sexta-feira, 5 de novembro de 2021

De facto


Direi, como um dos Comentadores de Jaime Nogueira Pinto : “Que texto extraordinário”! De uma perfeita visão analítica sobre as divergências que pontuaram fascismos e comunismos ao longo da História do século passado e as deste século - sobretudo por cá – mais votado à visão grotesca sobre uma direita, que a esquerda, enfim instalada e alardeante, se esforça por menorizar, para varrer todos os sintomas de sensatez que ainda restassem num povo educado para a submissão alarve aos que a manipulam. Como sempre, uma bela lição de História, que nos deixa gratos.

A caricatura e o auto-retrato

Enquanto o retrato das esquerdas é geralmente um lisonjeiro auto-retrato, o das direitas é quase sempre uma grotesca caricatura.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 05 nov 2021

Há hoje na Europa e nos Estados Unidos muitas direitas e partidos de direita, alguns até no governo e eleitos com maiorias substanciais. Mas se as direitas são uma realidade tão vasta e complexa como as esquerdas, há uma diferença importante: enquanto o retrato das esquerdas, entre nós senhoras da academia e da comunicação, é geralmente um lisonjeiro auto-retrato, o das direitas é quase sempre a grotesca caricatura de um “outro”, intencionalmente ignorado e amalgamado.

Há uma boa mistura de má-fé, maniqueísmo, arrogância, ignorância e estupidez na caricatura que as esquerdas fazem da direita. Como nas velhas caricaturas racistas de negros ou judeus, a individualidade, a diversidade ou até a humanidade são aqui anuladas, e os traços “característicos da raça” grotescamente exagerados para que o caricaturado surja no seu pior. E como o pior à direita foi o hitlerismo, ligado ao etnocentrismo genocida e fanático que arrastou a Europa para a guerra e para a decadência, é isso que sai na caricatura. Já no auto-retrato à esquerda, não há Maos ou Estalines, Revoluções Culturais ou Goulags, capitalismos de direcção central ou tomadas de assalto de novas “minorias” que ensombrem o rosto pleno de ideal, ciência e progresso e o olhar generoso e justiceiro do auto-retratado.

Revolucionários e conservadores

O fascismo italiano, que foi arrastado na amálgama, era anterior e muito diferente do nazismo. E não tinha veleidades racistas. Mussolini lançou o movimento em Itália, em Março de 1919, quando os socialistas e comunistas italianos, imitando os bolcheviques, tentavam o assalto ao poder. A partir dos princípios nacionalistas-revolucionários do Manifesto de Piazza San Sepolcro, que iam das reivindicações territoriais da “vitória traída” à nacionalização da Banca e ao combate à influência do Vaticano, os fascistas italianos apareceram como alternativa autoritária e violenta à violência da esquerda radical. E três anos depois, com a neutralidade colaborante das forças conservadoras Monarquia, Exército, Igreja, Indústria –, chegaram ao poder pela via mista, insurrecional e legal.

Esta direita revolucionária teve cópias na Europa a Falange, em Espanha, os nacionais-sindicalistas, em Portugal, Oswald Mosley, em Inglaterra, Léon Dégrelle, na Bélgica, a Guarda de Ferro, na Roménia.

Paralelamente a esta direita fascista ou fascizante surgiu, na mesma linha de reacção ao “perigo comunista” (que era um perigo real), uma direita nacional-autoritária, não-revolucionária e até reaccionária. Era uma direita tradicionalista com raízes nas escolas francesas contra-revolucionárias que, de Joseph de Maistre a Charles Maurras e à Action Française, tinham desenvolvido uma teoria do Estado que se opunha radicalmente aos princípios da Revolução Francesa, qualificada através do Terror.

Estas duas direitas, uma totalitária e outra autoritária, uma mais popular outra mais elitista, não eram liberais. Na Europa, os autoritários chegaram ao poder através de ditaduras militaresPilsudsky, na Polónia, Horthy, na Hungria, Primo de Rivera, em Espanha, Salazar, em Portugal, Metaxas, na Grécia – e fundaram regimes quase sempre apoiados pelas Igrejas oficiais e pelas classes médias. Nem os fascistas nem os nacionais-autoritários aceitavam o liberalismo (excepto na economia) e muito menos a democracia partidária.

