segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Uma limpeza


De corpos. De almas. Com esta das vidas não apetecidas. Idas.

Portugal e eutanásia: para onde caminhamos?    

Porque caminhamos? Pela aparente bondade da opção legislativa ou talvez como forma de desinvestir em cuidados paliativos e de, no futuro, combater o excesso de população e a escassez de recursos?

CÁTIA RODRIGUES MATOS, Doutoranda em Direito na Universidade Católica Portuguesa e Advogada-Estagiária

OBSERVADOR, 02 fev 2020

Assumir um posicionamento no que toca à despenalização da eutanásia e do suicídio assistido requer um esforço de reflexão e de ponderação, esforço esse que deverá traduzir-se num processo; e atender não apenas a circunstâncias concretas, mas ao todo (encarado como uma realidade pluralista que compreende os contextos nacional, europeu, internacional e global) em que nos inserimos e às perspetivas de evolução futura.

Ora, legislar no sentido de despenalizar a eutanásia pode, com efeito, traduzir-se na remoção da proibição jurídico-penal da prática ou acto de “dar a morte” a alguém que sofre. O término do sofrimento de alguém que padece de “lesão definitiva ou doença incurável e fatal” e que manifesta a sua vontade livre, esclarecida e reiterada de pôr fim a esse sofrimento, pode reputar-se como humanamente aceitável ou mesmo desejável; como uma forma de respeitar a liberdade individual e a dignidade daquele que sofre.

Não me choca de sobremaneira que doentes que padeçam de enfermidades como a doença de Huntington, esclerose múltipla, Parkinson, Alzheimer, ou qualquer tipo de cancro incurável possam encurtar o seu sofrimento, se essa for a sua vontade livre, esclarecida e reiterada.

O que, para mim, será mais difícil de aceitar é a opção do Estado pelo não investimento ou mesmo pelo desinvestimento nos cuidados paliativos, no apoio a cuidadores formais e informais, na criação de mais estruturas e grupos de apoio e no reforço da rede de hospitais do SNS, de forma a permitir o internamento daqueles que dele necessitam.

É-me igualmente difícil de aceitar que, ainda que alguém não padeça de uma doença incurável e fatal, tenha de (con)viver com esse desinteresse do Estado e que a eutanásia e o suicídio assistido sejam ponderados como a solução para minimizar o sofrimento de paraplégicos, tetraplégicos, cegos e surdos (apenas a título de exemplo e tal como já sucedeu noutros países da UE). É-me difícil aceitar que o Estado e a Sociedade que ele representa não equacionem reforçar verdadeiramente os meios de apoio a quem padece dessas enfermidades, entre outras, de forma a auxiliar essas pessoas para que tenham uma vida não apenas menos sofrida, mas também o mais plena e feliz possível, de tal modo que o recurso à eutanásia não seja sequer algo a ponderar.

Recorrendo ao slippery slope argument e assumindo como possível uma evolução paralela àquela que se tem verificado na Holanda e na Bélgica, importa considerar que a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, ainda que mediante aprovação de uma lei inicialmente restritiva, com requisitos de admissibilidade exigentes, poderá, no futuro, culminar no alargamento desses mesmos requisitos e numa maior permissividade do regime estabelecido. Ora, tal poderá suceder por a sociedade já ter experienciado um período de adaptação, com alteração ou flexibilização dos padrões éticos e morais vigentes; e/ou por recurso aos princípios da igualdade e da não discriminação.

Destarte, a admissibilidade da eutanásia em situações que, num primeiro momento legislativo, não se reputaram como desejáveis ou sequer aceitáveis poderá vir a concretizar-se. O que pode vir a verificar-se relativamente a doentes menores (com ou sem idade mínima, e podendo ser aqui incluídos os recém-nascidos – viabilizando a eutanásia sem consentimento do doente); a doentes que rejeitem tratamentos alternativos; a portadores de anomalia psíquica ou de doença do foro mental; e a idosos que estejam “cansados de viver”.

No que respeita aos interditos, aos inabilitados e às demais situações em que a pessoa não seja ou não esteja capaz de decidir, bem como aos pacientes que não estejam conscientes, note-se que a evolução poderá dar-se no sentido de se  prescindir do seu consentimento ou manifestação de vontade; ou pelo menos dessa manifestação no momento que antecede a morte por eutanásia ou suicídio assistido.

Já no que concerne aos idosos e à questão do comprimido letal, será possível garantir que o comprimido é ingerido pelo próprio em virtude de ser essa a sua vontade livre e esclarecida? Como garantiremos que um idoso que toma medicação diversa não ingere o medicamento por o ter confundido com um outro? E que a ingestão do fármaco não é fruto de um momento ou período de desespero, decorrente de um estado depressivo? Ou mesmo do facto de a pessoa se sentir “um fardo” para os outros? Já para não mencionar o risco de um cuidador ou qualquer pessoa próxima com acesso ao fármaco e ideação suicida o tomar no lugar do idoso; ou o perigo real e fatal que representará para uma criança que encontre o fármaco e o tome (veja-se o que sucede com as armas de fogo).

Muitas outras questões poderiam ser suscitadas, todavia procurarei concluir com apenas três que considero serem essenciais e suscetíveis de abarcar tudo quanto foi exposto.

Em primeiro lugar, porque caminhamos? Pela aparente bondade da opção legislativa ou talvez como forma de desinvestir em cuidados paliativos e de, no futuro, combater o excesso de população, o envelhecimento e/ou a escassez de recursos?

Em segundo lugar, para onde caminhamos? O que poderá seguir-se à despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, nos moldes e nos termos das actuais propostas?

Finalmente e desta forma concluindo: será que queremos e, sobretudo, será que estamos preparados para iniciar esta caminhada?

EUTANÁSIA   SAÚDE


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