A
Náusea de Sartre, O
Processo de Kafka, o
Estrangeiro de Camus, bem como A
Peste; 1984 de Orwell mais
O Triunfo dos Porcos, tudo isso que
é desvio do mundo da norma e que foi aproveitado pelos escritores inteligentes
e sofredores, reagindo a todos os totalitarismos na sua náusea da Vida e dos
Homens, incluindo o sentimento de frustração do próprio que escreve, de tudo
isso se aproveita Paulo Tunhas para
demonstrar o novo totalitarismo que se impõe, o da Terra vergastada pelos maus
tratos humanos, ganhando força anímica na sua ladeira de destruição vingativa. E
a par disso, o poder bestial das massas humanas impondo os seus ditames de
anteriores vítimas, transformadas em algozes, nas novas subversões monstruosas.
Não mais o mundo encantado da infância ou
da adolescência, com os seus livros enganadores de graça e bons costumes
subentendidos. A guerra está bem expressa nos livros, nos filmes do engenho
humano, de cada vez mais masturbações mentais, na previsão das explosões a chegar.
Paulo Tunhas pretende
usar o seu humor habitual, na criação do seu sonho alegórico, mas está,
decididamente preocupado. Como todos nós. Nem podia ser de outro modo.
Praça Greta Thunberg
Depois de nos despedirmos com um
convencional Dia climático justo! chamo um Veículo Ambiental Resiliente de
Transporte e sigo em direcção à Unidade de Erradicação da Memória dos
Homens Brancos Mortos.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 04 nov 2021
Iniciou-se
no domingo passado, em Glasgow, a Conferência da ONU sobre as Alterações
Climáticas. Aí se reúnem os poderosos deste mundo para debaterem as estratégias
a seguir com vista a contrariar o chamado “aquecimento global”. As
discussões são acompanhadas, como é costume, por protestos, entre o puro e duro
e o horrendo estilo “engraçado”, de vários grupos radicais que denunciam a
retórica vazia dos líderes mundiais e a sua manifesta falta de vontade de
encarar o problema na sua real dimensão apocalíptica. O que se seguirá às palavras dos líderes, afirmam, será
nada, perfeitamente nada, pela milésima vez nada. Blá-blá-blá, só blá-blá-blá. “Estão-nos a roubar a
nossa infância” dizem, inspirados por Greta Thunberg, alguns barbudos e outros
adolescentes dos 7 aos 77 anos. “Podem enfiar a vossa crise climática pelo rabo
acima”, disse a maluquinha em pessoa. Eis um espírito livre.
O
problema não está, obviamente, na questão ecológica em si. O problema não está sequer na intrínseca falibilidade
dos modelos utilizados para prever o futuro em matérias climáticas, assunto
sobre o qual dispomos hoje em dia de uma vasta literatura razoavelmente
esclarecedora. Tal
falibilidade não deve justificar de forma alguma a indiferença perante os
problemas ecológicos e funcionar como obstáculo a uma acção decidida, que tenha
em conta os outros aspectos do bem-viver dos humanos e que contribua, na medida
do possível, para a melhoria da saúde do planeta. O problema começa com
a paixão pelos chamados worst-case
scenarios, aquilo
que um filósofo no seu tempo denominou “princípio
do pior”,
supostamente legitimados pelo princípio da precaução (se há a mais ínfima
possibilidade de risco, devemos concentrar todas as nossas energias em evitá-lo). Tal paixão deu lugar, desde há várias décadas, às mais
absurdas previsões, que tudo fizeram para ridicularizar legítimas preocupações. E o problema avoluma-se extraordinariamente com o
fanatismo que essa paixão suscita e que o natural conformismo dos media
amplifica com a sua consabida ligeireza. A retórica da “salvação” não engana.
Se juntarmos esse particular fanatismo (e a sua ignorante amplificação
mediática) a todos os outros fanatismos que por aí pululam, o panorama é
deprimente para lá do dizível. E
infiltra os espíritos, quer o queiram ou não. Não convém nunca subvalorizar
a influência das ideias apaixonadas sobre a vida mental dos humanos, sobretudo
quando estes gozam de um bem-estar que lhes permite não se concentrarem nos
seus problemas mais imediatos e viverem, por antecipação, instalados no futuro.
É uma velha e triste história, quase sempre com consequências danadas.
Talvez
por causa de tudo isto, acordei ontem para um sonho. Não acordei, notem, de um
sonho: acordei para um sonho. Acontece-me mais ou menos uma vez por ano, por
razões que ainda estou para saber. Particular conjunção astral? Luminosos raios
de inspiração divina? Algum queijo estragado? Um copo a mais? Não sei. Mas
também não importa. O que é bom, o que é óptimo, o que é maravilhoso, deve ser
aceite sem interrogação ou cepticismo. Apenas com agradecimento.
