Na banalidade de acontecimentos de uma
rotina de miséria. Física, espiritual. Ou de sujidade, já que se trata de “banhos”
figurativos. Não passamos disto, de discursos subjectivos, sem qualquer rigor
que aponte para perspectivas de mudança, a faca e o queijo entregues nas mãos
de quem actualmente comanda, os que desejam comandar não apontando outro
propósito que o de se digladiarem entre si, parentes próximos e ávidos, num “nada
de novo” que nos mostra que, para a ordem se estabelecer, só mesmo ficando nós
sob a pata estrangeira a comandar. Como aconteceu no tempo de Passos Coelho, aliás formado numa escola de seriedade,
que essa difícil experiência consolidou. Não, esperança não temos já.
Os vizinhos do PSD
Nas discussões do andar do PSD,
ouve-se muito o vizinho Rio dizer que quem manda ali é o centro-esquerda e que
a direita, se quiser continuar a lá viver, tem que enfiar isso muito bem na
cabecinha.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 18
nov 2021
O
antropólogo Claude
Lévi-Strauss contava, num
livro de entrevistas, que raramente ia ao teatro porque, quando ia, tinha a
desagradável sensação de se ter enganado no andar do prédio onde vivia e de
estar involuntariamente a assistir a uma discussão entre vizinhos. Ignoro
por inteiro se as discussões que terá testemunhado entre os bororós do Mato
Grosso, entre os quais viveu, lhe terão parecido mais
toleráveis do que as dos
seus vizinhos parisienses, mas, em todo o caso, é um sentimento que se
compreende. Há, no entanto, que abrir algumas excepções.
Isto vem, é claro, a propósito das
actuais disputas pelo poder nos partidos da direita. A opinião comum, tanto quanto percebo, é que essas
coisas se deviam passar no recato do lar e não serem testemunhadas por estranhos.
Pelo menos, a quantidade de vezes em que se falou por aí de “triste
espectáculo” deixa-o fazer crer. Ora eu, que não sou sequer particularmente
dado à coscuvilhice, tenho uma opinião diferente. Acho que as discussões
entre os nossos barulhentos vizinhos dos partidos – excepto, por respeito pela
tradição, os vizinhos do PCP – devem ser bem ouvidas em todo o prédio. Não
para, com um arzinho de superioridade, conhecer os costumes dos selvagens, mas para tentar perceber o que eles querem fazer
connosco. Por mim,
quanto mais alto berrarem, melhor.
É
por isso que tenho seguido com interesse as discussões no PSD entre o vizinho Rio
e o vizinho Rangel. Não é nada de pessoal. Não tenho nenhum sentimento
exagerado por relação a nenhum deles, nem amores nem desamores. Só quero mesmo
saber, como disse, o que é que eles querem fazer de nós. É só por isso
que os ouço e que vou ouvindo também o que os outros vizinhos deles pensam.
O vizinho Rio, desde que cá chegou, declarou muito
alto que andávamos todos a precisar de um “banho de ética”. Houve gente aqui no prédio que apreciou esta
preocupação com a higiene, achando que uma parte da vizinhança não prima pelo
asseio e que a solução sugerida afastaria de si os mais pútridos miasmas.
A imagem, no entanto, não me parece particularmente feliz. Os banhos
limitam-se a tratar da aparência e não consta que os mais eminentes estóicos
aconselhassem os cuidados de higiene corporal como a via real para a virtude.
Para esses sábios esquisitos, a alma não ia a banhos. A
terapia, a haver terapia, teria de ser outra, nitidamente menos aquática. “Banho de ética” não parece assim uma expressão muito
lógica. Parece mesmo, se me é permitido, provir de uma confusão de elementos de
natureza muito diferente. Mas admitamos que foi uma coisa que lhe saiu no calor
da discussão. Quem é que, numa conversa exaltada, não diz um disparate aqui e
ali?
Mas, comentam os vizinhos mais adeptos
da doutrina da higiene exterior da alma, o vizinho Rio é, além de tudo, o paradigma da honestidade, e, por
isso, o homem destinado a pôr o prédio em ordem. Mas também aqui parece haver um problema. É que a
honestidade é o mínimo que se pode exigir a alguém. Normalmente, um elogio tem de subir um patamar ou
dois: uma visão para o futuro, um projecto sólido e realizável,
qualquer coisa assim. Ficar-se pela honestidade não parece suficiente para
justificar um entusiasmo imoderado.
