Digo, sem comentadores. Foi o cômputo de leitores - condescendentes, certamente, com a tal lei despenalizadora da eutanásia, ou puramente indiferentes ao assunto - que mereceu o fabuloso artigo do P Gonçalo Portocarrero de Almada, com o seu astucioso truque de descrever o retrato de um homem valente, merecedor de Panteão - desde que se tornou personalidade benquista lá fora - devido ao seu pundonor de sacrificar a sua vida por amor de inúmeras vidas alheias. Um bonito exemplo português de um protector de vidas, para obstar a isso, que para muitos é crime, da possibilidade de matar sem crime, que é, decididamente, o significado de eutanásia, para as nossas gentes de avançada espiritualidade. Zero comentadores, foi o cômputo que mereceu o corajoso e brilhante artigo de um indignado Padre, merecedor de devoção e admiração, pelo risco do seu ardiloso texto. Infelizmente, por cá pensa-se mais em bazucas para aquecer os bolsos e os ventres, e o despachar vidas a salvo de consequências negativas poderá também contribuir em alguns casos para tal aquecimento. Marcelo Rebelo de Sousa o determinará. Mas talvez não leia o texto do Padre Portocarrero. Digo, por falta de tempo.
Aristides e a eutanásia
A legalização da eutanásia, que era
uma prática recorrente no regime nazi, é uma ofensa à memória de Aristides de
Sousa Mendes.
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
OBSERVADOR, 06 nov 2021
Foi
com pompa e circunstância que Aristides
de Sousa Mendes recebeu
honras de Panteão Nacional. O ex-Cônsul de Portugal em Bordéus destacou-se pela
sua acção humanitária durante a Segunda Guerra Mundial, dando vistos a judeus
que, de outra forma, poderiam ter sido exterminados nos campos de concentração
nazis. Por este motivo, foi reconhecido, em 1966, pelo Estado de Israel, como
“Justo entre as Nações”.
É
certo que Sousa Mendes, ao facultar os vistos a quem não se encontrava nas
condições previstas para os receber, infringiu as ordens que tinha recebido.
Também é sabido que pagou cara essa desobediência: foi demitido da carreira
consular. Embora lhe tenha sido facultada uma pensão, a verdade é que era
manifestamente insuficiente para garantir a sua sobrevivência, bem como a dos
seus 14 filhos. Por isso, para além da humilhação da sua demissão dos quadros
da carreira consular do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que seu irmão
César viria a chefiar, Aristides de Sousa Mendes também padeceu, a nível económico,
as consequências do seu acto humanitário, vivendo, até à sua morte, uma
dolorosa indigência.
Do
caso Sousa Mendes, cuja complexidade histórica ultrapassa o âmbito desta
crónica, interessa apenas o dilema moral: o cônsul ou cumpria as
instruções que tinha e negava os vistos aos judeus perseguidos, ou lhes
concedia esses salvo-condutos, desobedecendo às indicações que lhe tinham sido
dadas. Por estar a cumprir ordens, era mínima a sua responsabilidade no
extermínio dos judeus que, por esse motivo, não pudessem ser salvos, mas a sua
desobediência era razão suficiente para a sua demissão compulsiva, que
aconteceu, ficando seriamente ameaçada a sua sobrevivência.
Sousa Mendes, como é óbvio, não ignorava a responsabilidade em que
incorria, mas não se escudou nas ordens recebidas, nem na legítima defesa, para
optar pela atitude mais cómoda. Nem sequer pôs a subsistência da sua família
à frente do direito à vida dos judeus, que só podia proteger com a concessão de
vistos não autorizados. Consta que, nesse contexto, terá dito: “Se há
que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens, do que a uma ordem de
Deus”.
Se
Aristides tivesse agido como um escrupuloso funcionário, não teria incorrido,
em termos estritamente jurídicos, em falta. Também do ponto de vista ético, se
cumprisse os regulamentos vigentes, não cometeria nenhum ilícito, desculpado
como estava pela obediência devida aos seus superiores, bem como pela obrigação
moral de zelar pelo bem próprio e da sua família. Portanto, se o cônsul em Bordéus se negasse a conceder
esses vistos, não teria sido nenhum criminoso, como o não foram, decerto,
muitos outros funcionários que, em igualdade de circunstâncias, se limitaram a
cumprir com as suas estatutárias obrigações. Mas, tendo desobedecido a essas ordens, prejudicando-se
gravemente, tanto a nível pessoal como familiar, em termos profissionais e
socioeconómicos, Aristides de Sousa Mendes foi heróico.
Infelizmente,
a reabilitação do ex-cônsul não aconteceu em sua vida. Readmitido,
postumamente, na carreira de que
foi compulsivamente exonerado,
Aristides passou a ser, não obstante outros aspectos menos exemplares da sua
vida, uma referência ética para todos os portugueses. O Estado,
depois de o honrar com a distinção do Panteão Nacional, não pode agora ignorar,
nem contradizer, o seu legado moral.
Esteve
bem a Assembleia da República quando homenageou a memória do cônsul português,
agora evocado em Santa Engrácia. Mas esta distinção só faz sentido na
medida em que o parlamento valorizar a vida humana. Por isso, a legalização da
eutanásia é uma ofensa à memória de Aristides de Sousa Mendes.
O Marechal
Rommel colaborou
na operação Valquíria, que
pretendia a eliminação de Hitler. O fracasso do atentado implicou a morte dos
conspiradores, mas como o mítico ‘leão do deserto’ era um herói nacional,
foi-lhe dada a possibilidade de se matar a si próprio. Caso contrário, seria
condenado à morte por um tribunal de guerra, e a sua viúva e filho ficariam
desamparados. O marechal, tendo em conta o bem dos seus, aceitou pôr termo à
vida – na realidade não se suicidou, porque a sua morte era já certa e
inevitável – e teve um funeral de Estado. Mas, quando um general ofereceu à
viúva o seu braço, a Senhora Rommel recusou, dizendo: Não é preciso levar tão
longe a hipocrisia!
Também
fez bem o Chefe de Estado quando remeteu, para o Tribunal Constitucional, a
primeira versão do diploma pró-eutanásia aprovado pela Assembleia da República. Certamente, a objecção principal era e é a da
inviolabilidade da vida humana, mas também os outros reparos, de carácter mais
formal do que substantivo, eram pertinentes e, por isso, obrigaram à revisão do diploma, que iludiu a questão
essencial. Em relação
ao novo texto, o
Professor Paulo Otero, catedrático da Faculdade de Direito, onde foi colega do
Professor Marcelo Rebelo de Sousa e do actual Presidente do Tribunal
Constitucional, considerou que foi pior a emenda do que o soneto. Foi da mesma
opinião a Dr.ª Teresa de Melo Ribeiro, em excelente artigo aqui publicado no passado
dia 3. Sendo esta nova versão ainda mais deficiente do que a primitiva, segundo
o parecer dos ditos juristas, será de toda a justiça que, mais uma vez, seja
chamado a pronunciar-se o Tribunal que tem por especial missão cumprir e fazer
cumprir a Constituição, a qual consagra a inviolabilidade da vida humana.
Quer o Tribunal Constitucional se
pronuncie sobre a inconstitucionalidade das normas constantes no novo diploma,
ou não, o Chefe de Estado tem sempre a última palavra. Como qualquer outro cidadão, tem o direito e o dever
de agir de acordo com a sua consciência. Foi, aliás, o que fizeram os
deputados, na medida em que os programas partidários sufragados nas últimas
eleições legislativas eram omissos sobre este particular e, nesta matéria, não
foi imposta a disciplina de voto. Como católico, o Professor Marcelo Rebelo
de Sousa é, obviamente, pró-vida – nenhum verdadeiro cristão pode ser a favor
da eutanásia – mas esta questão não é confessional, como se provou pelo voto
contra dos deputados do Partido Comunista Português. Claro que o Presidente
se poderia desculpar com a reiterada votação parlamentar, a eventual não
discordância do Tribunal Constitucional, a crise política em curso, a
recuperação económica pós-pandemia, etc. Mas estes argumentos, ou quaisquer
outros, porventura suficientes para um Pilatos, não bastam para legitimar uma
promulgação que seria, inevitavelmente, uma traição à letra e ao espírito da
Constituição e a todo o povo português, em especial à ampla maioria que,
conhecendo as convicções humanistas do Chefe de Estado, não só o elegeu como,
recentemente, o reelegeu.
Promulgar, à pressa, uma lei que
legaliza a eutanásia, que não foi referendada pelo povo português, nem
suficientemente debatida pela sociedade civil – da nova versão deste diploma
nem sequer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) foi
dado conhecimento! – e que foi, agora, aprovada à pressão, por um parlamento
moribundo, de duvidosa legitimidade política, seria, decerto, levar a
hipocrisia longe de mais.
Para a
cobardia há sempre razões sem razão: é nos momentos difíceis que se conhecem os
heróis. O Cônsul de Portugal em Bordéus soube sê-lo, como o Santo Condestável,
que hoje se celebra no nosso país, num contexto particularmente trágico e
sofreu as terríveis consequências desse seu acto. O futuro de Portugal depende
agora, mais do que nunca, de alguém que conhece bem a Constituição, assim como
a nossa História e cultura humanista cristã. Já que não faltam razões jurídicas
para vetar um diploma inconstitucional, tem os poderes necessários para
legitimamente o fazer e conta com a oração dos crentes e a confiança dos
portugueses, espera-se que o Presidente da República, para o bem da nação e da
sua alma, saiba honrar o legado moral de Aristides de Sousa Mendes. Chegou a
hora de salvar Portugal de uma reforma legislativa que pode conduzir, segundo a
CNEVC, à “liberalização incontrolável da ‘licença para matar’ e à barbárie”.
EUTANÁSIA SAÚDE ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA POLÍTICA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA PAÍS
PRESIDENTE DA REPÚBLICA BIOÉTICA CIÊNCIAS SOCIAIS CIÊNCIA
Nenhum comentário:
Postar um comentário