quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Histórias de encantar


Do tempo dos reis, com relatos sobre um tal vindo de sítios onde se prezava a arte, e que nos deixou o Palácio da Pena”. Como complemento da magnífica crónica de Markus Almeida, sobre duas peças antigas do espólio artístico desse D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha, e sobre a sua biografia, relembro o retrato que do Palácio nos deixou Eça de Queirós, sob a perspectiva dos três amigos - Carlos, Cruges e Alencar – parados junto ao Palácio de Seteais, postados em terreno sobranceiro aos campos da vila, por trás do arco do terreiro que se lhe segue, numa vista que culmina no tal Palácio da Pena, em visão etérea segundo a pena de Eça, de não menor maravilha, que serve de complemento a todos esses dados oferecidos pelo belo artigo de Markus Almeida. Foi detrás do mesmo Arco que um dia li aos meus alunos do 11º, em visita de estudo, o texto magnífico, acompanhando o descritivo com a visão do quadro, para mim, também, e julgo que para alguns alunos, uma história de encantar:

 

«- Agora, Cruges, filho, repara tu naquela tela sublime. O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro... Cruges achou aquele quadro digno de Gustavo Doré(OS MAIAS, Cap. VIII)»

“Propriedade minha”: a história de duas peças da colecção de D. Fernando II guardadas na Alemanha há 129 anos

Uma bacia e um gomil foram compradas pelo rei em 1850 e depois levadas para a Alemanha pela Infanta D.ª Antónia, em 1892. Vendidas agora em leilão, qual será o destino das peças?

MARKUS ALMEIDA: Texto

OBSERVADOR, 23 nov 2021

Que D. Fernando II (1816-1885) tenha ficado conhecido como o “Rei-Artista” é matéria que se aprende na escola, que vem nos livros, que se encontra na Wikipedia e é praticamente do domínio público. O que não é tão popular é que o príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha, que nasceu em Viena e se chamava Ferdinand August Franz Anton von Sachsen-Coburg und Gotha até se tornar rei de Portugal, foi também um ávido coleccionador de arte, cerâmica, ourivesaria, marfins e esmaltes.

“É uma figura multifacetada, com muitos interesses. D. Fernando desenhava continuamente. Tinha sempre consigo álbuns e cadernos de desenho. Era uma actividade tão natural para ele como respirar. Daí o epíteto cunhado em 1842 pelo escritor António Feliciano de Castilho, diz Hugo Xavier, conservador do Palácio Nacional da Pena, em Sintra.

“Depois, o rei acaba por estender essa atividade a outros domínios, como pintar sobre cerâmicaconhecem-se vários retratos por ele pintados. Ele experimenta também com escultura e sabe-se que se interessou por ourivesaria: embora não tenham chegado até nós peças da sua autoria, sabemos que existiram e que o rei gostava de fazer isso para poder apreciar melhor a dificuldade de execução e as capacidades dos artífices em relação à sua colecção de objectos antigos”, prossegue Xavier, cuja investigação se tem debruçado sobre o tema de D. Fernando enquanto colecionador e que, em 2022, vai publicar um ebook sobre as suas colecções de ourivesaria, esmalte e marfins a partir de um inventário manuscrito pelo rei.

Nesse documento é possível ler o rei em discurso directo a descrever — e, por vezes, também a opinar — sobre as mais de 220 peças da sua colecção pessoal. “Esse inventário faz o levantamento de tudo o que o rei tinha na Pena, nas Necessidades e nos chalés, e tem quase 20 volumes”, diz.

A descrição de cada item no inventário termina invariavelmente com um pequeno apontamento, na letra alongada do rei, de onde se lê: “Propr. minha”. Isto servia, explica o conservador, para distinguir o que era propriedade do rei do que era da coroa. “O que é da coroa pertence ao Estado, é propriedade da instituição real e deve ser transmitida ao próximo monarca. São bens que não são transmissíveis aos filhos mas passam de sucessor em sucessor, ao contrário da propriedade do rei.”

