Do tempo dos reis, com relatos sobre um tal
vindo de sítios onde se prezava a arte, e que nos deixou o “Palácio da
Pena”. Como complemento da magnífica crónica de Markus Almeida, sobre duas peças antigas do espólio
artístico desse D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha, e sobre a
sua biografia, relembro o retrato que do Palácio nos deixou Eça de Queirós, sob a perspectiva dos três amigos - Carlos, Cruges e Alencar – parados junto ao Palácio
de Seteais, postados em terreno sobranceiro aos campos da vila, por trás do
arco do terreiro que se lhe segue, numa vista que culmina no tal Palácio da Pena, em visão etérea segundo a pena de Eça, de não menor maravilha, que serve de complemento a todos esses dados oferecidos
pelo belo artigo de Markus
Almeida. Foi detrás do mesmo Arco que um dia li aos meus
alunos do 11º, em visita de estudo, o texto magnífico, acompanhando o
descritivo com a visão do quadro, para mim, também, e julgo que para alguns
alunos, uma história de encantar:
«-
Agora, Cruges, filho, repara tu naquela tela sublime. O maestro embasbacou. No
vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da
tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a
ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o
terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o
renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da
grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada
linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando
vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso
da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e
solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no
ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro... Cruges achou
aquele quadro digno de Gustavo Doré.» (OS MAIAS, Cap. VIII)»
“Propriedade minha”: a história de duas
peças da colecção de D. Fernando II guardadas na Alemanha há 129 anos
Uma bacia e um gomil foram compradas
pelo rei em 1850 e depois levadas para a Alemanha pela Infanta D.ª Antónia, em
1892. Vendidas agora em leilão, qual será o destino das peças?
OBSERVADOR, 23 nov
2021
Que D. Fernando II (1816-1885) tenha
ficado conhecido como o “Rei-Artista” é
matéria que se aprende na escola, que vem nos livros, que se encontra na
Wikipedia e é praticamente do domínio público. O que não é tão popular é que o
príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha, que nasceu em Viena e se chamava Ferdinand
August Franz Anton von Sachsen-Coburg und Gotha até se tornar rei de Portugal,
foi também um ávido coleccionador de arte, cerâmica, ourivesaria, marfins e
esmaltes.
“É
uma figura multifacetada, com muitos interesses. D. Fernando desenhava
continuamente. Tinha sempre consigo álbuns e cadernos de desenho. Era uma actividade
tão natural para ele como respirar. Daí o epíteto cunhado em 1842 pelo
escritor António Feliciano de Castilho”, diz Hugo Xavier, conservador
do Palácio
Nacional da Pena, em Sintra.
“Depois,
o rei acaba por estender essa atividade a outros domínios, como pintar sobre cerâmica — conhecem-se vários retratos por ele pintados.
Ele experimenta também com escultura e sabe-se que se interessou por ourivesaria: embora
não tenham chegado até nós peças da sua autoria, sabemos que existiram e que o
rei gostava de fazer isso para poder apreciar melhor a dificuldade de execução
e as capacidades dos artífices em relação à sua colecção de objectos antigos”,
prossegue Xavier, cuja investigação se tem debruçado sobre o tema de
D. Fernando enquanto colecionador e que, em 2022, vai publicar um ebook sobre
as suas colecções de ourivesaria, esmalte e marfins a partir de um inventário
manuscrito pelo rei.
Nesse
documento é possível ler o rei em discurso directo a descrever — e, por vezes,
também a opinar — sobre as mais de 220 peças da sua colecção pessoal. “Esse
inventário faz o levantamento de tudo o que o rei tinha na Pena, nas
Necessidades e nos chalés, e tem quase 20 volumes”, diz.
A
descrição de cada item no inventário termina invariavelmente com um pequeno
apontamento, na letra alongada do rei, de onde se lê: “Propr. minha”.
Isto servia, explica o conservador, para distinguir o que era propriedade do
rei do que era da coroa. “O que é da coroa pertence ao Estado, é propriedade
da instituição real e deve ser transmitida ao próximo monarca. São bens que não
são transmissíveis aos filhos mas passam de sucessor em sucessor, ao contrário
da propriedade do rei.”
