De corpos. De almas. Com esta das vidas não apetecidas. Idas.
Portugal
e eutanásia: para onde caminhamos?
Porque caminhamos? Pela aparente
bondade da opção legislativa ou talvez como forma de desinvestir em cuidados
paliativos e de, no futuro, combater o excesso de população e a escassez de
recursos?
CÁTIA RODRIGUES MATOS, Doutoranda em Direito na Universidade Católica
Portuguesa e Advogada-Estagiária
OBSERVADOR, 02 fev 2020
Assumir
um posicionamento no que toca à despenalização da eutanásia e do suicídio
assistido requer um esforço de reflexão e de ponderação, esforço esse que
deverá traduzir-se num processo; e atender não apenas a circunstâncias
concretas, mas ao todo (encarado como uma realidade pluralista que compreende
os contextos nacional, europeu, internacional e global) em que nos inserimos e
às perspetivas de evolução futura.
Ora,
legislar no sentido de despenalizar a eutanásia pode, com efeito, traduzir-se
na remoção da proibição jurídico-penal da prática ou acto de “dar a morte” a
alguém que sofre. O término do sofrimento de alguém que padece de “lesão
definitiva ou doença incurável e fatal” e que manifesta a sua vontade livre,
esclarecida e reiterada de pôr fim a esse sofrimento, pode reputar-se como
humanamente aceitável ou mesmo desejável; como uma forma de respeitar a
liberdade individual e a dignidade daquele que sofre.
Não
me choca de sobremaneira que doentes que padeçam de enfermidades como a doença
de Huntington, esclerose múltipla, Parkinson, Alzheimer, ou qualquer tipo de
cancro incurável possam encurtar o seu sofrimento, se essa for a sua vontade
livre, esclarecida e reiterada.
O
que, para mim, será mais difícil de aceitar é a opção do Estado pelo não
investimento ou mesmo pelo desinvestimento nos cuidados paliativos, no apoio a
cuidadores formais e informais, na criação de mais estruturas e grupos de apoio
e no reforço da rede de hospitais do SNS, de forma a permitir o internamento
daqueles que dele necessitam.
É-me
igualmente difícil de aceitar que, ainda que alguém não padeça de uma doença
incurável e fatal, tenha de (con)viver com esse desinteresse do Estado e que a
eutanásia e o suicídio assistido sejam ponderados como a solução para minimizar
o sofrimento de paraplégicos, tetraplégicos, cegos e surdos (apenas a título de
exemplo e tal como já sucedeu noutros países da UE). É-me difícil aceitar que o
Estado e a Sociedade que ele representa não equacionem reforçar verdadeiramente
os meios de apoio a quem padece dessas enfermidades, entre outras, de forma a
auxiliar essas pessoas para que tenham uma vida não apenas menos sofrida, mas
também o mais plena e feliz possível, de tal modo que o recurso à eutanásia não
seja sequer algo a ponderar.
Recorrendo
ao slippery
slope argument e
assumindo como possível uma evolução paralela àquela que se tem verificado na
Holanda e na Bélgica, importa considerar que a despenalização da eutanásia e
do suicídio assistido, ainda que mediante aprovação de uma lei inicialmente
restritiva, com requisitos de admissibilidade exigentes, poderá, no futuro,
culminar no alargamento desses mesmos requisitos e numa maior permissividade do
regime estabelecido. Ora, tal poderá suceder por a sociedade já ter
experienciado um período de adaptação, com alteração ou flexibilização dos
padrões éticos e morais vigentes; e/ou por recurso aos princípios da igualdade
e da não discriminação.
Destarte, a admissibilidade da eutanásia
em situações que, num primeiro momento legislativo, não se reputaram como
desejáveis ou sequer aceitáveis poderá vir a concretizar-se. O que pode vir a
verificar-se relativamente a doentes menores (com ou sem idade mínima, e
podendo ser aqui incluídos os recém-nascidos – viabilizando a eutanásia sem
consentimento do doente); a doentes que rejeitem tratamentos alternativos; a
portadores de anomalia psíquica ou de doença do foro mental; e a idosos que
estejam “cansados de viver”.
No que respeita aos interditos, aos
inabilitados e às demais situações em que a pessoa não seja ou não esteja capaz
de decidir, bem como aos pacientes que não estejam conscientes, note-se que a
evolução poderá dar-se no sentido de se prescindir do seu consentimento
ou manifestação de vontade; ou pelo menos dessa manifestação no momento que
antecede a morte por eutanásia ou suicídio assistido.
Já no que concerne aos idosos e à
questão do comprimido letal, será possível garantir que o comprimido é ingerido
pelo próprio em virtude de ser essa a sua vontade livre e esclarecida? Como garantiremos que um idoso que toma medicação
diversa não ingere o medicamento por o ter confundido com um outro? E que a
ingestão do fármaco não é fruto de um momento ou período de desespero,
decorrente de um estado depressivo? Ou mesmo do facto de a pessoa se sentir “um
fardo” para os outros? Já para não mencionar o risco de um cuidador ou qualquer
pessoa próxima com acesso ao fármaco e ideação suicida o tomar no lugar do
idoso; ou o perigo real e fatal que representará para uma criança que encontre
o fármaco e o tome (veja-se o que sucede com as armas de fogo).
Muitas
outras questões poderiam ser suscitadas, todavia procurarei concluir com apenas
três que considero serem essenciais e suscetíveis de abarcar tudo quanto foi
exposto.
Em
primeiro lugar, porque caminhamos? Pela aparente bondade da opção
legislativa ou talvez como forma de desinvestir em cuidados paliativos e de, no
futuro, combater o excesso de população, o envelhecimento e/ou a escassez de
recursos?
Em
segundo lugar, para onde caminhamos? O que poderá seguir-se à
despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, nos moldes e nos termos
das actuais propostas?
Finalmente
e desta forma concluindo: será que queremos e, sobretudo, será que estamos
preparados para iniciar esta caminhada?
Nenhum comentário:
Postar um comentário