“Quando Portugal estava a par das vanguardas artísticas na Europa”

Da propriedade do rei eram as duas peças de prata que há dias apareceram em público pela primeira vez depois de 129 anos em paradeiro incerto: uma bacia e um gomil (jarro de boca estreita) que pertenciam à colecção pessoal de D. Fernando II e que constam no inventário manuscrito que Hugo Xavier tem vindo a transcrever e a estudar.

A salva [refere-se à bacia de prata] é especialmente interessante pelo tamanho, mas também porque é puramente Renascentista, quando Portugal provavelmente na única vez na sua História, estava a par das vanguardas artísticas na Europa, tendo o refinamento de trabalho e desenho que se via em Itália e no Norte da Europa, libertando-se do desenho tardo-medieval que muitas salvas manuelinas têm”, considera João Magalhães, especialista em mobiliário europeu na Sotheby’s London, para quem é raro surgirem peças de proveniência real em leilões — “sejam portuguesas ou não.”

A “Grande bacia em prata dourada, sem marcação, provavelmente portuguesa, do século XVI”, como foi apresentada pela Sotheby’s no leilão que teve lugar em Paris, a 17 de novembro, pesa 2.327 gramas e tem um diâmetro de 45 centímetros. Foi a leilão com um valor estimado entre 120 e 140 mil euros e acabou vendida por 144.900 euros.

Já a estimativa para o “Gomil de origem espanhola em prata dourada, circa 1600”, com 36 centímetros e 1.337 gramas era para um valor situado entre 20 e 30 mil euros, mas, após um despique de licitações, acabou mesmo por ser vendida por 47.880 euros (em qualquer dos casos, o preço final inclui a comissão de 26% que o comprador paga à Sotheby’s).

“O leilão correu dentro das expectativas”, comenta João Magalhães. “O gomil recebeu um bom interesse internacional e vendeu-se bem, ajudado pela proveniência distinta. Eu estava esperançado num resultado melhor para a salva, mas mesmo assim é um bom resultado para esta peça importante.”

De onde vieram, para onde foram

Entre as informações que preenchem cada entrada no inventário está a da proveniência da peça. Se foi comprada, quanto custou e se o rei achou o preço caro ou barato. Ou, no caso de lhe ter sido oferecida, quem a ofereceu. É assim que se sabe — pela letra de D. Fernando II — que as peças foram adquiridas em 1850 e que o seu valor artístico e histórico não passou despercebido ao rei, que teceu considerações elogiosas sobre a entrada número 17 do seu inventário:

[N.º 17] Grande prato de prata dourada e em relevo. No cento um medalhão com uma paisagem e em redor d’esta a inscripção latina: Summa rerum fastigia. Excellente e bello lavor portuguez do tempo emanuelino. Foi da casa de Borba. Propr. minha.”

O inventário de D. Fernando II não é a única maneira que os historiadores têm de conhecer a origem desta bacia. Segundo Hugo Xavier, no Arquivo Histórico da Casa de Bragança, em Vila Viçosa, encontra-se a factura destas peças adquiridas em 1850 aos Marqueses de Borba, uma casa da aristocracia nacional, em conjunto com outras peças de prata.

Ao todo são 13 objectos que custaram “para cima de um conto de reis, o que na altura era uma quantia significativa”, e que foram compradas por intermédio de Raimundo José Pinto, ourives da Casa Real e agente artístico de D. Fernando II. A compra, no valor de “1.367$625 réis”, foi paga em três prestações por Joaquim Rodrigues Chaves, o secretário privado de D. Fernando. Na fatura, que hoje pertence ao acervo do Arquivo Histórico da Casa de Bragança, consta o descritivo do que foi comprado:

3 Pratos e 3 Jarros de prata dourada antigos, do genero renaissance
5 Salvas idem genero Gothico
1 Hambula idem genero renaissance 
1 caldeirinha idem idem

Segundo a Sotheby’s, em dezembro de 1850, numa carta dirigida ao seu irmão Augusto, em alemão, D. Fernando II escreveu o seguinte:

Há dias adquiri algo esplêndido e igualmente raro. Três lindos gomis, bem como quatro pratos e uma bacia, magnificamente esculpida em prata dourada. Dois destes gomis são do melhor que já vi dentro deste estilo e um é digno de ser comparado a um criado por Cellini”

As duas peças que foram a leilão, o gomil e a bacia — que é um prato de água às mãos — foram concebidas no século XVI para serem usadas. Mas quando chegaram às mãos de D. Fernando, no século XIX, o tempo já lhes dera uma função decorativa. “Eram apreciadas como objectos históricos e museológicos e encontravam-se no gabinete de trabalho do rei, no Palácio das Necessidades, com um carácter mais decorativo do que funcional”, contextualiza Hugo Xavier.