Imaginem, por exemplo, e peço desculpa por estar ainda sob o efeito da teoria
do banho, que alguém confessa a um amigo a sua desmesurada paixão por uma
senhora e que conclui o seu devaneio lírico com a confissão da sua razão última
para tanta elevação sentimental: “Ela é muito asseada!”. Não parece o cúmulo
do romantismo, pois não? Quando eu era pequenino, era o que as donas de
casa, para falar como na altura se falava, diziam umas às outras para
aconselhar uma empregada doméstica.
Mas, enfim, tudo isto é o menos. Nas
discussões do andar do PSD, ouve-se muito o vizinho Rio dizer que quem manda
ali é o centro-esquerda e que a direita, se quiser continuar a lá viver, tem
que enfiar isso muito bem na cabecinha.
Há um vizinho muito enérgico que aplaude sempre estas tiradas e que logo saca
do baú provas inúmeras de que sempre assim foi, excepto na altura em que um
movimento de ocupação selvagem tomou conta do andar e deu cabo de tudo, com a
pérfida intenção de mandar o prédio abaixo. Mas há vizinhos que não estão de
acordo. Lembram-se até que, quando o PSD se mudou para lá, os vizinhos de
esquerda lhe chamavam “fascista” por dá cá aquela palha. Nesses tempos
conturbados, que coincidiram com uma altura em que toda a gente andava a
aprender uma linguagem nova, e que usava e abusava, com grande boa fé, das
palavras que ia aprendendo, é verdade que, no andar, se usavam algumas das
expressões da moda. Mas a vizinhança de esquerda nunca teve dúvidas que as palavras
que ali eram ditas não tinham o mesmo significado que ela lhes atribuía. Isso era evidente para toda a gente. De resto,
convenhamos, seria estranho que um prédio inteiro fosse habitado apenas por pessoas
de esquerda. Eu sei que há prédios onde isso aparentemente aconteceu e outros
onde continua a acontecer, mas não parece que estejam em muito bom estado e que
as pessoas apreciem grandemente lá viver. Por isso, parece-me que o vizinho Rio
anda enganado.
O
vizinho Rangel só
recentemente começou a ser ouvido. Parece uma pessoa que não se irrita
muito, o que é uma qualidade apreciável. Não grita nem tem as ambições
banhistas do vizinho Rio. Nunca ninguém o ouviu a proclamar-se campeão de
todas as virtudes e a decretar que os jornalistas devem ser postos na ordem.
Além disso, não vive na ilusão de que toda a gente no prédio é de
esquerda nem crê que ser de direita seja um desvio contrário aos bons costumes.
Em suma, é um vizinho simpático, de bons modos, e que parece íntegro, sem
sentir a compulsão de gritar a sua integridade pelos andares todos. Se houvesse
uma competição para escolher vizinhos, escolhia-o a ele.
PSD POLÍTICA DIRECTAS
PSD RUI RIO PAULO RANGEL
COMENTÁRIOS:
Henrique Ribeiro: Não habito no
prédio; logo as discussões que nele ocorram não me chegam aos ouvidos. Ainda
bem! Há, no entanto, um adágio que se impõe
neste como em casos similares: "quem muito fala pouco acerta".
Carlos Vito: Apreciei
muito a sua crónica. Além do mais, certeira.
Leopoldo
Carvalhaes: Muito
bom! Parabéns pelas brilhante descrição da vida do condomínio.
Vitor Batista: Artigo
soberbo. Paulo
Tunhas tem a capacidade de dizer as coisas a sério ou a brincar, de uma mestria
de se lhe tirar o chapéu. Queremos
mais banhos de "ética", Dr Tunhas!
eduardo oliveira: Muito bem! Numa
crónica cheia de humor retrata fiel e assertivamente o "vizinho" Rio,
desconstruindo e desmistificando o suposto paladino da ética. Já não há
pachorra para ouvir e ler os defensores fanáticos desse provinciano salazarento
que, infelizmente, não cessa de surpreender pela negativa com as suas
táticas desesperadas para se manter no poder.
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