Nesta evocação cinéfila que Jaime Nogueira Pinto, em homenagem
a Gina Lollobrigida, nos dá a conhecer,
de tempos que também vivemos, mais passageiramente, é certo, mas que reavivaram
lembranças de figuras que conhecíamos na sua maior parte por referências
visuais ou escritas, a escassez de recursos familiares ou a dedicação aos
estudos não possibilitando tanta penetração pela esfera cinematográfica. Um prazer
de leitura, nos traz tal evocação, pontuada com o sorriso da mordacidade, sobre
os tempos de hoje, com outras espécies de Lollas e de receptores das
reivindicações das ditas.
Com “La Lollo” no Cinema Paraíso
Humphrey Bogart dizia que Gina
Lollobrigida fazia de Marilyn Monroe uma Shirley Temple. Não sei quando vi pela
primeira vez “la Lollo”, mas foi com certeza no Porto, numa tarde no cinema.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 28 jan. 2023, 12:396
Nascidos
no imediato pós-Segunda Guerra, miúdos nos anos 50, o cinema foi muito
importante para nós.
Tínhamos começado a descobrir e a
imaginar o mundo pela leitura, as palavras mágicas que serviam de guião às
histórias aos quadradinhos do Mosquito, do Mundo de Aventuras, doCavaleiro
Andante; e tínhamos passado para os Salgari, das Edições Romano Torres, onde um
italiano que nunca saíra de Itália nos levava do Polo Norte para a Malásia, do
Corsário Negro para o Sandokan. Também nas Edições Romano Torres, lemos a
colecção de Capa e Espada, histórias de heróis dos tempos onde tínhamos chegado
com Os Três Mosqueteiros (que eram quatro…) do Dumas; heróis como os
das “guerras religiosas” do Ponson du Terrail, dos Quatro Cavaleiros da
Noite à Vitória do Rei Henrique, ou o Lagardère, de Paul Féval, nos
princípios da Regência no século XVIII.
Isto
antes de entrarmos na literatura “a sério” e no seu encanto, que Scott
Fitzgerald descreveu como o encanto de descobrir que coisas que
imaginamos e sentimos são, afinal, universais e que não estamos sós na nossa
imaginação. A magia da leitura é também essa – a descoberta
de mundos atrás de mundos, como um jogo de imagens de lanterna mágica, em que
nos vamos desdobrando até ao infinito, sempre iguais, sempre diferentes.
Mas
ao lado dos livros, a chegada ao mundo da imaginação vinha do cinema, das
imagens que os “caçadores de imagens” juntavam para contar uma história – às
vezes até as histórias que já tínhamos lido nos livros.
Quando as luzes se apagavam
Nos
anos 50 e 60, quando comecei a “ir ao cinema”, o cinema
era um ritual, com a sala escura e solene
dos grandes cinemas do Porto e de Lisboa – o Batalha, o Rivoli, o S. João, o S.
Jorge, o Império, o Tivoli – ou aqueles mais modestos e populares, com sessões
duplas – o Carlos Alberto, o Terço, o Imperial, o Liz, o Bélgica. A sessão começava com as “Actualidades”,
francesas, espanholas ou portuguesas; seguiam-se os desenhos animados, o
intervalo e os trailers das fitas a estrear brevemente. Tudo regulado por uns
toques solenes que nos chamavam para a sala escura.
E
quando as luzes se apagavam, podíamos ser Ben-Hur – Charlton Heston – o remador
a naufragar e a salvar o Jack Hawkins, o cônsul romano Quintus Arrius, que
depois o vai proteger e adoptar; e podíamos, sempre com o mesmo Ben-Hur, ir na
quadriga bater o Messala – Stephen Boyd; ou ainda ter aquele sentimento de
maravilha de nos cruzarmos com o próprio Cristo no meio dos leprosos. Ficaram
famosas as epopeias judaico-cristãs de Hollywood, desde o Sinal da Cruz, de
Cecil B. DeMille, ao QuoVadis, à Túnica e ao Rei dos Reis. E depois Roma e o Império
Romano, do Spartacus, de Stanley Kubrick, à fabulosa Cleópatra, de Joseph Leo
Mankiewicz, que abria com o desfile triunfal de César em Roma, desfile que não
durava muito nem pouco, durava o tempo certo; e a cena inesquecível da Cleópatra
– Elisabeth Taylor – a sair de um tapete desenrolado aos pés de César – Rex
Harrison.
