segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Parfait


Sempre os pontos nos iis de António Barreto. Sem falhar nenhuma adenda. E com o divertimento natural e o à-vontade de quem conhece os cantos à casa.

Opinião

A virtude e a política

Em vez de amadurecer, a democracia portuguesa atravessa aguda fase de infantilismo.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO,21 de Janeiro de 2023, 7:47

O que mais surpreende, na crise actual, é a rapidez com que se instalou o declínio. Tudo em circunstâncias tão estranhas, em contraste com as condições muitíssimo favoráveis. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da inflação, havia uma maioria absoluta, uma aparente experiência de muitos governantes, dinheiro europeu, uma relativa paz social, o apoio quase cúmplice do Presidente da República e uma opinião pública não muito descontente. Até que surgiram as demissões em série, as denúncias de corrupção, as dúvidas e a desconfiança, os processos e as inquirições. De repente, o mundo português ficou toldado.

Como sempre, não faltam as invenções. O questionário de interesses e moralidade é a mais caricata. Em vez de amadurecer, a democracia portuguesa atravessa aguda fase de infantilismo. É chocante o modo como é tratada a questão da seriedade, dos interesses e da honestidade dos políticos. Estão a inventar-se ridículos métodos de confissão e inquirição, com o principal objectivo de desculpar os políticos, dispensar a justiça, afastar as inspecções, eliminar as políticas, ignorar os magistrados, ultrapassar o Ministério Público e enganar a opinião pública.

E, no entanto, há coisas tão simples na vida! Quem escolhe e nomeia é responsável. Quem não cumpre a lei é castigado. O desonesto é condenado. O incompetente é afastado. Quem rouba é julgado. Quem favorece os seus é denunciado. O que corrompe é punido e o que se deixa corromper é justiçado. Métodos simples e conhecidos que dispensam os questionários virtuosos que escondem mais do que revelam. A começar pela declaração de rendimentos e pelo registo de interesses entregues no Tribunal Constitucional, uma, na Assembleia da República, outro. E que agora, pelos vistos, não servem para nada.

A eventual aprovação deste método de inquirição, seja com o detestável estatuto de “informalidade oficial”, seja com o selo da lei, levanta mais problemas do que resolve. Por que razão a propriedade de contas bancárias, de acções e de imóveis, além de outros bens materiais, é mais gravosa e tentadora do que outras realidades? Não há outras condições de igual importância? Não há outros interesses tão ou mais nefastos para a vida política do que os bens materiais?

Tudo o que é monetário tem ainda um problema suplementar: o dos limites e dos montantes. Toda e qualquer fortuna é sinal de dependência e de interesse ilegítimo? Quaisquer acções, obrigações ou contas bancárias têm esse condão de limitar os direitos e a moralidade de qualquer pessoa? Ou há limites e montantes? A partir de que volume uma pessoa é suspeita de ladroagem e de defender interesses ilegítimos? Um euro? Mil euros? Um milhão de euros? Quantas acções limitam a liberdade e dão origem à desconfiança? Uma? Mil? Um por cento? Dez por cento? E o proprietário de um apartamento poderá ser autarca ou membro do Governo nas pastas das Finanças, da Administração Interna e da Habitação?

Se vamos inquirir a situação económica, deveríamos também vigiar as qualidades intelectuais, políticas, de gestão e de liderança. A incompetência e a incapacidade de previsão, como se vê agora com a Saúde e a Educação, são mais graves do que um pacote de acções de um banco ou de uma empresa de telefones. Seguindo o exemplo do que se passa com a actividade económica, seria necessário elaborar um questionário destinado a revelar as qualidades intelectuais e de gestão de um candidato a ministro. Só assim evitaríamos, por exemplo, que o número de médicos e enfermeiros ficasse muito aquém das necessidades. E só desse modo teríamos professores formados e distribuídos com a devida antecedência.

De qualquer modo, as condições económicas estão longe de ser as únicas ou sequer as mais importantes que afectam a seriedade na política e a isenção dos políticos. Um sócio, adepto ou dirigente de um clube de futebol, sobretudo dos grandes, pode desempenhar funções nos sectores que têm relações com esses clubes, como sejam o desporto, as finanças, o imobiliário, a justiça e as polícias? Não deveremos exigir que um político se afaste publicamente de um clube desportivo antes de tomar posse?

Que fazer com a pertença dos políticos a sociedades públicas, a ordens profissionais, a associações científicas, a academias, a confrarias, a sindicatos, a grémios e grupos recreativos? A pertença a qualquer associação cultural e a grupos artísticos limita também as capacidades? Deve ser eliminatória do exercício de certas funções?

A fé ou o ateísmo, a crença numa religião, a pertença a uma igreja ou um culto, são compatíveis com o exercício isento de um cargo político? Pelos actuais parâmetros, parece bem que não. Católico, evangelista, muçulmano, budista, hindu, protestante, anglicano e judeu deveriam ser afastados da política, ou abjurar publicamente antes de serem autarcas, secretários de estado, deputados ou ministros.

A pertença a associações discretas ou associações secretas, como qualquer uma das duas dúzias de obediências maçónicas ou uma das muitas associações religiosas igualmente discretas, deverá ser imediatamente interdita? Ou deverá apenas limitar o exercício de funções nas áreas que possam ter envolvimentos e interesses especiais?

Levada esta questão, com coerência, até às últimas consequências, chegaríamos ao ponto, absurdo, de ter de eliminar as possibilidades de um político ou um autarca exercerem as suas funções enquanto pertencerem a um partido político. A relação com este é fonte de todas a suspeitas. Mais do que qualquer outra actividade, reduz absolutamente a isenção de um político em exercício num cargo público. A actividade partidária destina-se a conquistar o poder. O exercício do poder faz-se favorecendo o partido e os correligionários.

Um político que o queira ser, nas condições que se preparam nesta tão virtuosa República em que vivemos, tem de renunciar ao seu partido e afastar-se dos seus camaradas. Só assim chegaríamos ao estádio de perfeição em que um político, no exercício das suas magnificas funções, deixaria de ter fortuna, de acreditar num Deus, de pertencer a uma associação, de ser militante de um partido, de ser adepto de um clube de futebol, de possuir acções de empresas, de ser proprietário de apartamento, de ter uma quinta, de ir às reuniões da loja, de frequentar a igreja, de visitar a sinagoga, de rezar na mesquita. Este político será perfeito, leal, virtuoso, independente e íntegro. Mas não vale um caracol. E provavelmente será um ditador.

O autor é colunista do PÚBLICO

Sociólogo

Tópicos

Opinião  Políticos  Governo  Democracia  Religião  Transparência  Lei das Incompatibilidades

 

Nenhum comentário: