Sempre os pontos nos iis de António Barreto. Sem falhar nenhuma adenda.
E com o divertimento natural e o à-vontade de quem conhece os cantos à casa.
Opinião
A virtude e a política
Em vez de amadurecer, a democracia
portuguesa atravessa aguda fase de infantilismo.
PÚBLICO,21 de
Janeiro de 2023, 7:47
O que mais surpreende, na crise
actual, é a rapidez com que se instalou o declínio. Tudo em circunstâncias tão estranhas, em contraste
com as condições muitíssimo favoráveis. Apesar da pandemia, da guerra na
Ucrânia e da inflação, havia uma maioria absoluta, uma aparente experiência de
muitos governantes, dinheiro europeu, uma relativa paz social, o apoio quase
cúmplice do Presidente da República e uma opinião pública não muito
descontente. Até que surgiram as demissões em série, as denúncias
de corrupção, as dúvidas e a desconfiança, os processos e as inquirições. De
repente, o mundo português ficou toldado.
Como
sempre, não faltam as invenções. O questionário de interesses e moralidade é a
mais caricata. Em vez de amadurecer, a democracia portuguesa atravessa
aguda fase de infantilismo. É chocante o modo como é tratada a questão
da seriedade, dos interesses e da honestidade dos políticos. Estão a
inventar-se ridículos métodos de confissão e inquirição, com o principal
objectivo de desculpar os políticos, dispensar a justiça, afastar as
inspecções, eliminar as políticas, ignorar os magistrados, ultrapassar o
Ministério Público e enganar a opinião pública.
E,
no entanto, há coisas tão simples na vida! Quem escolhe e nomeia é responsável.
Quem não cumpre a lei é castigado. O desonesto é condenado. O incompetente é
afastado. Quem rouba é julgado. Quem favorece os seus é denunciado. O que
corrompe é punido e o que se deixa corromper é justiçado. Métodos simples e
conhecidos que dispensam os questionários virtuosos que escondem mais do que
revelam. A começar pela declaração de rendimentos e pelo registo de interesses
entregues no Tribunal Constitucional, uma, na Assembleia da República, outro. E
que agora, pelos vistos, não servem para nada.
A
eventual aprovação deste método de inquirição, seja com o detestável estatuto
de “informalidade oficial”, seja com o selo da lei, levanta mais problemas do
que resolve. Por que razão a propriedade de contas bancárias, de acções e de
imóveis, além de outros bens materiais, é mais gravosa e tentadora do que
outras realidades? Não há outras condições de igual importância? Não há outros
interesses tão ou mais nefastos para a vida política do que os bens materiais?
Tudo
o que é monetário tem ainda um problema suplementar: o dos limites e dos
montantes. Toda e
qualquer fortuna é sinal de dependência e de interesse ilegítimo? Quaisquer
acções, obrigações ou contas bancárias têm esse condão de limitar os direitos e
a moralidade de qualquer pessoa? Ou há limites e montantes? A partir de que
volume uma pessoa é suspeita de ladroagem e de defender interesses ilegítimos?
Um euro? Mil euros? Um milhão de euros? Quantas acções limitam a liberdade e
dão origem à desconfiança? Uma? Mil? Um por cento? Dez por cento? E o
proprietário de um apartamento poderá ser autarca ou membro do Governo nas
pastas das Finanças, da Administração Interna e da Habitação?
Se vamos inquirir a situação
económica, deveríamos também vigiar as qualidades intelectuais,
políticas, de gestão e de liderança. A
incompetência e a incapacidade de previsão, como se vê agora com a Saúde e a
Educação, são mais graves do que um pacote de acções de um banco ou de uma
empresa de telefones. Seguindo
o exemplo do que se passa com a actividade económica, seria necessário elaborar
um questionário destinado a revelar as qualidades intelectuais e de gestão de
um candidato a ministro. Só assim evitaríamos, por exemplo, que o número de
médicos e enfermeiros ficasse muito aquém das necessidades. E só desse modo
teríamos professores formados e distribuídos com a devida antecedência.
De qualquer modo, as condições
económicas estão longe de ser as únicas ou sequer as mais importantes que
afectam a seriedade na política e a isenção dos políticos. Um sócio, adepto ou
dirigente de um clube de futebol, sobretudo dos grandes, pode desempenhar
funções nos sectores que têm relações com esses clubes, como sejam o desporto,
as finanças, o imobiliário, a justiça e as polícias? Não deveremos
exigir que um político se afaste publicamente de um clube desportivo antes de
tomar posse?
Que fazer com a pertença dos políticos a sociedades públicas, a
ordens profissionais, a associações científicas, a academias, a confrarias, a
sindicatos, a grémios e grupos recreativos? A pertença a qualquer associação
cultural e a grupos artísticos limita também as capacidades? Deve ser
eliminatória do exercício de certas funções?
A
fé ou o ateísmo, a crença numa religião, a pertença a uma igreja ou um culto,
são compatíveis com o exercício isento de um cargo político? Pelos actuais
parâmetros, parece bem que não. Católico, evangelista, muçulmano, budista,
hindu, protestante, anglicano e judeu deveriam ser afastados da
política, ou abjurar publicamente antes de serem autarcas, secretários de
estado, deputados ou ministros.
A pertença a associações discretas ou associações secretas, como
qualquer uma das duas dúzias de obediências maçónicas ou uma das muitas
associações religiosas igualmente discretas, deverá ser imediatamente
interdita? Ou deverá apenas limitar o exercício de funções nas áreas que possam
ter envolvimentos e interesses especiais?
Levada esta questão, com coerência, até às últimas consequências, chegaríamos ao ponto, absurdo, de ter de
eliminar as possibilidades de um político ou um autarca exercerem as suas
funções enquanto pertencerem a um partido político. A relação com este é
fonte de todas a suspeitas. Mais do que qualquer outra actividade, reduz
absolutamente a isenção de um político em exercício num cargo público. A
actividade partidária destina-se a conquistar o poder. O exercício do poder
faz-se favorecendo o partido e os correligionários.
Um
político que o queira ser, nas condições que se preparam nesta tão virtuosa
República em que vivemos, tem de renunciar ao seu partido e afastar-se dos seus
camaradas. Só assim chegaríamos ao estádio de perfeição em que um político,
no exercício das suas magnificas funções, deixaria de ter fortuna, de acreditar
num Deus, de pertencer a uma associação, de ser militante de um partido, de ser
adepto de um clube de futebol, de possuir acções de empresas, de ser
proprietário de apartamento, de ter uma quinta, de ir às reuniões da loja, de
frequentar a igreja, de visitar a sinagoga, de rezar na mesquita. Este
político será perfeito, leal, virtuoso, independente e íntegro. Mas não vale um
caracol. E provavelmente será um ditador.
O autor é
colunista do PÚBLICO
Sociólogo
Tópicos
Opinião Políticos Governo Democracia Religião Transparência
Lei das Incompatibilidades
Nenhum comentário:
Postar um comentário