sábado, 21 de janeiro de 2023

Humor esclarecido


Que já não apaga a tristeza de um mundo bronco.

As grandes questões do nosso governo

Estou em condições de divulgar a Estrutura. A Estrutura sucedeu ao Mecanismo que por sua vez sucedeu ao Circuito. As 20 questões da Estrutura são o que realmente importa.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 21 jan. 2023, 00:226

Perante a recorrência de casos e casinhos, o dr. Costa não perdeu tempo e lançou a ideia do Circuito. De seguida, - o Circuito, método de escrutínio impiedoso dos potenciais novos governantes (mas não dos velhos), transformou se no Mecanismo, inquérito de 34 perguntas susceptíveis de assegurar a honradez que os candidatos declaram sob compromisso de honra. Depois o Mecanismo engordou para as 36 perguntas, todas pertinentes se descontarmos os erros de pontuação e a irrelevância. Hoje (rufem os tambores), estou em condições de divulgar (rufem, caramba) a Estrutura (expressões de pasmo e aplausos). A Estrutura mantém o aroma levemente kafkiano das designações prévias mas reduz o questionário às 20 questões que realmente importam. Ei-las.

1. Tens as quotas de militante do PS em dia?

a) Sim; b) Claro; c) Evidentemente; d) Então eu vinha aqui fazer o quê?

2. Tiveste até aqui alguma profissão a sério, leia-se obtida à revelia do partido e demais compadrios?

a) Isso existe? b) Chefe de Alcateia nos lobitos; c) Uma vez pensei em praticar ioga; d) Não sabe/Não responde

3. Estás metido em quantas empresas ligadas à área que vais tutelar?

a) Uma; b) Duas; c) Vinte e sete; d) Qual é a área que vou tutelar?

4. Tens familiares envolvidos nas empresas acima?

a) Uma irmã; b) A família em peso; c) Nenhum: é tudo malta do ISCTE; d) Boa ideia.

5. Exerceste funções em entidades públicas ou em entidades parapúblicas?

a) As autarquias contam?; b) A CP conta? c) A Parque Escolar conta?; d) O ISCTE conta?

6. Como definirias a natureza da tua “actividade” anterior?

a) Trapalhada; b) Trafulhice; c) Roubo desalmado; d) Espírito de missão

7. Quantas maroscas cometidas na tua “actividade” anterior estimas que podem vir a ser descobertas?

a) Entre uma a dezoito; b) Entre uma a três, que sou muito cuidadoso; c) Nenhuma, que o dinheiro não fala e o meu cunhado, em cujo nome registei a quinta e o BMW, também não (nasceu surdo, coitado); d) O quê, acham que os tipos desconfiam de alguma coisa?

8. Descontados a corrupção, o tráfico de influências e essas ninharias, em que outras confusões te meteste?

a) Atropelamentos; b) Assaltos à mão armada; c) Sequestro de crianças; d) Pirataria de cruzeiros

9. Já recebeste “fundos” europeus”?

a) Sim, para fingir que plantava uma vinha; b) Sim, para fingir que montava uma destilaria ao lado da vinha; c) Sim, para fingir que fazia uma adega perto da vinha e da destilaria; d) Sim, para construir a moradia com piscina em cima da vinha, da destilaria e da adega.

10. Tens contas bancárias no estrangeiro?

a) Não, ia ter na Caixa!; b) Porquê, soube-se?; c) Sugerem algum país?; d) Isso é com o meu cunhado

11. Tens familiares no governo?

a) Não, apenas um irmão; b) E a mulher dele, claro; c) E o meu sobrinho, mas esse está só num gabinete; d) Já, agora, o meu mais velho tem imenso jeito para o Ambiente

12. Tens familiares em outros cargos de nomeação ou influência políticas?

a) Entre um e dez; b) Entre dez e vinte; c) Tirando a TAP?; d) Todos, só o meu mais novo é que não larga os vídeo-jogos

13. Possuis um Maserati oferecido por conta dos contratos públicos que favoreceram o teu pai?

a) Sim, mas só o conduzo quando o Mercedes está na oficina; b) Sim, mas se me vir obrigado a frequentar o povo estaciono a 200 metros e vou a pé; c) Troquei pelo SUV da Porsche; d) O meu pai é um fascista sem dinheiro nem iniciativa

14. Quantos familiares desejas empregar por aí?

a) O meu mais velho; b) O meu mais novo; c) O meu do meio; d) Ora deixa cá ver…

15. Quando fores nomeado para o governo, como gostarias que a propaganda te apresentasse?

a) O detentor de um currículo à prova de bala; b) Um nome acima de qualquer suspeita; c) Uma figura capaz de pacificar e unir o sector; d) O homem certo no lugar certo

16. Esperas integrar o governo durante quanto tempo?

a) Posso fazer ajustes directos logo no primeiro dia?; b) O tempo suficiente para distribuir umas assessorias; c) Até chegar a indemnização por sair do “emprego” anterior; d) Até garantir o “emprego” seguinte

17. Quando te descobrirem uma ou mais tramóias vais alegar?

a) Cabala; b) Consciência tranquila; c) A ameaça da extrema-direita; d) Ética republicana

18. Na conferência de imprensa em que recusarás demitir-te, qual o estilo que tencionas afectar?

a) Calmo e confiante nas instituições; b) Indignado e de cabeça perdida; c) Amargurado com o declínio dos valores humanistas; d) Que conferência de imprensa?

19. No comunicado em que te demites, qual a mensagem que tencionas transmitir?

a) Estou disponível para cumprir a lei; b) Não sei de nada; c) A verdade virá ao de cima; d) Não tenho de devolver os 500 mil?

20. Sendo inevitável que recorras ao termo, como se diz “notícia falsa” em português?

a) Fake new; b) Fakes news; c) Fake news; d) Fakes new

21. Após te demitires do governo, quais serão os teus projectos profissionais?

a) Aguardar quinze dias e entrar para a administração da empresa a que acabei de conceder avultados apoios; b) Aguardar quinze minutos e entrar para a administração da empresa a que acabei de conceder avultados apoios; c) A presidência de uma comissão ou assim era impecável; d) O que é que se arranja?

Nota final: a única questão decisiva é a 1., a que basta responder Sim” para assegurar o cargo e “Não” para se ser enxotado num ápice. As 20 questões seguintes são, como é óbvio, meramente indicativas. Se 1. é “Sim”, então bem-vindo, Camarada! Vamos ali ao Marcelo e assinas já.

GOVERNO    POLÍTICA

COMENTÁRIOS DE 6

F. Mendes: Tendo o artigo piada, ri com alguma amargura. Porque, de facto, (pelo menos) algumas das perguntas estarão na mente de potenciais candidatos e corresponderão a preocupações dos recrutadores do PS, estas não por razões éticas, ou simplesmente de elementar decência, mas pelo acumular de escândalos a ritmo inaudito. Infelizmente, o artigo mostra, de forma caricatural, uma desgraça que se vai tornando irreversível: chegámos a um ponto em que a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção e  o que seriam as nossas piores expectativas sobre o comportamento abjecto destas criaturas que nos desgovernam; isto, inevitavelmente, sob o alto patrocínio de um "pr" inconcebível, que alinhando estupidamente nesta metodologia de "filtragem" conseguiu descer ainda mais baixo numa prestação miserável.

Victor Victorino: Hilariante e real.

Fernando CE: Muito bom ( o texto ). Muito mau ( o país ).

 

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