“Quando Portugal estava a par das vanguardas
artísticas na Europa”
Da
propriedade do rei eram as duas peças de prata que há dias apareceram em
público pela primeira vez depois de 129 anos em paradeiro incerto: uma
bacia e um gomil (jarro de
boca estreita) que pertenciam à colecção pessoal de D. Fernando II e que
constam no inventário manuscrito que Hugo Xavier tem vindo a transcrever e a
estudar.
“A
salva [refere-se
à bacia de prata] é especialmente interessante pelo tamanho, mas também porque
é puramente Renascentista, quando Portugal provavelmente na única vez na sua
História, estava a par das vanguardas artísticas na Europa, tendo o refinamento
de trabalho e desenho que se via em Itália e no Norte da Europa, libertando-se
do desenho tardo-medieval que muitas salvas manuelinas têm”, considera João
Magalhães, especialista
em mobiliário europeu na Sotheby’s London, para quem é raro surgirem peças de
proveniência real em leilões — “sejam portuguesas ou não.”
A
“Grande bacia em prata dourada, sem marcação, provavelmente portuguesa,
do século XVI”, como foi
apresentada pela Sotheby’s no leilão que teve lugar em Paris, a 17 de novembro,
pesa 2.327 gramas e tem um diâmetro de 45 centímetros. Foi a leilão com um
valor estimado entre 120 e 140 mil euros e acabou vendida por 144.900 euros.
Já
a estimativa para o “Gomil de origem
espanhola em prata dourada,
circa 1600”, com 36 centímetros e 1.337 gramas era para um valor situado entre 20
e 30 mil euros, mas, após um despique de licitações, acabou mesmo por
ser vendida por 47.880 euros (em qualquer dos casos, o preço final inclui a
comissão de 26% que o comprador paga à Sotheby’s).
“O
leilão correu dentro das expectativas”, comenta João Magalhães. “O gomil
recebeu um bom interesse internacional e vendeu-se bem, ajudado pela
proveniência distinta. Eu estava esperançado num resultado melhor para a salva,
mas mesmo assim é um bom resultado para esta peça importante.”
De onde vieram, para onde foram
Entre as informações que preenchem cada
entrada no inventário está a da proveniência da peça. Se foi
comprada, quanto custou e se o rei achou o preço caro ou barato. Ou, no caso de
lhe ter sido oferecida, quem a ofereceu. É assim que se sabe — pela letra de D.
Fernando II — que as peças foram
adquiridas em 1850 e que o seu valor artístico e histórico não passou
despercebido ao rei, que teceu considerações elogiosas sobre a entrada número
17 do seu inventário:
[N.º 17] Grande prato de prata dourada e em relevo. No cento um medalhão com uma
paisagem e em redor d’esta a inscripção latina: Summa rerum fastigia.
Excellente e bello lavor portuguez do tempo emanuelino. Foi da casa de Borba.
Propr. minha.”
O inventário de D. Fernando II não é a única maneira que os
historiadores têm de conhecer a origem desta bacia. Segundo Hugo Xavier, no Arquivo Histórico da Casa de Bragança, em Vila
Viçosa, encontra-se a factura destas peças adquiridas em 1850 aos Marqueses de
Borba, uma casa da aristocracia nacional, em conjunto com outras peças de
prata.
Ao todo são 13 objectos que custaram
“para cima de um conto de reis, o que na altura era uma quantia significativa”,
e que foram compradas por intermédio de Raimundo José Pinto, ourives da Casa
Real e agente artístico de D. Fernando II. A compra, no valor de “1.367$625
réis”, foi paga em três prestações por Joaquim Rodrigues Chaves, o
secretário privado de D. Fernando. Na fatura, que hoje pertence ao acervo do
Arquivo Histórico da Casa de Bragança, consta o descritivo do que foi comprado:
3 Pratos e 3
Jarros de prata dourada antigos, do genero renaissance
5 Salvas idem genero Gothico
1 Hambula idem genero renaissance
1 caldeirinha idem idem
Segundo a Sotheby’s, em dezembro de
1850, numa carta dirigida ao seu irmão Augusto, em alemão, D. Fernando II
escreveu o seguinte:
Há dias adquiri algo
esplêndido e igualmente raro. Três lindos gomis, bem como quatro pratos e uma
bacia, magnificamente esculpida em prata dourada. Dois destes gomis são do
melhor que já vi dentro deste estilo e um é digno de ser comparado a um criado
por Cellini”
As duas peças que foram a leilão, o
gomil e a bacia — que é um prato de água às mãos — foram concebidas no século XVI
para serem usadas. Mas quando chegaram às mãos de D. Fernando, no século XIX, o
tempo já lhes dera uma função decorativa. “Eram
apreciadas como objectos históricos e museológicos e encontravam-se no gabinete de trabalho do rei, no
Palácio das Necessidades, com um carácter mais decorativo do que funcional”, contextualiza Hugo Xavier.