O príncipe alemão que foi rei de Portugal

Quando D. Maria II ficou viúva do seu primeiro casamento com o príncipe Augusto de Beauharnais, em 1835, um príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha (casa real e dinastia alemã) nascido em Viena foi o escolhido para casar com a rainha portuguesa. E assim, a 1 de janeiro de 1836, Ferdinand August Franz Anton von Sachsen-Coburg und Gotha casa-se e é nomeado D. Fernando. Mas como em Portugal o marido da rainha reinante só passa a rei depois do nascimento do primeiro herdeiro, Ferdinand foi primeiro príncipe e só em 1837, com o nascimento do futuro D. Pedro V, é que mudou de estatuto e de título.

Embora rei no papel, só assumiu as funções de Chefe de Estado durante dois anos: o tempo que passou entre a morte da regente soberana e sua mulher D. Maria II, em 1853, e a chegada à maioridade do primogénito de ambos, D. Pedro V, em 1855.

Em 1869, D. Fernando II casa-se com Elise Hensler, uma actriz de teatro, cantora de ópera e mãe solteira de origem suíço-alemã que se ficaria com o título de Condessa d’Edla — sem surpresa, o casamento não foi bem visto pelos príncipes ou pela sociedade portuguesa. Tal como não foi bem visto que o rei lhe deixasse em testamento o Palácio da Pena, que nessa altura já era considerado um monumento nacional. A Condessa d’ Edla (1836-1929) acabaria por vender o Palácio a D. Luís, mantendo o usufruto do Chalet que construira.

“D. Fernando II morre em 1885 mas só em 1892 é que os primeiros objectos são partilhados, tal era o volume de bens que o rei possuía, quer no Palácio das Necessidades quer no Palácio da Pena, em Sintra, que era a sua residência de verão”, diz Hugo Xavier. É então feito um inventário orfanológico, “com 18 volumes grossos como bíblias, em que entra tudo o que havia nas residências do rei porque havia vários herdeiros, bem como a segunda mulher, com quem casou depois da morte de D. Maria II, a Condessa de Edla”, lembra.

 Foi Antónia de Bragança, infanta de Portugal e princesa de Hohenzollern-Sigmaringen, na Alemanha, a herdar o prato de água às mãos e outras peças da coleção, garante o conservador do Palácio da Pena.

Esta coleção de 13 pratas do aparato adquiridas em 1850 aos Marqueses de Borba foi desmembrada após a morte de D. Fernando II,  na sequência das partilhas efectuadas pelos seus herdeiros. “Um lote significativo ficou na posse da família real portuguesa e, anos após a implantação da república, passou a integrar as colecções do Palácio Nacional da Ajuda.”

Foram três os filhos que lhe sobreviveram, dos onze que teve com D. Maria II: D. Pedro V,  D. Luís I e Antónia de Bragança. Foi esta, infanta de Portugal e princesa de Hohenzollern-Sigmaringen, na Alemanha, a herdar o prato de água às mãos e outras peças da colecção, garante o conservador do Palácio da Pena. “As peças saíram de Portugal em 1892, quando o processo de partilhas da herança de D. Fernando foi concluído, e foram levadas para a Alemanha pela filha mais velha, a Infanta Antónia de Portugal, que tinha casado com um príncipe alemão.”

As peças ficaram na posse dos descendentes da infanta durante 129 anos — não se sabe onde, mas julga-se que na Alemanha — até voltarem a aparecer em público no leilão da Sotheby’s que teve lugar em Paris no dia 17 de novembro. O gomil foi vendido por 47.888 euros e a bacia por 144.900 euros. A Sotheby’s declinou responder ao Observador se as peças continuam fora de Portugal ou se foram adquiridas por coleccionadores portugueses.

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