O perigo é, realmente, outro, o da passividade,
relativamente à perda de valores, e reponho o final da bela análise de JNP:
«Hoje, não há nada de
semelhante ao “perigo fascista” nem ao “perigo comunista”. Mas há uma
circunstância real, ou percebida como tal pelos povos da Euroamérica: uma ameaça aos valores da civilização laica e cristã –
à religião, à nação, à família, à liberdade, à vida – tal como foram entendidos
ao longo de gerações; uma ameaça com cambiantes experimentalistas e rupturistas
imprevisíveis a longo prazo. Chamar aos que contestam essa decadência,
“fascistas”, pode deixar satisfeitos os acusadores e perturbar alguns dos
rebeldes. Mas não vai mudar nada.»
Mas preferimos todos fazer como faz o
governo, afinal: viver cinicamente “a coisa”, o “deixar andar”, até que passe,
fingindo – ou aceitando – que não se passa nada, dando, eventualmente, o nosso
contributo – todos, colaborando – o governo, em proveito próprio, em larga
escala, nós, ocupados com as aparas, mesmo que acusemos…
“Fascismo, nunca mais!”
O alarme contra os “populismos” e a
pretensão de os reconduzir a velhas formas de autoritarismo ou totalitarismo,
parece ignorar as diferentes circunstâncias, doutrinas e práticas de então e de
hoje.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 21
jan. 2023
Com
o aparecimento no mundo euroamericano de movimentos populares com
características antiglobalistas e identitárias – movimentos que encontraram
expressão política dominante em países como os Estados Unidos, o Brasil, a
Itália, a Polónia e a Hungria e têm
presença nas oposições da maioria dos países europeus – tem havido uma campanha
mediática forte para os equiparar ao regime fascista mussoliniano que, vai para
um século, triunfou em Itália.
Os sinais de alarme contra os
“populismos” – contra os de
direita, porque os de esquerda são ignorados ou olhados com simpatia, como
excessos de generosidade e juventude – e a pretensão de os reconduzir a formas
históricas de autoritarismo ou totalitarismo, parecem ignorar as diferentes
circunstâncias históricas e as doutrinas e práticas de então e de hoje.
Nesses
outros anos vinte, as alternativas que se perfilavam à esquerda e à direita, e
que eram declaradamente antidemocráticas, recorriam à violência como forma
superior de luta e lutavam entre si e contra um sistema que entrara em falência.
Hoje, a violência física é rejeitada por esquerdas e
direitas, e a esquerda tende a apropriar-se da “Democracia”, ou do sistema,
para, a partir de dentro, de uma posição de poder, varrer para fora da
“normalidade democrática” alternativas à direita que não põem em causa a
competitividade democrática, antes, se legitimam através do voto popular.
Por
isso talvez valha a pena recordar os anos vinte de há cem anos, começando por lembrar que as circunstâncias das
rupturas histórico-políticas se devem mais à incapacidade das classes
dirigentes para aguentar novos desafios do que à razão ou mérito das oposições
no ataque ao poder.
Socialismo
patriótico
A Itália era, em 1919, uma nação antiga mas um Estado recente.
Antes de 1914, tinha sido aliada dos
Impérios Centrais, mas foi contra eles que interveio, ao lado da Entente, num
movimento de que o socialista Benito Mussolini foi um dos principais
impulsionadores.
Dado
o pacifismo ideológico e programático dos socialistas, tinha sido surpreendente
que a grande massa dos partidos da II Internacional alinhasse com os governos
“nacionais-burgueses” e votasse os créditos de guerra. Para Mussolini, esta falência da
Internacional Proletária dera-se porque a nação e a lealdade à nação eram,
ou tinham passado a ser, mais fortes do que a luta de classes. Defensor de uma “neutralidade condicional”, Mussolini
apoiou a aliança com os franco-ingleses, já que o Império dos Habsburgo era
quem ocupava Trieste e as províncias do irredentismo italiano – o Trentino,
a Ístria e a Dalmácia. Como ele, outros socialistas italianos fizeram a
ruptura com o internacionalismo do Partido Socialista oficial, enveredando por
um socialismo nacional e revolucionário.
