sexta-feira, 12 de novembro de 2021

As personagens


Um poderoso texto de Paulo Tunhas, sobre a exactidão das figuras reais que ficam na história, descritas segundo o maior ou menor rigor ou imparcialidade dos que sobre eles se debruçam, a “clara certidom da verdade”, muitas vezes dependente, afinal, do ponto de vista de quem a procura. Porque as personagens dos romances, das tragédias ou das comédias ali estão, imperecíveis, reais, certeiras, como as ditou o engenho do seu criador.

PERSONAGENS

Romance e história, através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos géneros permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 11 nov 2021

Há uma passagem do Ricardo II de Shakespeare que vive comigo desde que primeiro a li. É no princípio da quinta cena, a penúltima da peça, do acto V. Ricardo encontra-se na sua cela e em breve será assassinado. Entretanto, vai tentando comparar a prisão onde vive com o mundo. Mas o mundo é povoado por homens e na sua cela ele está sozinho. É, no entanto, preciso convocar a presença humana. E, para isso, “o meu cérebro tornar-se-á a fêmea da minha alma; a minha alma será o pai: ambas engendrarão uma geração de ideias constantemente produtoras e todas essas ideias povoarão este pequeno mundo, e povoá-lo-ão de inconsequências, como é povoado o universo; pois não há pensamento algum que se satisfaça”.

Em circunstâncias menos trágicas, tal é a experiência do leitor, com a diferença que o cérebro e a alma se encontram nos livros, nos quais a procriação das ideias se oferece como espectáculo a quem os lê. Dependendo daquilo que se poderia chamar a nossa energia de crença, as personagens engendradas pela imaginação do autor vão preenchendo essa particular cela que é a nossa mente. As personagens vão saindo da noite do mundo e passamos a viver no meio delas, como se a prisão não existisse, nem a nossa solidão.

Ando, por razões profissionais, a reler aquelas que são talvez as duas maiores obras de prosa do nosso século XIX, o Portugal Contemporâneo e Os Maias. E, sem surpresa, constato mais uma vez que as personagens do livro de Eça se imprimem na memória de um modo muito mais claro e definido do que as de Oliveira Martins. Não me surpreendendo, como disse, a coisa maravilha-me. Mesmo sabendo muito bem a razão de isto ser assim: a diferença entre os géneros literários que são o romance e a história.

É que, no primeiro caso, as personagens são por inteiro, no que possuem de mais relevante, uma criação do autor e os seus gestos e intenções têm, tanto quanto possível, uma forma acabada que não apela, para a sua compreensão inteira, a nada de exterior ao romance, pelo menos no que ao prazer da leitura diz respeito. Para as conhecermos integralmente, basta-nos a leitura do próprio romance. Se se quiser, por exemplo, saber quem são João da Ega ou Dâmaso Salcede basta-nos ler Os Maias. Não é preciso andar a buscar noutros livros características que nos ajudem a identificá-los. Eles estão ali inteiros, de corpo e alma.

No caso das personagens históricas, a situação não podia ser mais diferente. Por mais efectivos que sejam o estilo, o saber e a visão do historiador, por maior que seja o seu poder não só de persuasão, mas de convicção, há sempre um resto que sobra, e esse resto temos de o ir procurar noutros livros, que nos ajudarão eventualmente a corrigir a imagem que o livro que lemos nos dá. Em Oliveira Martins, por exemplo, D. Pedro. Será que o seu traço dominante era a vaidade, como Oliveira Martins não se cansa de repetir? Para as personagens do Portugal Contemporâneo, mesmo nos casos que nos aparecem dotados de uma maior evidência, como o de Teles Jordão e do seu filho, “o menino”, que logo se fixam na memória, temos de confrontar Oliveira Martins com outros historiadores, como, limitando-nos aos nossos contemporâneos, Vasco Pulido Valente, Maria de Fátima Bonifácio ou Rui Ramos. Mais, talvez, até nos casos em que a caracterização de Oliveira Martins é razoavelmente unívoca – a daqueles que escapam à sua crítica impiedosa do liberalismo: Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Herculano e, em parte (por causa do Frei Luís de Sousa), Garrett, quase todos “vítimas” – do que quando – como D. Miguel ou Saldanha – ele usa de um estilo que, para nos dar a imagem da vida, é feito de caracterizações contraditórias, e que é, de resto, extraordinariamente conseguido.