Acordei,
portanto. Portugal era governado por uma coligação vasta e ecuménica e no
Governo brilhava com inusitado fulgor o Ministério da Libertação Obrigatória
(MLO), que promovia e implantava a ENINDU (Estratégia Nacional para a Igualdade
e a Não-Discriminação Universais). Os efeitos da aplicação da ENINDU
sentiram-se imediatamente e sob todas as formas em todo o lado. Os costumes,
sob uma aturada vigilância das autoridades – o MLO era todo-poderoso –,
mudaram, e mudou igualmente a linguagem, que se passou a subordinar
integralmente aos princípios da ENINDU. Quase da noite para o dia, o mundo
tornou-se uma coisa completamente diferente.
Eu
tinha acabado de sair do meu espaço habitacional inclusivo. Dirigi-me, subindo
a rua Audériu (antiga rua Nossa Senhora de Fátima) a um templo cívico de
abastecimento alimentar. Ao entrar, reparei mais uma vez no letreiro fixado à
porta: “Atenção! Este estabelecimento contém ainda embalagens de plástico.
Recomenda-se às pessoas sensíveis que não frequentem os corredores indicados
com a tabuleta «Crime»”. Comprei o que precisava (por estes dias, precisa-se de
pouco – até porque há pouco) e saí de novo para a rua, tendo o cuidado de não
me afastar do passeio e de não pisar a zoovia. As zoovias foram uma grande
invenção do MLO, fundadas no princípio de um são convívio entre humanos e
animais. “As cidades são tanto deles como nossas”, lê-se em grandes cartazes
colocados um pouco por todo lado, com a fotografia de uma jovem apresentadora
de televisão a lamber o focinho de um leão. Descendo a rua cruzei-me com um
crocodilo que, com o seu sorriso franco, me abanou a cauda, e continuei até à
Praça Greta Thunberg (antiga Praça Mouzinho de Albuquerque, vulgo Rotunda da
Boavista). Maravilhou-me (maravilha-me sempre) a gigantesca turbina eólica que
substituiu no seu centro o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular. Tapa um
bocadinho a visão do edifício de Rem Koolhaas, rebaptizado Complexo dos Sons
Outros/Casa da Alteridade, e do sempre imaculado imóvel do antigo Tabernáculo
Baptista, hoje Habitação da Fé dos Seres Sencientes, mas é sem dúvida imponente
e não contém qualquer referência ao passado, o que é obviamente fundamental.
Depois
deste momento de contemplação e de uma breve incursão à Papelaria Lu (está tudo
na mesma, como desde pelo menos 1970, até o nome, excepto que, na montra, Robin
DiAngelo ombreia com Allan Kardec) e à antiga Casa S. Miguel (agora Casa
ONU-Santo António) – o Talho da Boavista, ao lado, já não existe: transformou-se
num Museu do Ódio Biológico –, atravessei a rua Audériu, em direcção à rua
Blá-blá-blá. Parei num Espaço de Saúde, onde comprei uns medicamentos de
que preciso para contrariar uma excepcionalidade negativa de vitalidade de que
padeço e continuei em direcção ao grande edifício dos Roteiros do
Empoderamento, outrora o primeiro centro comercial do Porto. O MLO organiza
aí visitas guiadas pelos corredores vazios de lojas fechadas. Uma vez fui a
uma. A guia, apontando as vitrinas desfeitas, explicava que a salvação do
planeta exigia a morte do passado e que o efeito disso na alma humana era
perfeito: ela própria não se lembrava de nada. “Foi assim, pelo
esquecimento, que eu me empoderei”, concluiu, feliz. A ideia, de resto,
encontra-se muito mais desenvolvida nos panfletos, de leitura obrigatória, do
MLO sobre a ENINDU.
Mas, desta
vez, não entrei. Limitei-me a apanhar um VART (Veículo Ambiental Resiliente de
Transporte) em direcção à Unidade de Erradicação da Memória dos Homens
Brancos Mortos, onde forneço o que agora se chama Episódios de Não-Transmissão
Cognitiva. O livro de base dos meus Episódios é, como o de todos os outros
colegas, a “Fragilidade Branca” de Robin DiAngelo, onde se expõe, com toda a
clareza desejável, a tese do “racismo sistémico”. Depois, saí para o Momento
Teatral. Qualquer que seja o curso, é, por decisão do MLO, imperativa a
frequência dos Momentos Teatrais, num recinto próximo à Unidade. Os Momentos
Teatrais constam de um diálogo entre dois actores. O diálogo é breve: “- És
racista! – Não sou racista! – Dizeres que não és racista é a prova de que és
racista! – Mas não sou! – És, mas não sabes! É o segredo do racismo sistémico!”.