Há depois uma terceira classe de direitas: as liberais-conservadoras ou conservadoras-liberais, inspiradas em autores como Chateaubriand e Tocqueville e num conservadorismo à inglesa. Mas nos vinte anos entre as duas Guerras, esta direita liberal-conservadora, fiel aos princípios constitucionais, foi sendo neutralizada na Europa, sobrevivendo apenas em França, na Grã-Bretanha e nas monarquias nórdicas.

A Segunda Guerra Mundial varreu os regimes e os partidos fascistas e autoritários que se tinham aliado com o Terceiro Reich e o comunismo veio com os exércitos soviéticos e ocupou toda a Europa Oriental, erguendo a Cortina de Ferro. Para Ocidente, ficaram democracias liberais e, na Península Ibérica, dois regimes nacionais-autoritários, socialmente conservadores, que duraram mais ou menos o tempo de vida dos seus fundadores.

Depois da Guerra Fria

Em 1989-1991, a URSS implodiu e libertou a Europa Oriental. O mundo tornou-se, então, um vasto mercado, e o liberalismo económico dos conservadores anglo-saxónicos – representado pela dupla Reagan-Thatcher e coincidente com a abertura do capitalismo de direcção central na China de Deng Xiaoping – cresceu para a globalização.

As consequências económicas e sociais desta nova globalizaçãoa deslocalização de parte das indústrias da Europa e dos Estados Unidos para a Ásia e as migrações para um Ocidente em queda demográficaromperam o centrismo ideológico do mundo euro-americano da Guerra Fria.

À direita, na Europa, os partidos conservadores e democratas-cristãos deixaram-se dominar pelo europeísmo, desvalorizando os factores nacionais e identitários e ignorando o progressivo descontentamento das massas populares. À esquerda, as vanguardas radicais, numa recuperação nostálgica do libertarismo “soixante-huitardcom laivos de totalitarismo maoista e comunista, abandonaram a “luta de classes”, acomodaram o internacionalismo ao globalismo e dedicaram-se à engenharia social e humana com a tentativa de imposição, por influência e por legislação avançada, de causas ou micro-causas “fracturantes”.  Gramsci passou a contar mais que Lenine.

Tal como, outrora, o perigo comunista, tudo isto provocou e provoca reacções. Numa época de ofensiva e de radicalização disruptiva, os movimentos políticos reagem sobretudo ao que percepcionam como o inimigo principal. Daí uma escalada que já levou a soluções extremas, como o Brexit, ou a conflitos quentes, como o da União Europeia com a Hungria e a Polónia.

Assim, de uma ponta à outra da Euro-América, crescem muitas direitas: como, na Rússia, a direita de Putin, nacionalista, popular, autoritária e aliada com a Igreja Ortodoxa; ou, nos Estados Unidos, à volta de Trump e centrada no Sul e no Midwest, uma direita também popular, conservadora e religiosa.

Na Europa Continental predominam duas direitas: uma é nacional-conservadora e popular, com uma agenda de combate político e cultural à hegemonia de Bruxelas, às imposições da nova esquerda e à imigração descontrolada, como a húngara e a polaca; a outra é mais popular ou populista, menos conservadora nos costumes e mais radical na hostilidade às “elites dominantes”, na denúncia da imigração indiscriminada e no apelo a factores nacionais e identitários. É a direita dos Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni, do Rassemblement National, de Marine Le Pen e da AFD alemã. Os seus apoiantes têm características sociais próximas dos que, no passado, apoiavam os movimentos de direita revolucionária; tal como os partidários dos nacionais-conservadores de agora e aproximam, em perfil social, dos antigos apoiantes dos modelos autoritários.