Para o futuro Duce, a
questão nacional era a questão central: em Novembro de 1914, com financiamento de industriais italianos e socialistas
franceses, fundou Il Popolo d’Italia, que tinha no frontispício a legenda:
“Jornal socialista”. Mas
em Agosto de 1918, Il Popolo passara já a ser um “Diário para combatentes e
produtores”. Também em Outubro de 14, Mussolini
criara os Fasci Autonomi d’Azione Rivoluzionaria, proclamando-se socialista
segundo o lema de Blanqui – “Aquele que tem o ferro tem o pão” –, e
reclamando-se da tutela de socialistas não-marxistas, como Proudhon, Bakunin e
Fourier.
Em
23 de Março de 1919, em Milão, nasciam os Fasci Italiani di
Combattimento, que se
transformariam, em 1921, em Partido Nacional Fascista e chegariam ao poder
com a Marcha sobre Roma, em Outubro de 1922. A maioria dos militantes do
movimento eram ex-combatentes e estudantes, mas o fascismo contou com
gente de todas as classes sociais.
O perigo comunista
Na Itália de há um século deram-se uma tempestade e uma convergência para a
resposta alternativa ao “perigo vermelho”,
ao fantasma do comunismo, anunciado em 1848 por Marx e Engels; um
fantasma que deixara de pairar sobre a Europa para a ameaçar directamente com a
revolução, depois de conquistar o
poder na Rússia.
A
novidade e originalidade do fascismo é, a par do anti-liberalismo,
do anti-parlamentarismo e da crítica das instituições e dos valores
oitocentistas (temas comuns à direita
clássica), trazer as ideias de progressismo e solidarismo social e a
consagração da violência como instrumento de mudança. O fascismo queria conciliar as classes, não ao modo
paternalista conservador do catolicismo romano, ou do utilitarismo
anglo-saxónico, mas numa dialéctica realista que, não ignorando a contradição
dos interesses, procurava, pela tutela estatal autoritária, encontrar sínteses
e arbitrar soluções, em nome do bem comum nacional.
Se,
como geralmente se diz dos primórdios do fascismo, a acção precedeu o pensamento,
nos tempos da guerra civil de baixa intensidade até à vitória ou antes da
tomada do poder, o fascismo e os fascistas apressaram-se a formular uma
doutrina.
O fascismo-movimento, antes do
fascismo-regime, teve várias
versões: à partida, era um nacionalismo radical com uma série de princípios de
esquerda – anticapitalismo, anti-latifundismo, jacobinismo –, mas era também popular, romântico e
antiliberal, embora defendendo o alargamento do direito de voto a todos os
maiores de 18 anos, incluindo as mulheres.
Estes princípios saíram da reunião
fundacional de Milão, na Piazza San Sepolcro, a 23 de Março de 1919, como
resposta, na teoria e no terreno, ao comunismo, mas também dando seguimento a
parte das razões do comunismo.
Fechando,
também em Itália, o outro lado a bipolaridade radical, no 1º de Maio desse mesmo
1919, saía o nº1 da revista Ordine Nuovo,
fundada por António Gramsci, com Angelo Tasca, Palmiro Togliati e Umberto
Terracini. Gramsci rompia com a linha socialista legalista do PSI, com a
teorização marxista clássica da II Internacional, defendendo o modelo leninista
de conquista do poder e a formação de “conselhos operários”, semelhantes aos
Sovietes, como “forma universal de autogoverno das classes operárias”.
Já em Abril de 19 tinham começado em
Milão as escaramuças entre fascistas e anarquistas; nos meses seguintes,
recontros do mesmo tipo foram acontecendo em Génova, Bolonha, Florença. A radicalização ideológica e os combates de rua são
paralelos à luta eleitoral no Parlamento, onde, em 1919, os socialistas ganham
dois milhões de votos e elegem 156 deputados; e os católicos do Partido Popular
de Don Luigi Sturzo, à volta de 100, remetendo os liberais, tradicionalmente
dominantes, para terceira força. Os fascistas tiveram uma votação ínfima.
A partir deste “zero” como vão vencer? A violência e a radicalidade
da revolução soviética, com os seus milhões de mortos, despertara na Europa um
clima propício ao estado de excepção permanente para resistir ao que era visto
como uma ameaça existencial à civilização; e daqui surgiu o que Ernst Nolte
chamou a “guerra civil europeia” – uma luta de princípios, ideologias e
concepções de vida totalitárias, que se apoderou de grandes potências e se
propagou por todo o Continente.
