A descobrir a careca de uma sociedade regida por fanatismos ameaçadores da saúde mental humana. Uma crónica que desmascara com sensatez, apoiada nas leituras que recomenda, toda esta onda de pânico em torno de uma covid peganhenta e de alterações climáticas ameaçadores da extinção do nosso mundo. Excelente texto de NUNO GONÇALO POÇAS, Colunista do Observador. Advogado, autor de "Presos Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril. Bem-haja por ele. Mas pelo sim, pelo não, vacine-se como nós outros, os do rebanho assustado. Crónicas como esta são necessárias ao desembrutecimento manipulado por fanatismos alarmistas, para domínio dos corpos e dos espíritos.
Tenha calma, é só mais um fim do mundo
O que temos hoje, no meio da
barulheira de profetas do apocalipse, é uma cruzada que ignora os pobres e que
vem carregada de um moralismo que, no fundo, não é mais que a base de qualquer
totalitarismo
NUNO GONÇALO POÇAS
OBSERVADOR, 23
nov 2021
1Recentemente,
numa entrevista ao semanário Nascer do Sol, o professor António Vaz Carneiro referiu-se a dois estudos que demonstram que as
opiniões, mesmo as que deviam ser técnicas e científicas, sobre a Covid-19 estão revestidas de uma religiosidade que nos devia
impressionar: no
primeiro, americano, tinham
perguntado a cidadãos em confinamento se consideravam moralmente
justificável o desvio de recursos de doentes não-covid para doentes covid; no
segundo, neo-zelandês, perguntava-se se,
perante um conjunto de dados objectivos e factuais que contrariavam a ideia de
que é possível eliminar o vírus, as pessoas aceitavam esses dados.
No
primeiro caso, ficou demonstrado que as
pessoas dão prioridade à covid-19, mesmo
quando lhes explicam que o impacto dessa opção nos outros doentes é quatro ou
cinco vezes maior. No segundo caso, as pessoas demonstram a sua
convicção relativamente à possibilidade de eliminar o vírus, mesmo quando
confrontadas com dados que lhes demonstravam o contrário.
Vaz
Carneiro parte
destes dois exemplos para reconhecer que há em tudo isto um caso muito
interessante e curioso de moral cleansing (limpeza moral), a ideia de
que a uma posição,
que devia ser apenas objectiva e técnica, passa a ter, acima de tudo, um revestimento de superioridade moral, pelo que o que temos assistido nos últimos dois anos,
seja do lado de fanáticos pró-confinamentos ou radicais anti-vacinas, é à evolução inédita da religiosidade no campo da saúde
pública. O resultado é evidente: deste
revestimento moral de
posições que deviam ser objecto de discussão e debate para alcançar um
objectivo (a saúde pública), nasce uma situação em que se torna impossível
chegar a posições profícuas, equilibradas e proporcionais, porque se considera
que uns estão a seguir a ciência e os outros estão a negar a
ciência.
Muita gente tem dito que o País (e o
mundo, já agora) se encheu de epidemiologistas, que há em cada um de nós um especialista em saúde pública,
como se as opiniões sobre a pandemia só pudessem ser expressas por médicos,
cientistas, matemáticos ou membros do Governo. Não é verdade. O que aconteceu foi que todos passámos a estar
perante um fenómeno de natureza
social, como é
uma pandemia, e tirámos sobre ele as nossas conclusões, como tiramos, enquanto
cidadãos de países democráticos, sobre outros fenómenos de naturezas diferentes. O que
interessaria, em todo e qualquer caso, era que o debate gerado fosse feito de
maneira informada, com capacidade de ouvir opiniões contrárias e sem juízos
morais.
