As pestes no decorrer da História. Por José Carlos Fernandes, baseado no
livro de McNeill “PESTES E
POVOS”. Para reler.
Como as doenças e as epidemias
construíram impérios, destruíram civilizações e moldaram o mundo
Infecções e conquistas, a gripe, as
derrotas e a economia. "Pestes
e Povos", de William H. McNeill, põe em relevo o papel decisivo das doenças infecciosas na definição do
curso da História.
JOSÉ CARLOS FERNANDES: Texto
OBSERVADOR, 21
nov 2021
Pode estranhar-se que um livro sobre o impacto das
epidemias na história publicado em 2021 omita a Covid-19, mas há uma boa razão para
tal: Plagues and Peoples não
foi escrito à pressa para tirar partido do presente interesse acrescido do
público por doenças infecciosas, trata-se de um clássico que só agora teve
edição portuguesa. Foi publicado pela primeira vez em 1976 e em 1998 foi
alvo de nova edição, que consistiu, basicamente, na adição de um prefácio
que dava conta do principal desenvolvimento ocorrido entretanto: a epidemia de
sida. É a edição de 1998 que agora chega a Portugal, com o título Pestes e Povos, pela mão da Casa das Letras e com tradução de Vasco Teles de Menezes.
A capa da edição portuguesa de “Pestes e Povos”, de
William H. McNeill (Casa das Letras)
Poderá haver quem questione a oportunidade de publicar
com 45 anos de desfasamento um livro sobre um assunto – a história das doenças
infecciosas – cujo conhecimento se dilatou consideravelmente nas últimas
décadas. Todavia, o historiador
americano William H. McNeill (1917-2016), que granjeou renome com uma abordagem à história
que coloca ênfase nos contactos e intercâmbios entre diferentes civilizações,
aplicou essa perspetiva, com tal sagacidade, erudição e clareza de exposição,
ao tema que o livro resistiu bem à passagem do tempo. E também plantou sementes, pois é óbvio que o (justamente) celebrado Armas, germes e aço (1997), de
Jared Diamond (ver As zebras não são cavalos com riscas) tem uma dívida considerável
para com Pestes e Povos –
há mesmo um parágrafo da pg. 276, que poderia funcionar como uma sinopse das
teses centrais de Armas, germes e
aço. Há detalhes em que o livro revela a sua idade – como quando
situa há 50.000 -100.000 anos a aparição do Homo sapiens, que a paleontologia do século XXI coloca há
300.000 anos – mas tais desactualizações não invalidam, por si só, as teses
defendidas por McNeill.
Epidemia de febre-amarela em Cadiz (c.1819), por
Théodore Géricault
Plagues and
Peoples foi um livro pioneiro em 1976 e 45 anos depois ainda proporciona
leitura proveitosa, sobretudo para os colunistas e opinadores que, no início de
2020, profetizaram que a covid-19 não teria impacto duradouro, uma vez que as
doenças infecciosas não tinham tido influência significativa no desenrolar da
história das civilizações.
O que é de lamentar na edição portuguesa é que tenha
suprimido o índice remissivo, falta grave num livro de grande densidade e
diversidade e apreciável extensão (c.350 páginas de texto, mais anexos e notas).
[Nota: dada a grande amplitude de
doenças, épocas e geografias abordadas em “Pestes e Povos”, o texto que se
segue escolhe apenas alguns temas]
Caçadores e agricultores,
campo e cidade
A migração do Homo Sapiens a partir do seu “berço” na África tropical
terá permitido, segundo McNeill, escapar a muitos dos parasitas e dos
organismos causadores de doenças a que os seus predecessores e contemporâneos
tropicais estavam habituados”, o que terá promovido a multiplicação e o rápido
alastramento da espécie pelo planeta, ainda que, “com o tempo, doenças
biológica e demograficamente importantes [se desenvolvessem] também entre as
comunidades humanas dos climas temperados”.
Quando o Homo Sapiens deixou de ser
caçador-recolector e passou a praticar a agricultura e se tornou sedentário, as
oportunidades para as doenças infecciosas aumentaram. Numa fase primitiva, a
agricultura terá sido conduzida num regime de “corte e queima”, com mudança de local de cada vez que o solo começava a perder fertilidade
(prática que ainda persiste nalgumas regiões tropicais), mas, depois, as
comunidades humanas passaram a viver sempre no mesmo sítio, ficando mais
expostas a contaminações, nomeadamente com os seus próprios excrementos. McNeill considera, todavia,
que as novas infecções associadas à sedentarização “não devem ter sido um
fardo biológico muito pesado, visto que não impediram um crescimento da
população humana de uma magnitude sem paralelo” até então – nalgumas áreas a
densidade dos agricultores “tornou-se 10 a 20 vezes maior do que a densidade
dos caçadores alguma vez tinha sido nessas mesmas áreas”.
Reconstituição de um povoado agrícola do Neolítico
As epidemias
só começaram a tornar-se num fardo pesado quando o Homo sapiens começou a viver em comunidades “civilizadas”,
ou seja “grandes, completamente organizadas, densamente povoadas e […] geridas
e dominadas por cidades. As doenças infecciosas virais e
bacterianas são, por isso, as doenças da civilização por excelência”. E a maioria delas, “provavelmente
todas, foram transferidas para as populações humanas a partir de grupos de
animais”, sobretudo de animais domésticos.
McNeill realça a diferença de comportamento das
doenças infecciosas em meio rural e meio urbano: “o campo era frequentemente mais saudável, uma vez que as várias formas de
infecção disseminadas nas cidades tinham menos probabilidades de chegar aos
habitantes das zonas rurais. Por outro lado, quando uma epidemia penetrava
realmente no campo, podia ter consequências mais drásticas do que as que eram
prováveis entre uma população urbana”, cuja exposição regular a doenças lhe
conferia alguma imunidade. Os surtos no meio rural podem ser devastadores, mas
“desaparecem tão rapidamente como começam. Quando o fornecimento local de
hospedeiros viáveis se esgota, a infecção morre e desaparece”. Todavia, no centro urbano
“permanecerão suficientes pessoas susceptíveis para que o organismo infeccioso
se consiga manter vivo até que indivíduos sem experiência da doença voltem a
acumular-se na zona rural e se torna possível um novo surto da epidemia”.
Ruínas de Ur, cidade-estado suméria,
fundada c.3800 a.C. e situada perto da moderna cidade de Nasiriyah, no Iraque
A dinâmica entre populações humanas e doenças
infecciosas determinou que, até ao século XIX, as cidades tivessem um saldo
natural negativo, pelo que a sua manutenção “exigia que os agricultores rurais
não só produzissem mais alimentos do que aqueles próprios consumiam para poder
alimentar os habitantes das cidades, mas que também produzissem um excedente de
crianças, cuja migração para a cidade era necessária para sustentar os números
urbanos”. McNeill socorre-se dos Boletins de Mortalidade relativos a
Londres para demonstrar que, no século
XVIII, na capital britânica “a mortalidade excedia a natalidade a uma média
anual de seis mil. Por conseguinte, no decurso desse século, Londres precisou de nada mais,
nada menos do que 600.000 migrantes internos só para poder sustentar-se”. São
números que deveriam dar que pensar aos espíritos ingénuos que acreditam
que “dantes era tudo natural e
saudável” e que o progresso veio arruinar e envenenar tudo.
Apesar da imagem de fausto e
prosperidade que emana desta vista de Londres pintada por Giovanni Antonio
Canal (dito Canaletto) em 1747, a insalubridade da cidade cobrava um elevado
tributo anual em vidas humanas
A génese das civilizações chinesa e indiana
Segundo McNeill, as doenças infecciosas moldaram decisivamente o
desabrochar da civilização chinesa: esta desenvolveu-se primeiro na planície aluvial do
Rio Amarelo (Huang He), a norte, e a bacia do Yangtze, a sul, só começou a
tornar-se preponderante no final da dinastia Han (202 a.C.-221 d.C.), apesar de
na bacia do Yangtze “o clima mais suave [significar] períodos de crescimento
vegetativo mais longos e a pluviosidade mais abundante [afastar] o risco de
seca que punha frequentemente em perigo as terras não irrigadas do norte”. O
paradoxo explica-se por “as condições mais quentes e mais húmidas do sul
[permitirem] que florescesse uma maior variedade de parasitas do que seria
possível no norte. Ao longo da toda a planície aluvial do Rio Amarelo, os
invernos rigorosos matavam os parasitas a que faltassem formas latentes capazes
de resistir a um congelamento prolongado. Importantes insectos transmissores de
doenças estavam igualmente impedidos de se instalar porque não conseguiam
resistir às condições frias e secas do norte”.
São
considerações que encontram eco nos especialistas em doenças infecciosas do
nosso tempo e lançam alertas para o facto de o aquecimento global poder fazer
regressar à Europa Meridional doenças que tinham sido erradicadas, como a
malária.
Os três maiores rios chineses: de norte para sul,
Amarelo, Yangtze e Xi
McNeill atribui também às doenças infecciosas um papel relevante na evolução da
civilização indiana: a partir de 1500 a.C., os povos arianos vindos da Ásia Central, que se
encontravam num estádio civilizacional mais avançado, começaram por fazer
recuar os povos pré-existentes, mas o avanço ariano acabou por ir perdendo
ímpeto, até que se criou no subcontinente um equilíbrio entre invasores e
invadidos, com os primeiros a dominar as regiões norte e oeste, de clima mais
frio e seco, e os segundos – os “povos da floresta”, que viviam em pequenas
comunidades – prevalecendo nas regiões sul e leste, mais quentes e húmidas.
Segundo McNeill, este equilíbrio resultou das diferentes condições climáticas e
susceptibilidades a doenças infecciosas, que criaram um “impasse
epidemiológico”: “Os povos da floresta podiam ser dizimados por infecções
provenientes de contactos com os povos civilizados, mas os intrusos civilizados
eram mais susceptíveis aos contactos com as doenças e infestações tropicais
familiares entre os povos da floresta”. A tese de McNeill é que, em vez de ter
ocorrido o extermínio dos “povos da floresta” pelos arianos, é que estes
incorporaram os primeiros “como castas, integrando-os na confederação de
culturas hindus como entidades activas e semi-autónomas”. McNeill admite que “outros elementos e atitudes entraram na definição e manutenção
do princípio de castas na sociedade indiana”, mas faz notar que “os tabus sobre
os contactos pessoais entre linhas de castas e as regras elaboradas para a
purificação do corpo no caso de se infringir inadvertidamente esses mesmos
tabus, sugerem a importância que o medo da doença provavelmente teve na
definição de uma distância segura entre os vários grupos sociais […] da
sociedade indiana”.
Implantação da civilização védica no noroeste da Índia,
durante o denominado Período Védico Tardio (c.1100-500 a.C.)
O declínio e queda do Império Romano
As civilizações da China, Índia e Mediterrâneo viveram durante algum tempo isoladas entre si, mas
a partir do século I d.C. o comércio entre elas foi aumentando de intensidade,
num fenómeno que alguns historiadores classificam como “a primeira globalização”
(ver A todo o vapor: A história da globalização que permitiu ao Ocidente
dominar o mundo). E com
esta circulação acrescida de pessoas, animais e mercadorias, houve doenças que
tiveram a oportunidade de infectar populações “virgens”, que não dispunham de
qualquer imunidade contra elas.
Embora os registos mais antigos sejam lacunares e
vagos, é claro que o mundo da Antiguidade já fora assolado pontualmente por
epidemias, mas, antes do século II d.C. “parecem não existir sinais de um
catastrófico declínio populacional provocado por uma exposição não habitual a
epidemias mortais”.
“A peste de Ashdod”, por Nicolas Poussin,
1630. O quadro alude a uma epidemia (não identificada) mencionada na Bíblia
(Livro de Samuel) e que se terá abatido sobre os filisteus de Ashdod como
punição divina por terem roubado a Arca da Aliança aos israelitas.
No mundo
dominado por Roma, que é aquele de que se possuem registos mais completos e
fidedignos, o historiador Lívio contabilizou “onze casos de catástrofes pestilenciais nos tempos
republicanos […] mas essas experiências não foram nada perante a doença
que começou a propagar-se pelo Império Romano em 165 d.C. […] trazida por
tropas que tinham estado a fazer campanhas na Mesopotâmia”.
Esta epidemia, que durou até 180 d.C., ficou conhecida
como Peste Antonina por ter grassado no reinado
dos imperadores Marco Aurélio e Lúcio Vero, que eram ambos filhos adoptivos do
imperador Antonino Pio e ficaram conhecidos como “Antoninos”. Note-se que o
termo Peste Antonina não significa que se trata da doença causada pela
bactéria Yersinia pestis e
que teve a sua manifestação mais espectacular sob a forma da Peste Negra do final da Idade Média, uma
vez que durante muitos séculos o termo “peste” foi aplicado de forma genérica a
qualquer epidemia mortífera. A Peste Antonina também é conhecida como Peste de Galeno, por este médico romano de
origem grega a ter descrito, ainda que não de forma suficientemente clara
para que seja possível identificá-la. Os epidemiologistas e historiadores
do nosso tempo sugerem a varíola ou o sarampo, uma vez que “os dados
recolhidos por Hipócrates parecem mostrar que tais doenças não eram conhecidas
nessa altura” no mundo mediterrânico, pelo que teriam um poder devastador.
Efectivamente, a doença matou, nos lugares afectados, 1/4
a 1/3 da população e “inaugurou um processo de declínio continuado da população
nas terras do Mediterrâneo que durou, apesar de algumas recuperações locais,
mais de meio milénio”.
“A peste numa
cidade da Antiguidade” (c.1652-54), por Michiel Sweerts
Em 251-266 (249-262 segundo outros autores) outra epidemia não
menos mortífera, que ficou conhecida como Peste de Cipriano, por ter sido testemunhada e descrita por São
Cipriano, bispo de Cartago, abateu-se sobre o Império Romano. Há registos
de que só na cidade de Roma terão morrido “cinco mil [pessoas] por dia no
auge da epidemia e há algumas razões para acreditar que as populações rurais
ainda foram mais intensamente afectadas” do que na epidemia anterior. O
consequente despovoamento dos campos terá levado o imperador Diocleciano
(reinado: 285-305) a promulgar leis “que proibiam os agricultores de abandonar
as terras e tornavam hereditário e obrigatório um certo número de outras
ocupações”.
Os tumultos no Império Romano já tinham
começado em 235, com o assassinato do imperador Alexandre Severo, mas a
epidemia terá certamente contribuído, juntamente com as invasões bárbaras, para
a intensificação e prolongamento do período de grande instabilidade política e
depressão económica que ficou conhecido como a “Crise do Século III”, que durou
até 284 e durante o qual um total de 26 candidatos reclamou o trono imperial.
A tese de McNeill é que as epidemias “[erodiram] gravemente a riqueza das terras do
Mediterrâneo entre 165 e 266 d.C.” e que “a extinção rápida de um grande
número de populações urbanas nos centros mais activos do comércio mediterrânico
diminuiu o fluxo de dinheiro para o fisco imperial. O resultado foi que já não
foi possível pagar aos soldados os valores habituais e as tropas amotinadas
viraram-se contra a sociedade civil para extrair o que podiam através da força […]
De tudo isso, resultou mais
declínio económico, mais despovoamento e catástrofes humanas”. O desfecho “foi
a desintegração do tecido imperial nas províncias ocidentais e a sua sobrevivência
precária no Oriente mais povoado”.