Se isto é assim, é por uma razão simples de perceber. É que a história conhece um abismo que o romance ignora. O abismo é o da existência real passada. É – vale a pena usar aqui o jargão filosófico – um abismo ontológico. Lidamos, na história, com personagens que existiram realmente no passado, e o puro facto dessa existência constitui um resíduo que não é nunca inteiramente capturável pelo espírito. A “revivescência” que Michelet procurava, e que Oliveira Marins buscava também, deixa sempre margem para a pergunta ingénua, mas imprescindível, porque nela se encontra a maravilha da história: terão sido realmente assim? Uma pergunta que, obviamente, o romance não nos convida a fazer.

A história mostra-nos incansavelmente, com um sucesso variável, que o passado existe (não digo: existiu; digo: existe). Quando o consegue de forma satisfatória, é um milagre maior, sobretudo nos nossos tempos, em que tudo conspira para, por processos frustes ou subtis, o negar mais ou menos selectivamente. No romance não é assim. Também por uma espécie de milagre, embora de natureza muito diversa, tudo, mesmo que o romance lide com um tempo distante do nosso, aparece dotado da evidência do presente. Porque o romance não conhece o abismo que a história conhece. Não há nele qualquer existência real passada que resista à captura do nosso espírito. Os Maias comunicam directamente com o nosso presente, sem necessidade de mediações ou explicações. Aristóteles, e depois dele Schopenhauer, tinham razão em afirmar que a poesia (e é legítimo acrescentar: o romance) é mais universal do que a história, que se encontra presa ao contingente. Mas é preciso acrescentar que é o contacto sempre precário com esse contingente, esse contingente cuja existência é um enigma perpetuamente renovado, que torna a história um dos mais fascinantes géneros literários.

De qualquer maneira, romance e história, através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos géneros permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam a reivindicar a nossa atenção à sua dúbia existência. Por estes dias: Costa, Marcelo e Rio. E, pondo-os no seu devido lugar, vamo-nos protegendo, na medida do possível, do péssimo espectáculo que eles, presenças humanas que não apetece convocar, nos dão. Não é pouco.

CRÓNICA   OBSERVADOR

COMENTÁRIOS:

Henrique Ribeiro: Também a excelsa escrita de PT maravilha. Lê-lo é um enorme e indubitável prazer.    josé maria: A Greta Thunberg faz muito mais pelo cuidado heideggeriano do Ser do que toda a vã filosofia de Paulo Tunhas...         João Floriano > josé maria: Ah!Ah!Ah! Caro José Maria, o ridículo tem limites. Como é que dizia o outro seu amigo? Ubuntu!  A Greta não é mais do que uma marionette nas mãos de interesses que de heideggerianos não têm nada.  Está de novo a comparar lagartixas com crocodilos. Mas como anedota do dia, está bem boa.         Cisca Impllit: Como sempre, muito bom!  Tira-nos do pensamento trivial para nos mostrar os triviais!          Duarte Correia: Para um texto ser classificado de bom (e "bom" é aqui o máximo), basta que encerre uma ideia nova. O estabelecimento fundamentado desta fronteira entre dois discursos, o da ficção e o do real, não da realidade (Althusser, Karel Kosik), constitui um bom ponto alto, uma boa achega na elaboração da teoria dos géneros. Aprende-se sempre com quem tem coisas para dizer, e que sabe dizê-las.

 

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