Haverá,
por exemplo, quem ache que o vírus não existe, ou que, a existir, chegou de
Marte pelas mãos de uma farmacêutica intergaláctica que pretende destruir a
vida na Terra. Admito que
sim, embora não conheça nenhum espécime deste género. Mas num País em que a
população elegível para vacinação está praticamente toda vacinada, não será
absurdo dizer que esta é uma minoria muito, muito, muito pequenina. Por
outro lado, há pessoas que passaram um ano a achar normal coisas
como: usar máscara quando se anda sozinho na rua ou no carro; supermercados
impedidos de vender bebidas alcoólicas depois das 19h00; ser proibido comprar
um jornal ou um maço de tabaco numa bomba de gasolina ao fim-de-semana depois
das 13h00; um jovem ir sozinho à praia e ser perseguido pela polícia no areal. O rol de
medidas absurdas e desproporcionais não tem fim. Como não
tem fim a aceitação generalizada de todas elas. Há até
quem ache preferível viver num País que tem a covid-19 controlada mas um
excesso de mortalidade por outras causas nunca visto, a viver num País que tem
a covid-19 pouco controlada, mas com a mortalidade global dentro do que é
expectável – o que é preciso é olhar para a sociedade pela lente de
uma doença única. Estas
pessoas, segundo a narrativa que se tornou dominante, seguem a ciência. E como o
debate está carregado deste moralismo, quem põe estas coisas em causa não pode
ser bem aceite, além de recorrer também a uma radicalização pejada de moral. Daí à exclusão social dos não-vacinados, vai o
salto de uma pulga, depois de se terem acusado os “incumpridores das regras”. Mesmo que
estes sejam uma minoria irrelevante, mesmo que a vacina sirva acima de tudo
para proteger o próprio vacinado do risco de doença grave e morte, os
não-vacinados passaram a ser os novos culpados morais do apocalipse que aí vem.
Porque o que aqui está em causa é, acima de tudo, uma visão apocalíptica do mundo, mesmo que ela não seja consciente.
2Como
se refere na entrevista a Vaz
Carneiro, a
novidade é que esta religiosidade no debate público chegou à saúde. Mas noutras áreas é um fenómeno que tem feito o seu
caminho. No livro ‘Apocalipse
Nunca’ (editado
em 2020, em Portugal, pela D. Quixote), o ambientalista Michael Shellenberger, cansado dos constantes anúncios do fim do mundo
decorrente das alterações
climáticas, propôs-se
fazer uma defesa do humanismo, na sua vertente secular e
religiosa, «contra o anti-humanismo do ambientalismo apocalíptico». É fácil perceber que Shellenberger passou de
ambientalista a negacionista das
alterações climáticas – não por deixar de revelar preocupações ambientais,
não por passar a negar as alterações climáticas, mas apenas por recusar a visão apocalíptica do fenómeno.
Deixo,
além da recomendação da leitura do livro, alguns exemplos. Shellenberger recorda, a propósito de um alegado relatório do IPCC,
as afirmações de Greta
Thunberg: «Por volta do ano de 2030, daqui a 10 anos, 250 dias e
10 horas, estaremos numa posição em que desencadearemos uma reacção em cadeia
fora de todo o controlo humano e que muito provavelmente conduzirá ao fim da
nossa civilização tal como a conhecemos. Não quero que tenham esperança. Quero
que entrem em pânico.» E recorda
também declarações da congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez, em 2019: «O mundo vai
acabar dentro de 12 anos, se não combatermos as alterações climáticas, e o
vosso grande problema é como é que vamos pagar isto?» Parece assustador.
Shellenberger, porém, escreve que o
IPCC nunca disse que o mundo acabaria ou que a civilização colapsaria se as
temperaturas aumentassem mais de 1,5ºC, mas sim que para limitarmos o aquecimento a 1,5ºC desde os tempos pré-industriais, as
emissões de carbono precisariam de diminuir 45% até 2030. E sustenta, sem recusar a ideia de que há
problemas ambientais sérios por resolver, a sua visão anti-apocalíptica. Refere, por exemplo, que a taxa de
mortalidade por desastres naturais desceu 92% desde o seu pico, na década de
1920. Nesta década, terão
morrido 5,4 milhões de pessoas devido a desastres naturais; na década de
2010-2020, morreram 400 mil, com uma população mundial quase 4 vezes maior do
que um século antes. Explica
que, relativamente à subida do
nível do mar, esta será sempre lenta, o que permite às sociedades um largo
período de adaptação – e fala da Holanda, um País rico com um terço do
território situado abaixo do nível do mar. Em
suma, Shellenberger
explica que o que determina a vulnerabilidade dos países face às alterações
climáticas é o facto de disporem ou não de meios, isto é, de serem ou não
pobres, salientando que há mais de uma década que as emissões de carbono
diminuem nos países civilizados. Na Europa,
as emissões em 2018 eram 23% mais baixas do que em 1990; nos EUA, as emissões caíram 15% entre 2005 e 2016;
a Grã-Bretanha reduziu as emissões de carbono resultantes especificamente da
produção eléctrica em 63% entre 2007 e 2018. E as emissões totais
resultantes da produção de energia na Alemanha, Grã-Bretanha e França atingiram
o pico na década de 1970, em parte devido à mudança do carvão para o gás
natural e o nuclear (a que
Greta Thunberg e Alexandria Ocasio-Cortez se opõem). Ou seja, «a
maioria dos especialistas em energia creem que, a exemplo do que aconteceu nos
países desenvolvidos, as emissões nos países em desenvolvimento atingirão um
pico e começarão a descrescer quando tiverem alcançado um nível de prosperidade
equivalente.» E defende
que o que os países ocidentais estão a fazer aos países mais pobres é uma espécie de colonialismo ambientalista,
proibindo-os de recorrer aos mesmos instrumentos que fizeram com que a Europa e
os Estados Unidos chegassem aos actuais níveis de desenvolvimento.