“Saque de Roma
pelos visigodos no ano 410” (1890), por Joseph-Noël Sylvestre
A ascensão do cristianismo
A epidemia de 251-266 terá parecido pavorosa à maioria dos habitantes do
Império Romano, mas houve quem tivesse perspectiva bem diversa. O bispo Cipriano (c.210-258), cujo nome foi, a posteriori,
associado à epidemia, escreveu: “Esta mortalidade é uma desgraça para os
judeus e pagãos e inimigos de Cristo; para os servos de Deus é uma partida
salutar. Quanto ao facto de, sem nenhuma discriminação na raça humana,
os justos estarem a morrer com os iníquos, não vos compete pensar que a
destruição é a mesma tanto para o bom como para o mau. Os justos são chamados
para repousar, os iníquos são levados para a tortura”.
São Cipriano de Cartago
McNeill cita esta passagem para ilustrar o que considera ser o
efeito transformador destes surtos epidémicos nas mundividências do mundo
mediterrânico. “Os cristãos tinham em relação aos contemporâneos pagãos” uma
vantagem: “cuidar dos doentes, mesmo em tempo de peste, era um dever religioso
reconhecido” e os autores cristão faziam notar que enquanto “os cristãos se
ajudavam mutuamente em tempos de pandemia […] os pagãos fugiam dos doentes e
abandonavam-nos impiedosamente”. Por outro lado, para os cristãos “os
ensinamentos da fé davam sentido à vida, mesmo perante a morte repentina e
surpreendente”, e proporcionavam “um consolo apaziguador e imediato na
visão de uma existência celestial” após a morte, enquanto os sistemas da filosofia pagã, “com a sua ênfase em processos impessoais e
na lei natural, eram ineficazes a explicar a aparente aleatoriedade com que a
morte descia repentinamente sobre novos e velhos, ricos e pobres, bons e maus”. “Por isso”, conclui McNeill, “as epidemias catastróficas tiveram como efeito fortalecer as igrejas
cristãs numa altura em que a maior parte das outras instituições estava a
desacreditar-se”.
O cristianismo veria o pendor
ascensional consolidado em 313, quando, pelo Édito de Milão, o imperador
Constantino I acolheu o cristianismo como uma das religiões do império, e
tornar-se-ia na religião oficial do império – com exclusão de todas as outras –
em 380, no reinado de Teodósio I. Cipriano nascera cedo de mais para assistir a este
triunfo – aliás, teve a pouca sorte de viver no reinado de Valeriano (253-260),
que foi um dos imperadores que mais se distinguiu na perseguição aos cristãos:
tendo-se recusado repetidamente a fazer sacrifícios aos deuses romanos, Cipriano
foi preso e decapitado.
Santa Corona, uma mártir cristã que
terá vivido na Síria no século II d.C. e que é celebrada a 24 de Novembro,
costumava ser invocada em assuntos envolvendo dinheiro, mas a pandemia de
covid-19 levou a que lhe fossem atribuídas competências também na área das
doenças infecciosas. Corona terá sido executada pelos romanos por ter
confortado Victor, um soldado romano que estava a ser torturado por professar a
fé cristã. Quadro pelo Mestre da Madonna do Palazzo Venezia, um discípulo de
Simone Martini activo em Siena em meados do século XIV
A ascensão do Islão
A parte oriental do Império Romano pode ter
resistido melhor do que a parte ocidental à epidemia de 251-266 (bem como
ao subsequente processo de desagregação), mas seria fortemente abalada por
uma nova epidemia de grandes proporções em 541-549. Esta ficou conhecida
como Peste de
Justiniano, por ter grassado durante o reinado do imperador bizantino Justiniano I
(reinado: 527-565), e ao contrário das duas “pestilências” anteriores, esta
parece mesmo ter sido uma epidemia de peste bubónica. O agente desta é
a Yersinia pestis (o
livro designa-a pelo seu antigo nome, Pasteurella pestis) e a Peste de Justiniano terá sido a primeira
irrupção em grande escala desta bactéria no palco da história – ainda que
McNeill deixe em aberto a possibilidade de ser a mesma doença que já emergira
na Líbia e Egipto no século II a.C.
Na verdade, a Peste de Justiniano de 541-549 foi
apenas o primeiro de uma sucessão de surtos de peste, de maior ou menos
intensidade e abrangência geográfica, que afectou a bacia mediterrânica, o
Médio Oriente e o Norte da Europa até meados do século VIII e que teve
consequências devastadoras. McNeill considera que “as pestes dos séculos VI
e VII tiveram uma importância para os povos do Mediterrâneo completamente
análoga à mais famosa Peste Negra do século XIV” e lembra que o historiador
bizantino Procópio – a principal fonte de informação sobre a Peste de Justiniano – relatou
que, no auge da epidemia, “a peste matou 10.000 pessoas por dia em
Constantinopla, onde grassou durante quatro meses”.
McNeill vê na debilitante sucessão de surtos de peste
na bacia mediterrânica e Médio Oriente uma explicação para eventos decisivos na
marcha da História: primeiro, “o fracasso dos esforços de Justiniano para
restaurar a unidade imperial no Mediterrâneo”, mediante a conquista (parcial)
dos territórios que tinham pertencido ao Império Romano do Ocidente. Depois, em
meados do século VII, “a incapacidade das forças romanas [bizantinas] e persas
[sassânidas] [para] oferecerem mais do que uma resistência simbólica aos
exércitos muçulmanos que, tão inesperadamente, afluíram em massa vindos da
Arábia em 634”.
O Império Bizantino e o Império Sassânida
c.600
McNeill não menciona o facto nada despiciendo de o
Império Bizantino e o Império Sassânida terem passado mais de um século
envolvidos em guerras extremamente desgastantes para ambos os lados – em
particular as que decorreram em 542-562, 572-591 e 602-628 – mas é plausível
que as epidemias de peste também tenham contribuído para o enfraquecimento dos
dois impérios rivais, permitindo que os exércitos árabes rubricassem uma série
de conquistas que, no seu tempo, devem ter parecido tão fulgurantes como a
Blitzkrieg foi no século XX.
Expansão do califado islâmico durante
o tempo de Maomé (622-632, a castanho), do Califado Ortodoxo ou Rashudin
(632-661, a laranja) e do Califado Omíada (661-750, a amarelo)
O Império Mongol e a peste
Ao contrário das grandes epidemias anteriores, cuja
origem e rota de propagação são hoje muito difíceis de reconstituir, a
progressão da Peste Negra que assolou a Europa (e também o Norte de África e o
Próximo Oriente) é relativamente bem conhecida.
McNeill especula que terá
tido origem em roedores em territórios chineses no sopé dos Himalaias e que
terá passado para os soldados mongóis que invadiram esta região c.1252 e que
as primeiras ocorrências da doença terão surgido em 1331 na China. Há
indícios mais substanciais da sua presença, c.1338-39, numa comunidade de
mercadores nestorianos nas margens do Lago Issyk-Kul, na Ásia Central (hoje no
Quirguistão), um dos pontos de passagem da Rota da Seda. Não se sabem detalhes
da sua progressão ao longo desta rota, mas é certo que em 1346 a peste
infectava as tropas mongóis que sitiavam a colónia genovesa de Kaffa (também
chamada Feodosia), na Península da Crimeia; aos sitiantes, enfraquecidos
pela doença, ocorreu-lhes recorrer a uma forma rudimentar de guerra
biológica, catapultando cadáveres de vítimas da peste para o interior da cidade.
Por esta via, ou, mais prosaicamente, através dos ratos que circulavam
livremente entre o acampamento dos sitiantes e a cidade, a peste infectou os
genoveses, que, sem disso de darem conta, a levaram para a sua cidade natal.
Propagação da Peste Negra, 1346-1353
O
resto da história é bem conhecido (ver capítulo “1347: Peste Negra” em Quais foram os piores anos da história?), mas McNeill chama a atenção para um aspecto nem sempre devidamente
realçado: apesar de algumas guerras civis e disputas sucessórias, o Império Mongol trouxe à Eurásia um período de
uma certa estabilidade geopolítica e reprimiu os salteadores e pequenos
senhores da guerra, trazendo às viagens e ao comércio de longa distância uma
segurança de que não gozara durante séculos. Esta “Pax Mongolica” (que
outros historiadores designam por “Pax Tatarica”) teve como efeito
colocar em contacto regular regiões distantes que até aí tinham tido escassa
interacção – e a Yersinia pestis aproveitou
a oportunidade. Se, por um lado, a “Pax Mongolica” terá permitido a epidemia
de peste bubónica, foi esta que acabou por termo à primeira, ao causar a
fragmentação do Império Mongol, numa miríade de pequenos khanatos quezilentos e
instáveis. A estabilidade fora estilhaçada, mas o mal já estava feito e
a Yersinia pestis instalara-se
por quase toda a Eurásia e Norte de África.
Após relatar as calamitosas consequências directas e
indirectas da Peste Negra na Europa, McNeill acrescenta que “a culminar tudo
isto, o clima piorou no século XIV, de modo que as culturas improdutivas
[colheitas falhadas?] se tornaram mais comuns, sobretudo nas terras do norte, à
medida que a duração e rigor dos invernos aumentava”. Todavia, há quem
entenda que o advento desta Pequena Idade do Gelo (assim designam os
climatologistas esse período de baixas temperaturas) não terá sido uma mera
coincidência: William Ruddiman, um cientista ambiental americano, propôs que a Pequena
Idade do Gelo que começou no final da Idade Média foi consequência da Peste
Negra, que, ao matar parte significativa da população da Europa e da China,
levou a um abandono maciço de terras agrícolas, que as florestas voltaram a
ocupar, removendo dióxido de carbono da atmosfera e fixando-o sob a forma de
madeira. A abrupta queda demográfica que
as doenças levadas pelos europeus causaram nas Américas a partir do início do
século XVI terá, pelo mesmo processo, contribuído para manter o CO2 atmosférico
em níveis baixos, mesmo depois de as populações europeia e chinesa terem
recuperado da Peste Negra e voltado a agricultar as terras tomadas entretanto
pelas florestas (ver capítulo “Pestilência e clima” em A pandemia poderá salvar-nos do
apocalipse climático?).
Vista do Rio Tamisa junto a Londres,
em 1677, por Abraham Hortius: Durante a Pequena Idade do Gelo, era frequente
que o Rio Tamisa congelasse durante o Inverno, fenómeno que se tornou bem mais
raro a partir do século XIX
A expansão dos impérios
europeus
A “história alternativa” propõe-se olhar a marcha dos
acontecimentos não como uma linha, mas como uma sucessão de ramificações
conduzindo a diferentes realidades históricas. Poderíamos, por exemplo,
deter-nos por volta do ano 1500, quando Portugal e Espanha iniciavam a sua
expansão pelas Américas, África e Ásia Meridional e perguntarmo-nos: teria a
marcha da História de ser a que foi? Não poderíamos ter uma via alternativa
em que portugueses e espanhóis tivessem criado colónias em África e escravizado
indígenas americanos para trabalhar nas suas plantações e minas? Terá sido
meramente por uma fortuita conjugação de decisões de governantes, exploradores
e mercadores portugueses e espanhóis que a História seguiu o caminho inverso?
A resposta é: não, a História está dependente não
só da vontade e iniciativa humanas como de uma complexa teia de condicionantes
geográficas e biológicas. E acontece que a mesma razão que tornou a
conquista da América tão fácil aos europeus, foi também a que permitiu que
África resistisse às suas investidas até à viragem dos séculos XIX/XX: as
doenças infecciosas.
Talvez por a
África ter sido o berço da humanidade, o continente acolhe, sobretudo na sua
parte sub-sahariana, uma “extraordinária diversidade de parasitas humanos”,
muitos deles letais ou fortemente debilitantes. Os povos locais tinham desenvolvido um razoável
grau de resistência a alguns desses parasitas, nomeadamente aos que causavam a
malária e a febre-amarela, mas outros parasitas, como o que causa a doença do
sono, mantinham um elevado grau de letalidade mesmo para os africanos. Já os
europeus não possuíam qualquer imunidade contra estas doenças tropicais, o que
explica que, até ao advento da medicina moderna, das redes mosquiteiras e dos
insecticidas, a sua penetração nos territórios de clima quente e húmido da
África sub-sahariana tenha sido muito limitada, limitando-se a criar alguns
portos e feitorias costeiras, e, ainda assim, pagando um elevado tributo às
doenças infecciosas africanas.
O mosquito Aedes aegypti, o principal vector de
transmissão da febre amarela: Apenas as fêmeas (centro e direita) transmitem a
doença
Na América assistiu-se à situação inversa: nos primeiras décadas, o
continente parecia estar livre de doenças que afectassem os europeus – depois a
malária e a febre-amarela importadas de África tomariam conta de vastas áreas
tropicais e sub-tropicais – e, por outro lado, os indígenas americanos eram altamente
susceptíveis a várias doenças infantis europeias, como difteria, gripe, sarampo
e varíola, a que os adultos europeus eram imunes. Tal disparidade deveu-se
provavelmente ao facto de, ao contrário do que se passara na Eurásia, os
“animais domesticáveis à disposição dos ameríndios não serem portadores do
género de infecção grupal capaz de transmitir o seu parasitismo às populações
humanas”. McNeill não o menciona, mas vale a pena realçar que a ausência na
América de espécies bovinas, equinas, ovinas, caprinas e porcinas susceptíveis
de domesticação foi, em parte, resultado da sobre-caça de grandes mamíferos
pelos primeiros povos que se instalaram no continente a partir de c. 12.000
a.C., conduzindo à sua rápida extinção.
Desenho azteca do século XVI representando uma vítima
de varíola
O resultado do
“intercâmbio colombiano” de parasitas foi arrasador para os indígenas
americanos, quer nas regiões de povoamento mais disperso – como o Canadá ou a
Patagónia – quer nas regiões onde se tinham desenvolvido civilizações
sofisticadas e com elevada densidade populacional – como o México e o Peru. A incrível facilidade e
rapidez com que um punhado de aventureiros espanhóis conquistou e dissolveu os
impérios azteca e inca, que abrangiam, respectivamente, 6 e 10 milhões de
súbditos, não resultou apenas da sua indiscutível superioridade na tecnologia
bélica – os europeus tiveram a lutar a seu lado as doenças infecciosas (ver México vs. Espanha: Quantos
séculos são precisos para apagar esta mágoa?). É provável que, se não
fosse a devastação causada pelas doenças europeias entre os ameríndios, Hernán
Cortés fosse hoje lembrado, não como um conquistador intrépido, mas como um
homem cruel e implacável que pagou a sua temeridade e cupidez sendo sacrificado
(juntamente com todo o seu bando de salteadores) pelos sacerdotes aztecas numa
grandiosa cerimónia em honra de Huitzilopochtli numa pirâmide de Tenochtitlan,
e que algo análogo tivesse acontecido a Francisco Pizarro às mãos dos incas.
Batalha de Cajamarca (1532), entre os
espanhóis capitaneados por Pizarro e os incas liderados pelo imperador
Atahualpa, no momento em que este, de pé sobre o seu palanquim, é cercado pelos
espanhóis. Gravura por Theodor de Bry, incluída no livro Historia del Mondo
Nuovo (1565), de Girolamo Benzoni
Os conquistadores espanhóis tiveram ainda, segundo
McNeill, outra vantagem decisiva sobre aztecas e incas: aos olhos destes
últimos, o facto de existirem “doenças que só matavam índios e deixavam os
espanhóis incólumes […] só podia ser explicada sobrenaturalmente e não podia
haver dúvida sobre qual o lado que gozava do favor divino. As religiões, os
sacerdócios, os modos de vida construídos em redor dos velhos deuses índios não
podiam sobreviver a uma tal demonstração do poder superior do deus que os
espanhóis adoravam”. Estas implicações psicológicas
ajudam a explicar a vitória espanhola não só em termos estritamente militares,
mas também em termos religiosos e culturais, com os ameríndios a aceitar, sem
grande resistência, a conversão ao cristianismo e os modos de vida impostos
pelos conquistadores.
Entretanto, sob a pressão combinada das doenças de
origem europeia e das doenças tropicais africanas, as populações ameríndias
sofreram perdas que, sobretudo nas regiões mais quentes e húmidas,
ultrapassaram os 90%. Deste modo, na região do Caribe e no Brasil, os
conquistadores brancos viram-se sem mão-de-obra para explorar as suas
plantações e engenhos de açúcar – que requeriam elevado número de trabalhadores
– e decidiram recorrer a escravos africanos, que eram relativamente imunes às
doenças europeias e eram mais resistentes do que os europeus às doenças
tropicais africanas (o que não impedia que tivessem uma taxa de mortalidade
elevada, devido às condições insalubres em que eram forçados a viver, à
brutalidade com que eram tratados e ao facto de cada novo carregamento de
escravos poder trazer um novo influxo de parasitas).
Engenho de açúcar em Pernambuco, por Frans Post
(1612-1680)
McNeill não o menciona, mas é pertinente acrescentar que, devido
à omnipresente ameaça das doenças infecciosas africanas, os europeus que
operavam o infame tráfico negreiro transatlântico não se aventuravam a
internar-se em África para capturar escravos pelos seus próprios meios, estando
o fornecimento de “mercadoria” quase inteiramente dependente dos traficantes
africanos, que não tinham escrúpulos em escravizar os seus vizinhos, como,
aliás, já faziam há séculos para abastecer os traficantes árabes (ver o
capítulo “Foram os escravos africanos as principais vítimas da colonização da
América pelos europeus?” em Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas).
A ideia de que a expansão europeia iniciada no século
XVI era inevitável e que decorria da superioridade inata dos europeus sobre os
restantes povos é contrariada por McNeill: “A verdade é que a Europa se viu na
posição ideal para tirar considerável proveito da nova capacidade para o
crescimento demográfico conferida pelo padrão alterado de doenças a todos os
povos civilizados do Velho Mundo. Às terras que se esvaziavam de ameríndios
acresceram as terras que se esvaziavam de ilhéus do Pacífico e de australianos,
de membros das tribos siberianas e de hotentotes. Em todas estas diversas
regiões, os europeus encontravam-se numa posição sem igual para nelas se
instalarem, graças ao controlo da navegação transoceânica […] e de
outros conhecimentos tecnológicos superiores aos que os povos locais dizimados
pelas doenças tinham à sua disposição. Em todo este vasto processo, a
bacteriologia mostrou-se, no mínimo, tão importante como a tecnologia”:
“Todo
o mundo está com a gripe!”: cartoon de Édouard Pépin (pseudónimo de Claude
Guillaumin), publicado do semanário satírico parisiense Le Grelot em 1899,
representando uma vítima da “Gripe Russa” rodeada de médicos e farmacêuticos –
as três mulheres que integram a roda representam dois medicamentos (quinino e
antipirina) e um tratamento floral. A “Gripe Russa” de 1889-90, também causada
por um coronavírus, está hoje caída no olvido, mas matou cerca de um milhão de
pessoas em menos de um ano, o que faz dela uma das epidemias mais mortíferas do
século XIX
O século XX à vol d’oiseau
O aspecto mais inesperado de Pestes e Povos é a brevidade com que é tratada
a epidemia de gripe pneumónica de 1918-19: dois parágrafos que não chegam a perfazer uma página,
enquanto o livro gasta 12 páginas com um apêndice com uma compilação das
epidemias registadas na China entre 243 a.C. e 1911. Afinal de contas, a gripe
pneumónica foi uma das epidemias que terá causado mais vítimas – 500 milhões de
infectados e 25 a 50 milhões de mortos, nas estimativas conservadoras (até 100
milhões de mortos noutras) – e foi a que, até ao seu tempo, teve maior abrangência
geográfica. Todavia, a verdade é que parece não ter produzido uma inflexão relevante
no desenrolar da História nem deixado marca na estrutura civilizacional (assuntos
que são o eixo de Pestes e Povos),
em parte porque atacou por igual os diversos povos e classes sociais e porque
se extinguiu abruptamente ao fim de dois anos. Deve referir-se que o
politólogo americano Andrew Price-Smith defendeu que a gripe pneumónica terá
influenciado o desenlace da I Guerra Mundial, por ter afectado mais os exércitos
alemão e austríaco do que os exércitos francês e britânico, mas a verdade é que
quando a epidemia começou a fazer estragos pesados entre as tropas já o
desfecho da guerra estava definido, devido 1) à entrada em jogo do
lado dos Aliados dos formidáveis recursos humanos, materiais e financeiros dos
EUA; 2) ao fracasso da “Ofensiva de Primavera” de 1918 dos alemães na
Frente Ocidental, 3) ao estrangulamento económico das Potências
Centrais em resultado do bloqueio naval britânico; e 4) à fome e
descontentamento na “frente interna” e à desmoralização entre os combatentes,
em resultado desse estrangulamento – o que acabou por, na Alemanha, gerar
revoltas e motins a partir do final de Outubro de 1918.