A diferença profunda de todas estas direitas em relação aos movimentos fascistas e autoritários de há 100 anos, que tinham uma agenda anti-democrática ou pelo menos anti-democracia partidária e concorrencial, é o facto de não proporem uma teoria de legitimação do poder que exclua eleições livres e justas.

O exotismo português

Em Portugal, porque a esquerda tem o quase monopólio da interpretação e da comunicação, persiste a absolvição generalizada do radicalismo dos descendentes de Lenine, Trotsky e Estaline, que também contamina a direita, a par da tentativa, por parte da esquerda no poder, de absorver as extremas-esquerdas absolvidas para se instituir como uma só entidade, democrática e de “rosto humano”.

Entretanto, qualquer esboço de resistência à direita, qualquer tentativa de saída do gueto do centrismo obediente, são logo catalogados como perigosas revivescências do “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, para usar o célebre “mantra” de Álvaro Cunhal. Ou seja, a direita tanto é amalgamada em bloco como uma hidra fascista de uma só cabeça – a fim de unir as esquerdas –, como é encorajada a dividir-se por linhas vermelhas, demarcando-se dos seus veios “iliberais”, a fim de que reine “a Esquerda”, legítima detentora do “regime democrático”.  E, dado o panorama, não parece que isto vá mudar.

POLÍTICA   HISTÓRIA   CULTURA

COMENTÁRIOS:

King Size: Que texto extraordinário          Pontifex Maximus: A última frase do texto é pura e simplesmente arrasadora: “E, dado o panorama, não parece que isto vá mudar.” Assim sendo, é esperar mais uma vez que o vento mude de feição…            Theodor Adorno: Caro intelectual saudosista: a sua ideologia foi derrotada. Grato pela atenção!           maldekstre estas kaptilo: Mas acabamos por chegar à conclusão de que a caricatura, mesmo grotesca, é infinitamente melhor do que o mais aprimorado dos retratos.          João Afonso: Não é só a CS que branqueia a esquerda Trotskista-Leninista-Estalinista-Maoísta. A Universidade idem. A "escola pública" idem idem aspas aspas. E assim se torpedeia a democracia, enquanto se promove a ignorância e o sectarismo políticos.        Paulo SilvaJoão Afonso: Meu caro, aqui pode não ter sido assim, mas lá fora, onde o fenómeno começou, a Universidade foi a origem, não a CS. Porque é a Universidade que forma os profissionais e as elites. A Revolução começa na sala de aula. Este foi o grande ensinamento de Antonio Gramsci, um dos principais gurus do marxismo cultural.         josé maria: o das direitas é quase sempre uma grotesca caricatura. E não é que alguma vez havia de concordar consigo, ó Jaime...           Portugal, que Futuro: JNP, Ao que designou de "exotismo português", eu acrescentaria o iliberalismo convergente em tantas matérias de IL e BE. E não estou a falar só de costumes (e os chamados temas fracturantes) onde um diz "mata" e o outro diz "esfola". Estou a pensar também em matérias do foro económico como a TAP, em que sectores de ambos defenderam a nacionalização da empresa.           Paulo Silva: Caro colunista JNP, pertinente e bem a propósito vem este texto. A Esquerda nunca foi à barra de um Tribunal de Nuremberga, (e bem o merecia por todos os crimes hediondos que cometeu contra a humanidade em nome das suas falaciosas ideias), mas essa é uma grande diferença. Existem outras, mas tenho para mim que essa marca histórica marca o consciente e o inconsciente colectivo das sociedades contemporâneas. Ainda ontem assisti atónito a um excelente exemplo da má-fé, do maniqueísmo, da arrogância, da ignorância e da estupidez que o articulista refere, a juntar à ingenuidade mais confrangedora, à cobardia mais reles e à mediocridade que grassam… em especial entre as elites de bem-pensantes deste pobre país pobre. Para meu grande espanto, e de quem tem algum conhecimento, (não é preciso muito, basta ter os olhos abertos), ouvi ontem um tal Pedro Marques Lopes, que se diz de direita, ou centro-direita, (deve ter cá uma noção), a dizer que colocava em paralelo o PCP e a IL nos extremos do espectro político aceitável. Isto é, dos partidos democráticos. O «Chega!» ficava de fora porque não era democrático. Ao que o sr. Daniel Oliveira anuiu, com o silêncio neutral, ou cúmplice, dos outros dois comentadores de painel. Absolutamente patético. Comentários destes são o lixo do lixo. O grau zero da consciência… Mas desde quando o marxismo-leninismo é democrático?!?… Será que estas alminhas iluminadas só vêem a pele de cordeiro que lhe colocaram em cima???… O BE, onde pontuam ex-FP 25, são outros quinhentos... Gil Santos > Paulo Silva: Muito bem dito. Resposta perfeita a essa gente toda que tratam o CHEGA e seus simpatizantes como leprosos...        Paulo Silva > Gil Santos: Caro comentador, o CHEGA! é um agrupamento político recentíssimo que sofre dos naturais problemas do crescimento, mas os cínicos não se compadecem com isso. Pode ter muitos defeitos e incongruências, mas não tem medo da palavra Direita. O que sempre faltou à nossa democracia coxa. Para mim isso é fundamental. Além do mais querer ver o PCP e a IL como espelho um do outro, é uma ideia completamente abstrusa. O único espelho do PCP à direita seria um partido nazi ou fascista. O CHEGA! não é uma coisa nem outra, muito menos a IL… que aliás até é de largo espectro; vai do liberalismo económico, (caro à Direita), ao liberalismo dos costumes, (apanágio da extrema-Esquerda radical). A comparação que o sr. Lopes fez não tem o mínimo sentido. Só serviu para anatemizar o CHEGA!, e branquear o PCP... Se há partidos anti-democráticos na sua essência são os partidos comunistas. Os vários experimentos pelo mundo fora são a prova.          Manuel Antoni: óptima análise. assino por baixo.           Maria Alva: Sempre muito didáctico e esclarecedor. Parabéns JNP👏         Mamador Chulo dos Tugas: Mais uma lição de história, não esquecer os comunas do presente, Venezuela, Coreia, onde continuam a semear fome e tortura pelo povo. A cs nada diz sobre isso, importante é o que se passa na Polónia e Hungria em relação aos lgbt.           Fenix Europa: Nazismo foi crime? Foi!!!! Comunismo foi e continua a ser crime? Também!!! Então por que razão os iluminados da comunicação social insistem em branquear o comunismo? São cúmplices do crime?         Hipo Tanso: Muito bom, como sempre. Radiografia certeira da estrutura vertebral da política portuguesa. E infelizmente os ossos são precisamente o mais difícil de roer. Sabemos que não vai ser fácil, mas bom será que não deixemos de acreditar.         bento guerra: A direita é má,a esquerda é boa e os portugueses são de "esquerda",a que distribui o dinheiro dos frugais da Europa           João Afonso > bento guerra: " A direita é má, a esquerda é boa..." e os portugueses são pobres, obviamente.           Fernando E: Muito bem. Raramente se fala dos genocídios perpetrados por Lenine, Estaline , Mao, e Pol Pot! Nem das ditaduras dos regimes de Enver Hoxha , Ceausescu , da RDA E URSS! Etc etc             João Floriano: Leio sempre com muito prazer as crónicas de Jaime Nogueira Pinto. Aprendo sempre bastante. Esta crónica é particularmente feliz na utilização da alegoria caricatura/auto retrato. O controle da CS por parte da esquerda é fundamental para a construção do seu auto retrato e não é por acaso que o Bloco de esquerda é enjoativamente feminino e mais do que isso amazónico. A luta de classes de há anos, que se desenrolava nas ruas, nas manifestações, passou agora para um patamar diferente, de gente mais intelectual, mais letrada. É o caso das universidades dominadas pela esquerda, ou mais prosaicamente a educação em geral. Resumindo: CS e Educação são dois campos  em que a Direita se terá de confrontar com a esquerda para que não haja nem caricaturas grosseiras nem auto retratos lisonjeiros mas completamente fora da realidade.

 

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