Mas
também podíamos viver com o coronel T. E. Lawrence, recriado por David Lean e
personificado por Peter O’Toole, ou cavalgar por outros desertos com os cowboys
dos Westerns – com Gary Cooper e Burt Lancaster, em Vera Cruz, ou com John
Wayne, em filmes do John Ford, como She Wore a Yellow Ribbon.
Como
entrámos na literatura “séria”, também entrámos no cinema “sério” – no Bergman
do Sétimo Selo e dos Morangos Silvestres, que pela primeira vez me pôs a mim,
cristão pré-conciliar, o problema de um mundo sem Deus; ou os italianos neo e
pós-realistas, os extraordinários Visconti e Fellini. Fellini já tinha sido um
caso sério com o 8&1/2, cuja filosofia, ao tempo, nos levava a intermináveis
discussões, cortadas por um ou outro comentário mais brejeiro sobre a Cláudia
Cardinale. Para não falar da Dolce Vita e das pouco sofisticadas divagações a
que Anita Ekberg nos levava. Outros alvos e motivos de discussão foram À Bout
de Souffle e Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard.
Tudo isto se passava nos tempos “negros e cinzentos” da “ditadura
salazarista”. Ainda hoje não sei a cor dos tempos do Portugal de Abril, mas
parece que não são nem negros nem cinzentos.
“A mais bela do mundo”
Não sei quando vi pela primeira vez
“a mulher mais bela do mundo”, a Gina Lollobrigida, la Lollo, como lhe
chamavam e chamam os italianos; mas foi com certeza no Porto e numa tarde no
cinema. Talvez
tenha sido naquela dança em Salomão e a Raínha de Sabá, diante do Yul Brynner
que, depois de Faraó nos Dez Mandamentos, fazia de Salomão naquele último filme
de King Vidor. Mas também pode ter sido no Corcunda de Notre Dame, o filme
de Jean Delannoy, onde ela era a Esmeralda, a
paixão de um feíssimo Quasimodo – Anthony Quinn. No Corcunda, Gina também dançava, como na Rainha de
Sabá, mas estava mais composta, embora sempre provocantíssima para os
adolescentes reprimidos do tal salazarismo negro e cinzento que éramos. Ou
talvez tivesse sido em Trapézio, de Carol Reed, em que la Lollo era a
mulher-objecto, que manipulava – ou objectificava – Tino Orsini (Tony Curtis) e
Mike Ribble (Burt Lancaster).
O
Burt Lancaster que aqui saltava no trapézio, pirateava no Pirata Vermelho e era
o Apache Massai, em Apache, de Robert Aldrich. Mas depois destas fitas todas
faria, pela mão de Visconti, o inesquecível príncipe de Salina do Leopardo. Em
46, Lancaster fora o protagonista da versão em cinema de The Killers, de Ernst
Hemingway, onde contracenava com Ava Gardner. Pensando bem, bomba
sexual que era, Gina não era a mais bela do mundo: antes estavam a Elisabeth
Taylor de Bruscamente no Verão passado e a Rita Hayworth de Gilda. E a Ava
Gardner, claro.
O caminho da estrela
Luigina
Lollobrigida, nascera a 4 de Julho de 1927, em Subiaco, uma pequena comuna do Lácio, 50
quilómetros a leste de Roma. Fora em Subiaco que, 1400 anos antes, S. Bento de
Núrcia vivera três anos como eremita, antes de se dedicar a fundar mosteiros
que ajudaram à cristianização da Europa, entre eles Monte Cassino, onde viria a
morrer.
Gina
não fundou mosteiros, e poderá até ter desviado alguns jovens de vocações
monásticas; e enquanto
S. Bento fora para Subiaco para escapar às tentações de Roma, ela foi para
Roma com os pais e as irmãs, em 1944, onde acabou a tentar romanos e outros
povos. Aí frequentou a Academia delle Belle Arti. Nesse tempo, em 1945,
aos 18 anos, foi violada por um futebolista do Lazio. Gina contaria esta
memória difícil numa entrevista nos últimos anos de vida, mas não revelaria o
nome do violador. Na altura, pagava os estudos, vendendo desenhos e posando
para fotonovelas na revista Sogno.