No
livro, são referidos estudos que concluem que o alarmismo climático tem contribuído para o aumento da
ansiedade e da depressão, particularmente entre as crianças: «Em 2017, a American Psychological Association diagnosticou
um aumento da eco-ansiedade e apelidou-a de “medo crónico do juízo final
ambiental”. Em
Setembro de 2019, psicólogos britânicos alertaram para o impacto sobre as
crianças dos debates apocalípticos sobre as alterações climáticas. Em 2020, um
amplo inquérito descobriu que uma em cada cinco crianças britânicas tinha
pesadelos sobre as alterações climáticas.»
3No
último Expresso da Meia-Noite, da SIC Notícias, o presidente da Iniciativa Liberal disse que na
reunião do Infarmed da passada quinta-feira tinha sido partilhado um estudo
feito recentemente em Portugal que indicava que cerca de metade dos alunos do
ensino secundário têm problemas psicológicos decorrentes da pandemia – ou,
melhor, das medidas tomadas para responder à pandemia. A UNICEF apresentou, por sua vez, um relatório que
indicava que, na sequência das medidas tomadas para fazer face à pandemia,
havia, em 31 países pobres, cerca de 200 milhões de crianças sem acesso ao
ensino. Mas que
interessa tudo isto, afinal, se nós estamos focados em combater o extermínio da humanidade (quer no caso da pandemia, quer no das alterações climáticas)? Nós estamos a
fugir ao juízo final, estamos a renegar o “velho
normal” e a abraçar uma vida nova, pura e casta, sem os vícios do passado e a
imoralidade dos negacionistas, para que havemos de estar preocupados com a
geração seguinte?
Num
dos episódios do seu podcast no Público, Rui
Tavares dizia, em Abril de 2020: «Entre [os anos] 500 e 1500 não há
praticamente geração que não acredite ser a última, e o mais notável é que quem
faz essas previsões não são só profetas loucos ou marginais, mas os mais
importantes bispos, teólogos e autores de três religiões, duas delas cada vez
mais dominantes desde a Ásia Central até à Europa Ocidental. A crença no fim do
mundo para breve, para hoje, não é uma maluqueira das franjas da sociedade mas
um facto perfeitamente assumido por estas sociedades a partir do topo da sua hierarquia
religiosa, num tempo em que a religião se foi tornando o discurso determinante,
ou até mesmo o pensamento único.»
É
muito curioso que este tipo de discurso fanático-religioso tenha regressado em
força no nosso tempo, sobretudo numa época em que a religião no mundo
ocidental não tem o peso social que tinha na Idade Média. E voltou, logicamente, ao colo de dois fenómenos
naturais: uma pandemia e alterações ambientais. E, mais uma vez, não são profetas loucos ou marginais
quem partilha a sua visão do fim do mundo: são chefes de Governos, são
intelectuais reputados, são artistas de dimensão planetária, é o
Secretário-Geral da ONU. Recentemente, Greta Thunberg apontou o dedo aos
ingleses, culpando-os pela Revolução Industrial – o que, na opinião da jovem
sueca, foi o primeiro passo no sentido do fim do mundo. O historiador britânico
David Starkey rebate o
argumento: renegar a Revolução Industrial é, na verdade, renegar o mundo
moderno. Um mundo que nos trouxe vacinas, cuidados médicos, bem-estar,
educação, maquinaria, toda a espécie de tecnologia que permitiu à humanidade
ser cada vez menos pobre. E o que temos hoje, no meio desta barulheira de
profetas do apocalipse, é uma cruzada que ignora os pobres e que, ainda por
cima, vem carregada de um moralismo que, no fundo, não é mais que a base de
qualquer totalitarismo. Não penso que já lá estejamos, não. Não é preciso
entrar em pânico. Mas talvez devêssemos começar a pensar nisto.
CIÊNCIA PANDEMIA SAÚDE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS CLIMA AMBIENTE VACINAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário