros, que nos ajudarão
eventualmente a corrigir a imagem que o livro que lemos nos dá. Em Oliveira Martins, por exemplo, D. Pedro. Será que o seu traço dominante era a vaidade, como
Oliveira Martins não se cansa de repetir? Para as personagens
do Portugal Contemporâneo, mesmo nos casos que nos aparecem dotados de uma
maior evidência, como o de Teles Jordão e do seu filho, “o menino”, que logo
se fixam na memória, temos de confrontar Oliveira Martins com outros historiadores, como, limitando-nos aos
nossos contemporâneos, Vasco Pulido
Valente, Maria de Fátima Bonifácio
ou Rui Ramos. Mais, talvez, até nos casos em que a caracterização de
Oliveira Martins é razoavelmente unívoca – a daqueles que escapam à sua crítica
impiedosa do liberalismo: Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Herculano e,
em parte (por causa do Frei Luís de Sousa), Garrett, quase todos “vítimas”
– do que quando – como D. Miguel ou Saldanha – ele usa de um estilo que, para
nos dar a imagem da vida, é feito de caracterizações contraditórias, e que é,
de resto, extraordinariamente conseguido.
Se
isto é assim, é por uma razão simples de perceber. É que a
história conhece um abismo que o romance ignora. O abismo é o da existência real passada. É –
vale a pena usar aqui o jargão filosófico – um abismo ontológico. Lidamos,
na história, com personagens que existiram realmente no passado, e o puro facto
dessa existência constitui um resíduo que não é nunca inteiramente capturável
pelo espírito. A
“revivescência” que Michelet procurava, e que Oliveira Marins buscava também,
deixa sempre margem para a pergunta ingénua, mas imprescindível, porque nela se
encontra a maravilha da história: terão
sido realmente assim? Uma pergunta que, obviamente, o romance não nos convida a
fazer.
A
história mostra-nos incansavelmente, com um sucesso variável, que o passado
existe (não digo: existiu; digo: existe).
Quando o consegue de forma satisfatória, é um milagre maior, sobretudo nos
nossos tempos, em que tudo conspira para, por processos frustes ou subtis, o
negar mais ou menos selectivamente. No romance não é assim. Também por
uma espécie de milagre, embora de natureza muito diversa, tudo, mesmo que o
romance lide com um tempo distante do nosso, aparece dotado da evidência do
presente. Porque o romance não conhece o abismo que a história
conhece. Não há nele qualquer existência real passada que resista à captura do
nosso espírito. Os
Maias comunicam directamente com o nosso presente, sem necessidade de
mediações ou explicações. Aristóteles, e depois
dele Schopenhauer, tinham razão em afirmar que a poesia
(e é legítimo acrescentar: o romance) é mais universal do que a história, que
se encontra presa ao contingente. Mas
é preciso acrescentar que é o contacto sempre precário com esse contingente,
esse contingente cuja existência é um enigma perpetuamente renovado, que torna
a história um dos mais fascinantes géneros literários.
De qualquer maneira, romance e história,
através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa
cela. E cada um dos géneros permite-nos
pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam a reivindicar a
nossa atenção à sua dúbia existência. Por estes dias: Costa, Marcelo e Rio. E, pondo-os no seu devido lugar, vamo-nos
protegendo, na medida do possível, do péssimo espectáculo que eles, presenças
humanas que não apetece convocar, nos dão. Não é pouco.
COMENTÁRIOS:
Henrique Ribeiro: Também a
excelsa escrita de PT maravilha. Lê-lo
é um enorme e indubitável prazer.
josé maria: A Greta
Thunberg faz muito mais pelo cuidado heideggeriano do Ser do que toda a vã
filosofia de Paulo Tunhas...
João Floriano > josé maria: Ah!Ah!Ah!
Caro José Maria, o ridículo tem limites. Como é que dizia o outro seu amigo?
Ubuntu! A Greta não é mais do que uma marionette nas mãos de interesses
que de heideggerianos não têm nada. Está de novo a comparar lagartixas
com crocodilos. Mas como anedota do dia, está bem boa. Cisca Impllit: Como sempre, muito bom! Tira-nos do pensamento
trivial para nos mostrar os triviais! Duarte Correia: Para um texto ser classificado de bom (e
"bom" é aqui o máximo), basta que encerre uma ideia nova. O estabelecimento fundamentado desta fronteira entre
dois discursos, o da ficção e o do real, não da realidade (Althusser, Karel
Kosik), constitui um bom ponto alto, uma boa achega na elaboração da teoria dos
géneros. Aprende-se
sempre com quem tem coisas para dizer, e que sabe dizê-las.
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