O
caminho para o espectáculo e para a fama começou quando concorreu a Miss Roma
e, depois, a Miss Itália, ficando em terceiro lugar, a seguir a duas outras futuras
actrizes – Lúcia Bosé e Giana Maria Canale. Nesse mesmo concurso, entraram
outras bellissime do cinema italiano, como Silvana Mangano e Eleonora Rossi
Drago.
Os
concursos abriram-lhe a porta para o cinema, onde se estreou em 1947, aos 20
anos, em Folie per l’Opera, de Mario Costa. Depois actuou em filmes de
Luigi Zampa e Carlo Lizzani. Em 1949, casou com Milko Scofic, um médico
jugoslavo que tratava os refugiados alojados na Cinecittá. Scofic
foi manager de Gina por alguns anos, tentou também o cinema como
actor e produtor, tiveram um filho e separaram-se em 1971.
Em
1950 a “bomba” cruzou o Atlântico: Howard
Hughes, o multimilionário aviador, produtor e
realizador de cinema, deu por ela. Hughes era obcecado com os micro-organismos
(morreu em autorreclusão para evitar contágios) mas a fobia não o impediu de
praticar “o desporto favorito dos homens”, reunindo uma impressionante colecção
de casos com actrizes famosas: Marlene Dietrich, Ida Lupino
Katherine Hepburn, Ava Gardner, Jane Russel, Ivone de Carlo, Elisabeth Taylor. Hughes teria visto uma fotografia de Gina em
bikini, numa revista, e convidou-a a ir para os Estados Unidos com um contrato
milionário, em que, por sete anos, ficava obrigada a trabalhar em exclusivo com
a RKO (Radio Keith-Orpheum Corporation), a produtora que Hughes comprara.
Gina ficou
dois meses e meio na América, em Los Angeles, no Town House Hotel, sob
permanente assédio de Hughes, assédio a que parece ter resistido.
Voltou a Itália e, a partir daí,
entrou nas fitas que a tornaram célebre:
uma das primeiras foi Altri Tempi –
Zibaldone, de Alessandro Blasetti. Blasetti tinha
sido um importante realizador do Vintennio fascista, com filmes políticos como 1860,
um épico nacionalista sobre a unidade italiana, e Vecchia Guardia, que celebrava
a Marcha Sobre Roma. Antes, fizera um filme mudo também de propaganda
fascista, Sole. Foi um dos primeiros realizadores a olhar para o cinema,
não só como obra de arte pessoal – do regista ou realizador –, mas também como
trabalho conjunto, um produto da indústria. Nos seus escritos sobre cinema na
revista Cinematógrafo, Blasetti comparava a crise e decadência da produção
italiana nos anos 20 com a florescente situação do cinema alemão. Sole
foi o último filme importante do mudo
em Itália; nele – e em
1860, em Vecchia Guardia e noutras
fitas suas da era fascista –, vêem-se as influências cruzadas do cinema épico
de D. W. Griffith com o novo realismo soviético de Eisenstein e Dziga
Vertov. De resto, Sole (1929) e Resurrectio (1931), de Blasetti, são
considerados pelos críticos antifascistas obras percursoras do neo-realismo.
Tal com Estaline e Hitler, Mussolini percebera bem a
importância do cinema para a opinião pública e investira a sério na renovação
do cinema italiano; em 1937, fizera a Cinecittá, uma cópia dos estúdios de
Hollywood, onde passaram a ser produzidas dezenas de fitas por ano.
Blasettti
não gostou da aproximação de Roma a Berlim e ao hitlerismo e os seus últimos
filmes no tempo da guerra, La corona di ferro (1940) e Quattro passi fra le nuvole, são apolíticos. Em 1946 filmava Un
giorno en nella vita, história de
um grupo de partigiani comunistas que se escondem num convento.
Ao
contrário de Blasetti ou de Rosselini, Gina não tinha passado fascista, por isso não precisava de provar o seu antifascismo;
nos anos 50 filmava as fitas que a tornaram mais conhecida em Itália e no
mundo, fitas em que a sua beleza, mais popular que sofisticada, a celebrizou
para sempre. Filmes como
Fanfan la Tulipe, de Christian
Jacques, com Gérard Philipe; Pão, Amor e Fantasia, de Luigi Comencini, com Vittorio de Sica, ou O
corcunda de Notre Dame, em que Anthony
Quinn, que era bem grande, fazia de Quasimodo (se fosse
hoje talvez anões verdadeiros invadissem o cinema).
