sábado, 27 de novembro de 2021

Boa síntese


Sobre um hoje sem esperança. De Maria João Avillez.

 Os empatas

Votar atrai hoje menos, constatação mais perigosa do que parece. Não votar afasta, amolece, desresponsabiliza. Desenraíza o cidadão do imperativo da cidadania. Votar dá-nos a legitimidade da exigência.

MARIA JOÃO AVILLEZ                  OBSERVADOR, 27 nov 2021

1Não arrisco: apesar de faltarem poucas horas para que os votos escrevam o nome do próximo presidente do PSD, sou incapaz de um prognóstico. Prognósticos só no fim do jogo como dizia o outro (qual? já não lembro) além de que aprendi com o dr. Soares que até ao lavar dos cestos é vindima, o que em política é absolutamente verdade e o que não faltam são exemplos disso mesmo e recentes. Passou de resto a haver como que uma “instalação” no sofá das sondagens como instrumento único da percepção política. Transmitir uma sondagem passou definitivamente a ser tomado pelo receptador como o selo de garantia sobre um resultado, em detrimento seja do que for. Como por exemplo sobre essa prosaica coisa que é a observação: da vida, do factor humano, dos comportamentos, atitudes, gestos, vozes e de como tudo isso desaguará depois na decisão política. Espanto-me sempre com o pouco caso que se faz daquilo que está à nossa frente, se justamente bem observado.

Todo este arrazoado um bocadinho enfastiante para dizer que não sendo de todo indiferente quem venha a ganhar o PSD, há porém algo ainda menos indiferente. Algo como uma cláusula definitiva posta num contrato e chama-se Portugal: o país agradeceria libertar-se da prisão da cepa torta onde vegeta, embora o actual poder político continuamente glorifique a cepa torta e a veja como um triunfo com assinatura socialista. E ou se percebe bem a importância fulcral da cláusula ou é quase indiferente quem venha a presidir ao maior partido da oposição. Tem de haver algo de maior – e alguém maior – do que as monocórdicas boas intenções e os vazios clichés eleitorais. Alguém que em vez de abrir leques de promessas a eito, se decida e dê a vida por um ou dois indispensáveis grandes propósitos. Reformar o Estado, à cabeça. Uma façanha. Torná-lo menos voraz no seu apetite pelo nosso dinheiro. Outra façanha. Um Estado que interfira menos e nos respeite mais, terceira façanha. Aí, sim, já teria valido a pena o voto no autor-concretizador das façanhas, fosse ele qual fosse. Criar riqueza. Não se pode apenas correr só atrás da pobreza, é imperioso atender ao pulmão da economia. Criar riqueza sim. E também podia ser a Educação, a Justiça, tratadas como enteadas do poder vigente mas uma e outra, temas quase lancinantes pelos quais valeria muito a pena que houvesse quem soubesse como se bater.

2Nem se pode subestimar que o voto atrai hoje menos eleitorado. Ou que em 2021 pouca juventude fora das fronteiras partidárias avança alegre e convicta para uma secção de voto (constatação mais perigosa do que parece). Não votar afasta, amolece, desresponsabiliza. Desenraíza o cidadão do imperativo da cidadania. Votar confere a legitimidade da exigência. Não se pode continuar a confundir anúncios de 20 ou 100 medidas supostas salvar a pátria, promessas genéricas de benesses sociais falsamente sustentáveis com as tais duas ou três cruciais escolhas que há que fazer – e  há mesmo, repito –, sem as quais o prometido não pode ser devido. Portugal tem conhecido políticos lesivoshabilidade, calculo e presunção em vez de visão, destemor político e reformismo – e líderes com o entendimento da boa liderança. Só esses servem os países. Não há? Parece que não. Mas é como as marés que sobem e descem, um dia voltará a haver, é da natureza das coisas.

3Uma vez ocorreu-me que faria Sá Carneiro “disto”. Com a enorme independência de espírito que me confere o não ser saudosista nem praticar o sebastianismo (coitado do sebastianismo), às vezes dou comigo a pensar: e Sá Carneiro, hoje? Mesmo dando de barato que as circunstâncias do seu tempo e do nosso não autorizam nenhuma espécie de comparação e desaconselham extrapolações pouco sérias, que faria ele? Como agiria o fundador do PSD neste marasmo feito de empatas? Alguma coisa faria. Talvez rompesse com o que está, talvez desinfectasse o ar político do país de alguns dos seus nefastos vírus, talvez ateasse o fogo da polémica quando separasse o trigo do joio. Talvez começasse por haver o choro e ranger de dentes dos empatas. Uma coisa é certa: unia o centro e a direita e tomava conta deles. De todos, sim. E depois saberia bem por onde ir e o que isso (lhe) custaria. E então também talvez pudesse começar de facto – e de vez – outra história política. A única que valeria mesmo a pena que começasse (estou a repetir-me: é de propósito).

4E mesmo que nada fique igual, após Janeiro de 2022, que surja uma variação menos assustadora do “mais do mesmo” que vigorou durante seis ou sete anos, os actores-decisores serão hélas, previsivelmente os mesmos empatas. Os que têm fechado o oxigénio do país, sonegado as vitaminas do seu crescimento, impossibilitado ambições e vetando futuros. E os que têm pactuado com isso ou têm escolhido não desagradar ao poder (são tantos, santo Deus).    

 É isso: que fariam hoje os líderes políticos que o país respeitou e em quem confiou?

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