O diálogo – é só isto, mas repetido vezes sem conta – dura sempre uma hora, mas
a saída dos Momentos Teatrais às vezes demora muito mais, porque só se pode
sair depois de se admitir junto de um funcionário do MLO, estacionado à porta,
que se é racista, e há sempre jovens que continuam a dizer que não são. Eu já
sou velho e sou sempre o primeiro a dizer que sim.
E
digo-o ainda mais depressa quando tenho medo de chegar atrasado a um jantar
combinado com um ente comunicativo positivo, como agora se diz. A dona
do espaço de alimentação sustentável anda macambúzia e quase chora quando
nos traz a comida. Proibiram-na de cozinhar todos os pratos que dantes fazia e
está inconsolável. Os pratos agora não têm nome e são todos iguais. As
conversas com o ente comunicativo positivo também se tornaram quase todas
iguais. Falamos das grandes vantagens das zoovias, cada vez mais largas.
“Dantes eram feitas para esquilos!”, diz ele. “Precisamos de zoovias para
elefantes!”, respondo eu.
Depois
de nos despedirmos, com um convencional “Dia climático justo!”, chamei
um VART para voltar à rua Audériu. Na Avenida Roubaram-me a Infância,
não longe da Praça Greta Thunberg, no cruzamento com a rua Roubaram-me o
Futuro, aconteceu, no entanto, algo que se tem tornado vulgar, embora a
comunicação social (excepção feita à CMTV, verdade seja dita) tenda a
ocultá-lo. Saído da zoovia, um tigre siberiano atravessou-se em frente ao
carro, provocando uma travagem brusca. O condutor, lívido, seguiu as instruções
do MLO, minuciosamente detalhadas nos documentos da ENINDU. Saiu do carro e
dirigiu-se ao tigre. Eu fugi a correr para o passeio e consegui escapar, no
meio de rugidos e gritos, só com uns pingos de sangue do motorista na roupa. Continuei
a correr pela Avenida Roubaram-me a Infância, atravessei a Praça Greta Thunberg
o mais depressa que pude e consegui chegar são e salvo ao meu espaço
habitacional inclusivo.
Os
animais têm dias, pensei – é como nós, não é? Reli, na cama, mais umas páginas
de Robin DiAngelo, a reflectir: o que é que se pode acrescentar a isto? Já a
tresler, com o sono, as verdades da “Fragilidade Branca”, ainda arranjei espaço
para um “momento de esperança”, como manda o MLO: “Isto está melhor, muito
melhor, e amanhã melhor estará. As zoovias serão mais largas, os Roteiros do
Empoderamento mais vistos, o esquecimento mais perfeito…”.
Foi
um sonho? Foi uma premonição? Hoje de manhã, embora ainda estivesse escuro, lá
consegui ver, na Rotunda da Boavista, o Monumento aos Heróis da Guerra
Peninsular. Nunca gostei tanto de o ter ali. Bebi dois cafés e voltei a
espreitar: confirmado! O universo, subitamente, desbravou-se. Ainda posso ir ao
Pingo Doce e comprar fruta à Dona Rosália, imprimir e fotocopiar papéis na loja
do Sr. Mário no Brasília, almoçar ou jantar com amigos na Cozinha da Amélia e
só falar de Robin DiAngelo se me apetecer. Uf! O mundo não é tão mau assim.
Mas
o que me alegrou mais foi saber que, mesmo que o sonho fosse verdadeiro, tenho
a certeza que, aqui na minha aldeia, a Dona Rosália, da Casa S. Miguel,
continuaria a fazer tudo como fez até agora; que o Sr. Mário, idem aspas,
limitando-se a mudar o nome da loja para “Copy & Company – Roteiros do
Empoderamento”; e que a Amélia continuaria a servir o óptimo rabo de boi – às
claras. A coragem do bom-senso é cada vez mais necessária
contra as paixões apocalípticas. O
meu único problema é comigo e com os meus colegas por esse país (e por esse
mundo) fora: francamente, não sei. É que os livros, às vezes, como alguém há
muito lembrou, dão fortes pancadas na cabeça. E é fácil, se a pancada for mesmo
forte, encontrar nas mais inverosímeis doutrinas todos os sinais de uma verdade
absoluta e inquestionável. Duvidam? Olhem para o passado. Ou, até é mais
simples – olhem à vossa volta.
PS.
Espero que a Greta em Glasgow, ou o Paddy da Web Summit em Lisboa, não anunciem
a sua desfiliação do CDS. Isso sim, isso é que seria grave, excessivamente
grave, como dizia o outro. E aí é que eu deixava definitivamente de ver
televisão.
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS CLIMA AMBIENTE CIÊNCIA FUTURO TECNOLOGIA
Nenhum comentário:
Postar um comentário