O status da real pobreza.
Um texto explícito de Jorge Fernandes. Sem os gráficos que colocou.
Será este o país que merecemos?
Os sonhos de fazer de Portugal um país
Europeu esboroaram-se. Quem estiver confortável com isso, pode votar pela
manutenção do status quo. O regime actual, tal como o conhecemos, está exangue.
JORGE FERNANDES
OBSERVADOR, 03 nov 2021
Depois do fim da Geringonça, o país parte
agora para eleições. É um momento de balanços e de escolhas. Ao longo dos
próximos meses, terei tempo para escrever aqui sobre o futuro e os dilemas que
Portugal atravessa. Para já, interessa-me fazer um ponto da situação. Existe
demasiada cacofonia no ar. Neste artigo utilizo alguns indicadores-chave que,
penso, reflectem bem a situação dificílima em que o país se encontra. Para
pensarmos os meses que se avizinham de forma ponderada e séria, precisamos de
informação séria.
Ao escrever este artigo o meu objectivo é
fazer uma dupla interpelação. Por um lado, às gerações mais velhas, gostaria
que pensassem no país a caminho da miséria que estão a deixar aos vossos
filhos. Os sonhos de fazer de Portugal um país Europeu esboroaram-se. Quem estiver
confortável com isso, pode votar pela manutenção do status quo. Por outro
lado, à minha geração, haverá ainda alternativas à emigração? Muito
sinceramente, creio que não. À excepção de alguns arrivistas, que colhem as
prebendas que o poder deixa cair, Portugal não é um país que valorize o mérito
ou o esforço pessoal. Numa nota pessoal, durante anos, acalentei a esperança de
que ainda houvesse alternativas – no fundo, não acreditava que fosse possível
ao país descer tão baixo a vários níveis, como agora chegámos. Tentava contra-argumentar
com a minha esposa que afirmou sempre que regressar definitivamente a Portugal
corresponderia a um apodrecimento profissional e intelectual. Claro que há o
sol, a comida, e o aeroporto para irmos saindo de vez em quando. Nisto, como em
tantas coisas, o tempo veio a dar-lhe razão.
Uma pequena nota metodológica antes da
análise propriamente dita. Todos os dados utilizados abaixo provêm de
organismos internacionais com reputação à prova de bala, a maior parte deles do
Eurostat. A maioria das séries temporais começam em 2001 para controlar para o
efeito do Euro. Por último, a série temporal termina em 2019 para não haver
qualquer ruído gerado pela pandemia. Todos os dados e cálculos estão
disponíveis para replicação.
A desigualdade
Para começarmos a perceber onde nos
encontrarmos, olhemos, em primeiro lugar, para o índice de
Gini. De forma simples, este índice permite medir o quão
grande é a desigualdade dentro de cada país. A Figura 1 mostra o índice de Gini
para os países da União Europeia em 2019, já com o Reino Unido de fora. O
panorama é absolutamente desolador. Portugal é o 20º país
mais desigual da UE. Atrás de nós temos apenas Espanha e Itália, na Europa
do Sul, assim como alguns países do Leste Europeu, que ainda pagam a factura da
abjecção Comunista. O Luxemburgo tem mais desigualdade do que Portugal, mas
este facto deve ser posto em perspectiva dado o elevadíssimo
rendimento per capita e os fluxos de investimento bancário
internacional. Inúmeros países que adoptaram políticas liberais, como a
Irlanda ou a Estónia, são agora menos desiguais do que Portugal. Este
é apenas o primeiro indicador de como Portugal é, como dizia Adérito Sedas
Nunes no seu artigo canónico, uma sociedade dualista.
A riqueza
Em
seguida, olho para o PIB per
capita em
paridade poder de compra em 2019. Aqui, também, Portugal está numa posição
francamente má. Em 1986, quando entrou na Comunidade Europeia, Portugal era
indubitavelmente o país mais pobre da Europa Ocidental. Em 2004, quando os
países do Leste acederam à UE, Portugal continuava na 15ª posição. No entanto,
os dados de 2019 mostram uma imagem bem diferente. A Figura 2 ilustra
claramente que Portugal tem vindo a perder lugares de forma consistente, numa
trajectória descendente que não augura nada de bom. Em 2019, o PIB per capita
em paridade de poder de compra coloca Portugal bem lá atrás num honroso 21º
lugar, com perspectiva de rapidamente sermos ultrapassados pela Polónia e mesmo
pela Hungria do Sr. Órban. Portanto, mantendo a trajectória, dentro de 5 anos,
seremos o 24º ou 25º mais rico da União quase a roçar o fim da tabela.
A questão da despesa social
Ao
longo dos últimos anos, o debate sobre o Estado Social tem evoluído imenso na
Europa. Já em 2002, Esping-Andersen clamava pela necessidade de revisitar o paradigma do estado social.
Passámos da ideia puramente assistencialista, para uma perspectiva em que o estado deve investir em funções sociais que, acima de tudo, permitam qualificar a
população ao longo da vida, aumentando o capital humano, a produtividade e o
bem-estar geral. As Figuras 3 e 4 fazem uma distinção central na utilização dos
dinheiros públicos para o estado social. A Figura 3 agrega todas as despesas do
estado social, incluindo pensões, baixas, desemprego. A Figura 4, por seu lado,
mostra o investimento social em políticas de infância (incluindo
creches e apoios à maternidade), políticas de educação e de treino vocacional.
No fundo, a Figura 4 permite-nos isolar as políticas públicas do estado social
que têm efeitos reprodutivos e que permitirão à sociedade não apenas crescer
economicamente, mas também aumentar o bem-estar.
A
Figura 3 mostra Portugal num honroso 16º lugar na União Europeia, com um investimento per
capita um pouco superior a 5.000 Euros. A Figura 4, pelo contrário, mostra um cenário bem
diferente. Isolando as funções sociais do Estado que têm mais efeitos para
o futuro, Portugal está em 22º lugar, apenas acima de França, Eslováquia, Grécia
e Itália. Reparem, de resto, os países que fazem mais investimento social
nestas funções do Estado e como estes se estão a posicionar para serem os mais
ricos da Europa. Todos os nossos concorrentes directos estão a investir
muitíssimo mais do que Portugal em políticas sociais que trazem benefícios
futuros. O problema é que as políticas eleitorais não são alheias a tudo
isto. Os mais idosos continuam a ser as bases de apoio fundamentais dos
partidos políticos. Os incentivos eleitorais para pensar no futuro são muito
poucos. Reparem que não digo que temos de deixar de pagar pensões. Seria
absurdo, até porque não é um benefício, mas sim um direito, na medida em que as
pessoas deram dinheiro ao Estado ao longo da vida para o receber de volta nesta
altura da vida. No entanto, parecer-me-ia correcto explicar ao país, sem
fantasmas, que seria mais importante investir em creches e qualificação da
população jovem activa e, ao mesmo tempo, colocar um tecto nas pensões e nas
pensões de sobrevivência conjugal sob pena de, a prazo, não havendo
investimento em políticas sociais correctas, não conseguirmos pagar nenhuma das
duas.
A emigração
A
emigração sempre foi uma marca indelével da sociedade Portuguesa. Nas
primeiras duas décadas de pertença à UE, Portugal começou lentamente a
tornar-se um destino de imigração, assistindo à queda da emigração. O
crescimento económico e as oportunidades internas, criavam menos incentivos à
emigração. Os dados mais recentes, contudo, mostram uma clara inversão da
tendência. A Figura 5 mostra a evolução da emigração
Portuguesa permanente entre 2000 e 2020. Os dados utilizados para a
feitura desta figura provêm da PORDATA, que distingue entre emigração
permanente e temporária. No início do século, Portugal tinha níveis de
emigração historicamente baixos. Em 2000, registaram-se 5000 emigrantes
permanentes. A crise de 2008-2009 marcou uma inflexão, atingindo um pico nos
anos negros da troika, quando 85.000 Portugueses emigraram em 2014. É
verdade que, nos últimos anos, a tendência de emigração tem sido de declínio.
No entanto, apesar do milagre económico Português operado pela mão direita do
Dr. Costa, em 2018, emigraram 31.000 Portugueses. De facto, a Figura 5 mostra
que os números da emigração nunca mais recuperaram para níveis pré-troika.