Em
1954, dirigida por Luigi Zampa, faz o papel de Adriana, uma jovem bela e pobre,
que, nos anos trinta, em Roma, vive uma série de experiências com homens, que
acabam mal. O guião de La romana era uma adaptação de uma novela de Alberto
Moravia.
Em
1955 é La Donna piú bella del mondo, de Robert Z. Leonard, em que Gina
encarna a cantora de ópera Lina Cavalieri. Aqui contracena com Vittorio Gassman
e, em 1956, Gina ganha o David di Donatello, o óscar
italiano.
Há
também os tempos americanos – com o Trapézio, Salomão e a Rainha de
Sabá, Quando Setembro vier –
filmes em que foi dirigida por uma série de realizadores grandes de Hollywood e
contracenou com Rock Hudson, Frank Sinatra, Humphrey Bogart.
Era,
à sua maneira, segura e frontal. Sobre Rock Hudson, diria: “I knew right away
that Rock Hudson was gay, when he did not fell in love with me”.
Humphrey Bogart, que conhecia
bem as duas, ou as três, diria que Gina Lollobrigida fazia de Marilyn Monroe
uma Shirley Temple…
A
partir da década de 60, foi espaçando a sua participação no cinema e dedicou-se
à escultura e à fotografia. Chegou também a entrevistar Fidel de Castro
e a dirigir um documentário sobre ele, em 1972. Também terá tido o seu
momento de Sunset Boulevard, com romances com homens mais novos, o que deu lugar
a alguma maledicência jornalística.
A era das
beldades
Esta
era das beldades, das “bombas”, das “mulheres-maravilha”, respirando
sensualidade num mundo de interditos religiosos e institucionais, começou com o
Riso Amaro, de Giuseppe de Santis, com a Silvana Mangano como heroína. Silvana,
Gina e Sophia Loren, encarnavam os tais símbolos sexuais nos anos 50. Nos
anos 60, seria a vez de Claudia Cardinale, protagonista, em 1963, de O
Leopardo, de Visconti, e de 8½, de Federico Fellini; em que aparecia também uma
outra diva, a loira Sandra Milo. Outras estrelas, como Silva Koscina ou
Stefania Sandrelli, faziam os peplum no Mediterrâneo de Ulisses e Hércules.
Todas estas mulheres, estas
actrizes, fizeram parte da nossa juventude, dos arquétipos e dos sonhos da
nossa juventude, no tal país “negro e cinzento”, em que os interditos eram
alegremente violados, com acessos de arrependimento, perdão e garantia de
voltar a pecar.
Gina Lollobrigida esteve em muitas destas passagens
rituais, em que, a ouvir os mais crescidos e vividos, crescíamos ou achávamos
que ficávamos mais homens. Também por isso, e apesar de reconhecer que ela
talvez não seja uma grande actriz dramática, como a Magnani, a Marlene Dietrich, a Simone
Signoret, a Alida Valli ou a Katherine Hepburn,
não posso deixar de pensar nela, agora
que partiu, com
aquela ternura e nostalgia que temos pelas companhias e companheiras de outros
velhos e felizes tempos.
COMENTÁRIOS (de 6)
João Floriano: Uma crónica diferente do habitual, pelo menos à primeira vista, mas que
desperta muitas memórias e uma grande saudade em pessoas da minha faixa etária.
Fiz todo o percurso que JNP indica na sua crónica de hoje: os mesmos heróis de
banda desenhada, o mesmo começo no cinema. Primeiro os filmes simples da
Marisol e do Joselito. Chorei muito com o «Marcelino Pão e Vinho». Em termos de
leituras, eu adorava os Cinco da Enid Blyton. Mais tarde na adolescência
encantei-me com Jack London e Pearl Buck. Muitas opiniões podem desvalorizar a
literatura de banda desenhada e de cordel com que muitos da minha geração
começaram a gostar de ler e ir ao cinema. mas é uma fase bem necessária para
dar de seguida passos em direcção a coisas bem sérias como foi Ingmar Bergman
por volta dos meus 20 anos. Sobre a Lollo penso que a primeira vez que a vi foi
em Salomão e a Rainha de Sabá com esse careca fabuloso que foi Yul Brinner.
Lembro-me também de Trapézio com Tony Curtis. À distância parecem-me tempos tão
simples em contraste com a confusão que agora vivemos. Pelo menos não havia
redes sociais!
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