É
com base nesta excepcionalidade – e nas consequências político-sociais e
geopolíticas da Grande Guerra – que devemos olhar aqueles anos vinte, e
não com uma percepção maniqueísta de ardis e conspirações de um polvo
reaccionário desejoso de suprimir a Europa liberal e a liberdade na Europa.
Para
entender este tempo, é importante ter em conta estas rupturas e o seu grau de
radicalidade. As torturas e massacres das Tchecas soviéticas, o medo que
despertaram nas elites e nas classes médias de toda a Europa perante uma
revolução que, em nome da utopia, destruíra os factores de uma sociedade livre
– desde a liberdade religiosa à propriedade privada – explicam o apoio das
classe médias e das elites, não só aos fascistas italianos, mas também aos
movimentos autoritários e ditatoriais conservadores ocorridos na Europa
Oriental e Meridional, da Polónia de Pilsudski ao Portugal do 28 de
Maio.
As notícias sobre este terror vermelho foram disseminadas pelos
emigrados russos da primeira vaga de 1917 a 1920, mais de um milhão. Em Berlim, “Metropolis de Fausto” ou “pequena
Moscovo”, viviam cerca de 200 mil, com as suas hierarquias políticas e
militares, as suas associações, os seus jornais, com vida literária e
conspiratória. Ali coexistiam e confrontavam-se com o “Berlim Vermelho”, o dos
comunistas alemães e dos representantes comunistas soviéticos.
Esta
migração vinha em cima de uma tradição de relações russo-alemãs, com escritores e intelectuais, como Boris Pasternak,
Osip Mandelston, Alexandre Koyré, frequentadores de universidades alemãs
(Marburgo, Heidelberg e Göttingen). A emigração integrava todas os perseguidos
pelos bolcheviques: de generais, políticos e religiosos monárquicos e czaristas
a anarquistas e sociais-revolucionários.
Com a derrota do exército de Wrangel
na Crimeia, em 1920, mais de 200 mil refugiados vieram juntar-se ao milhão de
russos da primeira vaga. A maioria destes fixou-se em França que, depois da
Alemanha, foi outro grande centro da diáspora russa. A facção monárquica, a dominante, estava dividida
dinasticamente entre os apoiantes do Grão-Duque Kirill Vladimirovich, filho
mais velho sobrevivente de Alexandre III e irmão do último czar Nicolau II, que
se ficou pela Baviera; e os do Grão-Duque Nikolai Nicolaevich, neto de Nicolau
I, que passou a viver no castelo de Choigny, perto de Paris.
Estas comunidades de emigrados foram
importantes na difusão do anticomunismo. Chegaram a ser, em 1922, milhão e
meio. Entre eles contavam-se pensadores conservadores, como Berdiaiev e o
romancista, futuro prémio Nobel, Ivan Bunin. E o jovem Vladimir Nabokov.
O caso italiano
Em
Itália não seriam muitos, talvez nem chegassem a vinte mil, e não tiveram
uma influência significativa no anticomunismo italiano, senão por via europeia.
O anticomunismo italiano, importante e mesmo decisivo
para o triunfo do fascismo, estava ligado à ameaça comunista directa,
revolucionária, na própria Itália, no período conhecido como “Bienio Rosso”, o
período de1919-1920. O fascismo
revolucionário do programa milanês de 23.3.19 teve uma rápida mutação no
confronto com a esquerda socialista radical no campo, dando lugar ao “fascismo
agrário”, em que o esquadrismo activista dos
camisas negras, enquadrando e até liderando no terreno a reacção dos
proprietários agrícolas da Padania e da Regio-Emilia, se “direitizou”.
Ao
mesmo tempo, Mussolini impulsionava a linha legalista parlamentar e aproveitava
o fim da aventura d’Annunziana de Fiume, para justificar a inserção dos
fascistas no sistema político giolittiano: a aventura de d’Annunzio iniciara-se
com a ocupação de Fiume em 12 de
Setembro de 1919; no ano seguinte, o vate anunciou a independência de Fiume, e
proclamou a carta de Carnaro, constituindo uma República democrática e
igualitária, com laivos soviéticos, ao ponto de ser a Rússia de Lenine o único
Estado que reconheceu a Reggenza Italiana del Carnaro, “cidade-Estado” de curta
vida, onde se permitia o amor livre, o naturismo e a homossexualidade, uma
utopia libertária que atraiu gente de toda a parte.
O
ano de 1921 foi um ano de grande crescimento dos Fasci, que passaram de 88, com
20.615 filiados, para 834, com 249.036, números que, em 31 de Maio de 22
passariam para 2124, com 322.310 filiados. Na repartição geográfica, a grande
força do movimento localizava-se no Norte do país. Quanto às categorias
sócio-profissionais dos filiados, mais de 36% eram agricultores,
proprietários e trabalhadores agrícolas, 15% eram operários e 13% estudantes.
O resto repartia-se por profissões várias do comércio e dos serviços.
Finalmente, 10%, a elite social, eram industriais e profissões liberais.
Foi
a partir desta massa interclassista que se formaram os quadros do regime que,
na época, foi plenamente aceite pelos Estados liberais europeus, que
tinham então por inimigo principal o comunismo russo que, em Dezembro de 1922,
criara a URSS.
Hoje
Hoje, não há nada de semelhante ao “perigo fascista” nem ao “perigo
comunista”. Mas há uma circunstância
real, ou percebida como tal pelos povos da Euroamérica: uma ameaça aos
valores da civilização laica e cristã – à religião, à nação, à família, à
liberdade, à vida – tal como foram entendidos ao longo de gerações; uma ameaça
com cambiantes experimentalistas e rupturistas imprevisíveis a longo prazo.
Chamar aos que contestam essa decadência, “fascistas”, pode deixar satisfeitos
os acusadores e perturbar alguns dos rebeldes. Mas não vai mudar nada.
A SEXTA COLUNA POLÍTICA HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS (de )19
Pedro: Excelente. Era de dar a ler àquela senhora que faz por ser
directora da Visão (cujas páginas vai transformando num panfleto de ignorância
histórica) Fernando
SILVA: Uma muito boa e fundamentada síntese do que
foi o "fascismo" italiano, das circunstâncias do seu surgimento e
desenvolvimento e das suas características violentas e autoritárias. É
importante a ideia de que os "fascismos" foram em boa medida uma
reacção defensiva perante a ameaça real de desestabilização social representada
então pelo "comunismo". Dito isto, parece-me que a mensagem mais
importante e actual do artigo de JNP é a ideia de que, ao contrário do que
pretende o "politicamente correcto" de esquerda e até de muita
direita, os actuais chamados "populismos" de direita não são os
herdeiros nem têm nada a ver com os "fascismos" de há 1 século e, até
por isso mas não só, não são nem violentos, nem anti-democráticos e nem sequer
anti-liberais (até tendem a ser bastante liberais na economia e simplesmente conservadores
nos dominios societários e culturais). Rui Lima: É uma constante mais um magnífico artigo, escreve : “e a
esquerda tende a apropriar-se da “Democracia” Eles conseguem mais também ficam com nosso dinheiro por isso
querem sempre mais impostos . João Ramos: Sempre útil e pedagógico, oxalá este artigo seja lido por tantos
patetas que por aí há. Obrigado, Jaime!!! Carlos Chaves: Obrigado caríssimo Jaime Nogueira Pinto, por mais esta lição de
história. Partilho consigo a perplexidade, ou melhor a constatação, da maioria
da comunicação social tratar os extremismos de esquerda, com simpatia ou mesmo
ignorados, e por contraponto, ostracizarem e definirem como origem de todos os
males para a democracia os débeis movimentos da suposta direita. Podem o
fascismo e comunismo não serem hoje em dia uma ameaça directa aos valores
seculares que nos regem, mas o socialismo é, ao dar guarida às ideias e
aos movimentos “wook”, ao controlarem o Estado e a educação e ao produzirem
milhões de dependentes desse mesmo Estado. No caso
do nosso país é urgente o aparecimento de uma direita assumidamente liberal no
que respeita à economia e à livre iniciativa mas conservadora nos costumes,
respeitando os valores civilizacionais judaico/cristãos. Maria Nunes: Excelente
e oportuno artigo. Carlos Grosso: Obrigado, Professor JNP. Ser professor é ser capaz de encontrar as essências fundamentais
do passado, aprimorá-las com limpidez e procurar o melhor modo de as transmitir
ao futuro, que não é destino, mas construção. O futuro é filho do
passado, é o produto genético daquele, evidentemente, e talvez menos
claramente, mas até mais fortemente, é o seu herdeiro cultural. Jorge Lopes: Artigo maravilhoso. Muito obrigado, Dr.Jaime Nogueira Pinto.
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