O príncipe alemão que foi rei de Portugal
Quando
D. Maria II ficou viúva do seu primeiro casamento com o príncipe Augusto de
Beauharnais, em 1835, um príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha (casa real e
dinastia alemã) nascido em Viena foi o escolhido para casar com a rainha
portuguesa. E assim, a 1 de janeiro de 1836, Ferdinand August Franz Anton von Sachsen-Coburg und Gotha casa-se e
é nomeado D. Fernando. Mas como em Portugal o marido da rainha reinante
só passa a rei depois do nascimento do primeiro herdeiro, Ferdinand foi primeiro príncipe e só em 1837, com o nascimento do
futuro D. Pedro V, é que mudou de estatuto e de título.
Embora
rei no papel, só assumiu as funções de Chefe de Estado durante dois anos:
o tempo que passou entre a morte da regente soberana e
sua mulher D. Maria II, em 1853, e a chegada à maioridade do primogénito de
ambos, D. Pedro V, em 1855.
Em
1869, D. Fernando II casa-se com Elise Hensler, uma actriz de teatro, cantora de ópera e mãe solteira
de origem suíço-alemã que se ficaria com o título de Condessa d’Edla — sem
surpresa, o casamento não foi bem visto pelos príncipes ou pela sociedade
portuguesa. Tal como
não foi bem visto que o rei lhe deixasse em testamento o Palácio da Pena, que
nessa altura já era considerado um monumento nacional. A Condessa d’ Edla (1836-1929) acabaria por vender o Palácio a D.
Luís, mantendo o usufruto do Chalet que construira.
“D. Fernando II morre em 1885 mas só
em 1892 é que os primeiros objectos são partilhados, tal era o volume de bens
que o rei possuía, quer no Palácio das Necessidades quer no Palácio da Pena, em
Sintra, que era a sua residência de verão”, diz Hugo Xavier. É então feito um
inventário orfanológico, “com 18 volumes grossos como bíblias, em que entra
tudo o que havia nas residências do rei porque havia vários herdeiros, bem como
a segunda mulher, com quem casou depois da morte de D. Maria II, a Condessa de
Edla”, lembra.
▲ Foi
Antónia de Bragança, infanta de Portugal e princesa de Hohenzollern-Sigmaringen,
na Alemanha, a herdar o prato de água às mãos e outras peças da coleção,
garante o conservador do Palácio da Pena.
Esta coleção de 13 pratas do aparato
adquiridas em 1850 aos Marqueses de Borba foi desmembrada após a morte de D.
Fernando II, na sequência das partilhas efectuadas pelos seus herdeiros.
“Um lote significativo ficou na posse da família real portuguesa e, anos após a
implantação da república, passou a integrar as colecções do Palácio Nacional da
Ajuda.”
Foram três os filhos que lhe
sobreviveram, dos onze que teve com D. Maria II: D. Pedro
V, D. Luís I e Antónia de Bragança. Foi esta,
infanta de Portugal e princesa de Hohenzollern-Sigmaringen, na Alemanha, a
herdar o prato de água às mãos e outras peças da colecção, garante o conservador do Palácio da Pena. “As peças
saíram de Portugal em 1892, quando o processo de partilhas da herança de D.
Fernando foi concluído, e foram levadas para a Alemanha pela filha mais velha,
a Infanta Antónia de Portugal, que tinha casado com um príncipe alemão.”
As peças ficaram na posse dos
descendentes da infanta durante 129 anos — não se sabe onde, mas julga-se que
na Alemanha — até voltarem a aparecer em público no leilão da Sotheby’s que
teve lugar em Paris no dia 17 de novembro. O
gomil foi vendido por 47.888 euros e a bacia por 144.900 euros. A Sotheby’s declinou responder ao Observador se as
peças continuam fora de Portugal ou se foram adquiridas por coleccionadores
portugueses.
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