Soldados
infectados com a gripe pneumónica, num hospital de campanha do exército
americano em Aix-les-Bains, França, 1918
Na verdade, não é apenas a
gripe pneumónica que é tratada de forma sumária, pois, com excepção do já
mencionado prefácio sobre a SIDA, Pestes e
povos presta escassa atenção ao século XX. A epidemia de “Gripe Asiática”, de 1957-58 (1-4 milhões de mortos), é
aviada em apenas nove linhas e a “Gripe de Hong Kong”, de 1968-70 (1-4 milhões
de mortos), nem sequer é mencionada. Nos tempos mais recentes, McNeill destaca como
relevante o anúncio, em 1976, pela Organização Mundial de Saúde, da erradicação
da varíola a nível mundial, como sendo “garantidamente uma das perturbações
mais drásticas dos equilíbrios ecológicos mais antigos alguma vez conseguida
pelos seres humanos” (na verdade, o anúncio de 1976 foi um pouco precoce:
registaram-se mais alguns casos isolados de varíola, pelo que esta só foi
considerada oficialmente erradicada em 1980).
Progressão da erradicação da varíola no mundo
Ensinamentos para o nosso tempo
Todavia, McNeill alerta para que não nos deixemos
inebriar por triunfos como o da erradicação da varíola: “a forma como as doenças infecciosas têm começado a regressar mostra que
continuamos presos na teia da vida – permanente e irremediavelmente –, por muito
inteligentes que sejamos a alterar aquilo de que não gostamos, ou quão
bem-sucedidos nos tornemos a afastar as outras espécies”. Noutro ponto do livro,
reflectindo sobre os formidáveis avanços das ciências da vida e da medicina a
partir do final do século XIX, McNeill escreve: “A corrida entre conhecimentos e doenças não se encontrava de modo algum
decisivamente ganha – ou perdida, e, dada a natureza das relações ecológicas, o
mais certo é que nunca venha a estar”.
“A culpa é da
cólera” (1848), por Pavel Fedotov
Infelizmente,
estes apelos à humildade raramente são ouvidos, menos ainda são compreendidos,
e nunca são levados em conta, pelo que, no início de 2019, a presunção da
Humanidade – dos governantes, CEOs e empresários de topo às massas – no poder
ilimitado da ciência e da tecnologia, a crença de que estas tinham permitido
libertar o Homo sapiens da
“teia da vida” (ou seja, da sua condição de animal inserido no contexto
natural) e a falta de memória, conjugaram-se para que, numa altura em que ainda
seria possível tomar medidas que impedissem a covid-19 de ganhar proporções de
pandemia, os decisores políticos e as autoridades de saúde nada fizessem e as
massas continuassem a viajar, a frequentar centros comerciais e mercados e a
divertir-se em grupo (ver “A Natureza nem sempre é amiga”:
Vírus, livros e metáforas).
“Um episódio de febre amarela em Buenos Aires”
(c.1871), por Juan Manuel Blanes
À data da escrita de Pestes e povos, McNeill estava plenamente consciente
da propensão do Homo sapiens para
a soberba e para a ilusão de omnipotência, mas é possível que não contasse com
um factor adicional capaz de desequilibrar a dinâmica entre civilização e
epidemias a favor das segundas: o recrudescimento, no século XXI, da recusa da
vacinação por parte considerável da opinião pública (ver capítulo “A marca da Besta” em Como a matemática controla os nossos
dias). Em 1976, McNeill não poderia
adivinhar que a obsessão mórbida com a “saúde” e a rejeição pueril de tudo o
que não é “natural” tomariam conta de muitas mentes, e muito menos seria capaz
de prever que a estupidez e desvario das massas encontrariam uma formidável
máquina de amplificação e difusão nas redes (ditas) sociais.
O mais desconcertante (e descoroçoante) na crescente
resistência do Ocidente à vacinação (ou “hesitação vacinal”, como é
eufemisticamente designada pelas autoridades de saúde) é que esta é
particularmente frequente no segmento da população com rendimentos médios-altos
e com formação superior. Na Europa, Portugal, que é um dos países com
mais baixa percentagem da população com estudos superiores, tem a mais alta
adesão à vacinação contra a covid-19 (89% da população com pelo menos uma
dose); significativamente, o segmento da população portuguesa em que essa
resistência é maior é a que fez estudos superiores. Por outro lado, registam-se baixas taxas de
vacinação em países europeus que conjugam elevados rendimentos per capita,
altas taxas de escolaridade e uma invejável abundância de bibliotecas, teatros
de ópera e orquestas sinfónicas, como sejam a Suíça (66%), a Áustria (68%) e a
Alemanha (69%).
Os grandes pensadores do Iluminismo, que assumiam que
o acesso generalizado à educação e à cultura e a livre circulação de informação
iriam criar uma sociedade mais esclarecida, racional, equilibrada e feliz,
ficariam certamente acabrunhados perante a desconfiança na ciência, o
obscurantismo, as ansiedades e terrores irracionais e os comportamentos
frívolos, volúveis e narcísicos que campeiam na paradoxal civilização
hipertecnológica de 2021.
LIVROS
LITERATURA CULTURA HISTÓRIA PESTE
NEGRA SAÚDE
COMENTÁRIO:
Marta Calado: Excelente artigo-
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