Fazendo uma comparação entre o primeiro mandato de José Sócrates (2005-2009) e
o mandato de António Costa (2015-2019) vemos uma diferença abissal. Segundo os
dados da PORDATA, no primeiro mandato de José Sócrates emigraram 57.106
Portugueses, enquanto que, no primeiro mandato de António Costa, emigraram
170.222 pessoas. Parece que houve um número considerável de Portugueses que
continuaram cépticos que as vacas voam e preferiram fazer a vida noutras
paragens.
A ciência e o
investimento em I&D
O investimento em ciência e tecnologia
é central para o desenvolvimento de qualquer país. De resto, a Geringonça terminou com um ciclo infernal
de desinvestimento, precaridade, e quebra de produção científica que marcou a
estadia da troika em Portugal. Esta é a história oficial. Todavia, não é a
história verdadeira. Os dados mostram um padrão completamente diferente.
Segundo a PORDATA, utilizando dados nacionais e internacionais, a Geringonça
realizou uma quebra do investimento em ciência. Como mostra a Tabela 1, em 2011,
quando Sócrates deixou o governo, Portugal investia 0.4% do PIB em I&D,
valor que era igual em 2015, no último ano de mandato de Passos Coelho. Em
2019, o governo de Costa fez o investimento em ciência cair para 0.3%. Somos,
alegremente, o 24º país da Europa no investimento em Ciência e Tecnologia.
Para
além da quebra relativa a que assistimos em Portugal, ao contrário da
propaganda oficial, a Tabela 1 mostra ainda alguns padrões interessantes. Sem
surpresa, a Alemanha é o país europeu que mais investe em
I&D. A Grécia, por exemplo, subiu o seu investimento público em ciência de
0.3 para 0.7 do PIB entre 2011 e 2019.
Aparentemente, a elite Grega percebeu que a receita Alemã é capaz de dar
mais resultados a prazo. É certo que países como Espanha ou a Irlanda
também diminuíram o investimento público em ciência. No
entanto, em ambos os casos, especialmente no caso irlandês, a descida pública é
muito mais do que compensada pelo investimento privado, que é, como sabemos,
demonizado em Portugal.
O salário mínimo (e o salário médio)
Durante o tempo da Geringonça o
salário mínimo aumentou. Isto é um facto indesmentível e, creio, da maior
importância para a imensa multidão que, infelizmente, tem de sobreviver com tão
pouco. No entanto, a falta de produtividade da economia Portuguesa, assim como
o seu empobrecimento relativo, faz com que o aumento do salário mínimo traga
uma consequência perversa: a continuarmos a este ritmo, dentro de poucos anos,
o salário mínimo estará em linha com o salário médio (sei que deveria usar o
salário mediano para esta comparação, mas tive dificuldades em aceder a dados
recentes). A Figura 6
mostra o salário mínimo e o salário médio nos países da UE. Portugal tem o 17º
salário mínimo mais alto, assim como o 17º rendimento médio líquido mais
alto. Apesar da sua crise violentíssima, estamos abaixo da Grécia, e mesmo
de Malta e Chipre. Continuamos acima das economias do Leste Europeu. No
entanto, o gráfico mostra uma tendência evidente: nos países mais ricos, a
diferença entre salário mínimo e salário médio é substancialmente maior do que
nos países mais pobres. Seguindo a tendência actual, a breve prazo, Portugal
será um país em que a esmagadora maioria da população ganhará o salário mínimo.
Uma política com visão de futuro percebe a necessidade
de aumentar o nível do salário médio, que não é tabelado por lei, e não apenas
do salário mínimo, que deveria ser recebido apenas por uma minoria da
população.
Os
sete indicadores que aqui trouxe mostram bem o estado a que Portugal chegou. A esperança é inexistente. Conversar com jovens com menos de 30 anos em Portugal,
neste momento, é elucidativo. A esmagadora maioria assume, com a maior
tranquilidade e simplicidade, que o seu futuro passa pela Europa rica. Um país
que deixa isto acontecer está condenado.
Catarina Martins disse outro dia uma frase muito acertada, referenciando-se à
Geringonça, que parafraseio: não está na altura de fazer autópsias. Concordo
absolutamente. Não vale a pena perdermos tempo a discutir os governos de
Sócrates, Passos Coelho ou mesmo da Geringonça. Todos eles representam o
passado, ideias velhas, e momentos a que não queremos regressar. É necessário
pensar no futuro e não ter vergonha, nem tabus, de apontar caminhos
alternativos. O regime actual, tal como o conhecemos, está exangue. Quem não
vir isto agora, poderá apenas vê-lo quando for tarde demais.
CRISE POLÍTICA POLÍTICA DESIGUALDADE SOCIEDADE EMPREGO EMIGRAÇÃO MUNDO CRESCIMENTO ECONÓMICO ECONOMIA
COMENTÁRIOS (entre 126)
Manuel Rodrigues: Maior instrução, conhecimento, sem liberdade económica não nos traz
felicidade mas sim maior desigualdade e empobrecimento do nosso Povo.
Queremos
Partidos para libertarem a Sociedade e assim criarem o seu Futuro e dos
seus filhos. O que temos são " clubes de amigos " que se organizam para
resolver os seus problemas à custa do erário público.
Queremos Agentes
da Mudança e o que temos são agentes da estagnação
putrefacção e da fetidez. Futuro é renovação, é
mudança... Pensemos além da nossa própria mediocridade !!! Carlos Chaves:
Caro Jorge
Fernandes, muito obrigado por este excelente trabalho, como ontem ouvi a Maria
João Avillez na TVI, este artigo/estudo devia ser de ensino obrigatório nas
nossas escolas! MCMCA
A: Vai ficar tudo na
mesma porque 45% trabalham no duro e pagam os impostos para os restantes 55%
viverem por conta do "estado" (ou seja dos pagadores de impostos) Filipe Costa:
Um bom ensaio,
parabéns. José
St. Mota: Tudo isso já se sabia, por aí nada de novo. O problema
de fundo deste país é ausência de capital e capitalistas de risco para investir
na inovação e desenvolvimento para atingir um mercado mundial. Isto não são os
governos que o fazem. O capital por cá está nas mãos de quem não arrisca nem
desenvolve nada, limitam-se a investir em sectores altamente protegidos e
garantidos pelo Estado, com garantias de se a coisa correr mal não são eles que
perdem. Fora isso nem pensar. E sempre bem seguro em off-shores. Mario Almeida:
O regime actual,
tal como o conhecemos, está exangue. Quem não vir isto agora, poderá apenas
vê-lo quando for tarde demais. Como Rui Ramos já explicou e reexplicou o regime não
está encangue por acaso, muito menos por acidente, azar ou descuido.
O estado em que o país está
também não está oculto, escondido ou disfarçado (talvez mascarado como compete
a um circo de palhaços). Está à vista de todos. O estado do país é o resultado
da ação de uma elite política corrupta e de uma elite económica rentista. Nem
sempre foi assim mas desde 1995 que é assim com alguns intervalos por imposição
de quem empresta o dinheiro… e que a esquerda à esquerda do possível (de
regresso ao impossível de que tanto gosta) vai começar outra vez a dizer que é
para não pagar. O estado social (o ultramar do PS) é o sistema de compra de votos com
dinheiro dos impostos que permite que o sistema continue legitimado.
A direita tem de decidir se
quer ser Sá Carneiro ou Marcelo Caetano! Com o afilhado em Belém a escolha vai
sendo a que se vê! Joaquim
Moreira: Sobre a análise
da situação nada a dizer. A não ser que não posso deixar de concordar com o
trabalho que fez o favor de nos dar! Já sobre a conclusão, tenho uma diferente
opinião. E não é sobre a necessidade de “pensar no futuro e não ter vergonha,
nem tabus, de apontar caminhos alternativos”. Muito menos sobre a situação
“exangue” a que chegou o regime. A minha diferença está no facto de considerar
absolutamente necessário que se analise muito bem como chegamos até aqui.
E disse muito bem, porque,
desde logo, deve ser feito pelo inquilino de Belém. Mas também por todos os
partidos, sobretudo os partidos de poder. Porque, se uma reflexão profunda não
for feita, nunca mais vamos encontrar o tal caminho de que fala a “direita”.
Ou, como diz Joaquim Aguiar, nunca mais saímos da rotunda em que andamos a
circular! António
Sennfelt: Excelente artigo! Parabéns!
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