De José Pacheco Pereira. Sempre actual,
hélas! Impecável quanto aos argumentos e suas formulações. Haverá
conserto, no que nos toca a nós, portugueses? Há muito que o vimos sentindo,
numa sociedade de atropelo e preguiça. Mau grado os muitos que seriamente vão
cumprindo. Esperemos que “a vida continue”, na eficiência das suas
modificações, desde que não provocadoramente disformes, na continuidade dos
princípios que se revelam fundamentais para as distinções da nossa persistência
como animais racionais…
Opinião
A crise da democracia e a geração menos preparada
Um dos aspectos no cerne da actual
crise da democracia é a degradação dos factores culturais, de mundivisão,
aquilo a que os alemães chamam Weltanschauung, que implica educação, vontade de
saber.
PÚBLICO, 5 de
Novembro de 2022, 6:47
Há
muitos factores que explicam a crise actual da democracia, os mais importantes
têm que ver com os estragos na qualidade de vida, mas também na dignidade da
vida, de muitos milhões de pessoas nos países onde há democracias. Nas
ditaduras, este processo não se verifica, porque aí, na Rússia, no Irão, em
Hong Kong, a aspiração democrática existe. Eles sabem muito bem o que não têm,
por viverem em ditadura, e lutam com todos os riscos para o obter. É nas democracias ocidentais que, com graus
diferentes, essa crise existe, nos EUA em primeiro lugar, no Brasil, na União
Europeia.
Os dois momentos trágicos que
vivemos, a pandemia
e a guerra
na Ucrânia, aceleraram o processo, mas de há muito uma economia
para os ricos, incapaz de defrontar a exclusão e a desigualdade, seja dos
trabalhadores, seja dos refugiados, fez passo a passo agravar fossos entre uns
e outros. Esses
fossos deixaram do lado errado os pobres, mas também aqueles sectores que se
tinham emancipado nas últimas décadas da pobreza, em particular pela acção do
Estado, e que estão a perder muito.
Todos
estão revoltados, avós, pais, mães e filhos, com alvos diferentes, mas
profundamente insatisfeitos, seja com as reformas, os salários e as condições
de trabalho, e a precariedade, e, atingidos pela carestia de vida, têm uma
sensação de impotência crescente.
Por
outro lado, um conjunto de fenómenos sociais criou fontes de pobreza
e “má vida”. Não
é apenas a pobreza material que cresce, é a perda de esperança, a sensação de
perda de dignidade com as mutações no mercado de trabalho – não é a mesma coisa
ser operário numa fábrica em Detroit ou vender fruta na rua, mesmo quando se
ganha quase o mesmo ou até mais –, a desagregação da família tradicional, o
aumento da violência e do crime, o egoísmo e a solidão urbana, a crise das
redes tradicionais de grupo, substituídas por simulacros virtuais, a pressão do
consumo, a proliferação de identidades grupais com fronteiras guerreiras, uma
maior agressividade por todo o lado. A pobreza “antiga” era mais simples, a
pobreza e a queda na pobreza nos dias de hoje são muito mais complexas.
Contra
quem é esta revolta? Contra os “políticos” nas democracias, em particular dos
partidos de governo, fragilizados pela corrupção, pelo carreirismo e pela
incompetência, com a consequência desastrosa, em sociedades mergulhadas numa
logomaquia mediática, de parecerem distantes, demasiado burocráticos na sua
língua de pau cheia de lugares-comuns, e acima de tudo indiferentes. Esta
indiferença mata o elo da representação, fere a democracia. Esta indiferença é
um maná para os populistas e o seu discurso do ressentimento.
Foto
Daumier DR
Chegados
aqui, porque tudo isto tem de ser dito antes, podemos ir para os factores
culturais em sentido lato, porque
a democracia é uma construção da vontade, não é um estado natural, só há
democracias se as pessoas as desejarem, construírem e defenderem. Sem isso,
tudo o resto, o poder sem limites, o mando, a violência contra os “outros”, o
nepotismo, a demagogia, o privilégio da força e do dinheiro, é muito mais
eficaz.
Ora um dos aspectos que estão no
cerne da actual crise da democracia é exactamente uma crescente degradação dos factores culturais, de mundivisão, aquilo
a que os alemães chamam Weltanschauung,
que implica uma ideologia da democracia, ou seja, saber-se o que se deve
fazer e, talvez mais importante, o que não se deve fazer. Isso
implica educação, saber, vontade de saber, ler, ouvir e ver com olhos de ver,
procurar informação, reconhecer desinformação, falar com voz alta quando é
preciso, e ser prudente na fala também quando é preciso, reconhecer o valor da
privacidade, não ir em ondas mediáticas e da moda, nem fazer como a Maria “que
vai com as outras”. Implica
ter um vocabulário que não seja gutural, feito com meia dúzia de palavras, e
uma capacidade de se exprimir, que vem, entre outras coisas, de ler, e não do
TikTok, nem dos reality shows, nem da fala que nunca se cala do futebol.
Ora,
hoje, mais do que uma geração cresceu e cresce num mundo em que as atitudes da
democracia não existem. Não apenas esta actual, mas já os seus pais, como
também os seus professores, os seus “influenciadores”. Nunca tantos
portugueses chegaram ao ensino superior, mas é uma falácia considerar que isso
significa serem a “geração mais preparada” para defrontar a crise da
democracia, a que são, aliás, bastante indiferentes no que consomem e no que
produzem.
A
informação é substituída pelo consumo do “engraçadismo”, pelo desprezo pela
privacidade, pela raiva, pela calúnia, pelo comportamento em matilha, pelo
julgamento imediato, pelo desprezo pelo outro, sem qualquer esforço sequer para
perceber os seus argumentos, tudo substituído pelo prazer narcísico de ler,
ouvir e ver apenas aquilo com que se concorda. Rodeados de devices que os prendem num presente
inescapável, de mensagens para ler e escrever, vídeos virais, jogos sem fim,
incapazes de deixarem os telemóveis um segundo, com uma sociabilidade mais
virtual do que real, têm uma vida pobre, com muito mais exclusão do que sequer
se apercebem. A seu tempo ficarão deprimidos, a doença psicológica da preguiça
e da facilidade de viver num mundo muito pouco fácil.
Não
admira que aquilo a que tenho chamado ignorância agressiva campeie, uma espécie de ignorância que pensa
que é igualitária com o saber, que valoriza a imediaticidade simplista da
reacção, num mundo emocional tão pobre como é o intelectual. O mundo dessa
cloaca dos tempos modernos, as redes sociais.
Trump
e Bolsonaro são assim, e parte do seu sucesso vem de serem assim, como se essa
rudeza, imbecilidade argumentativa, soberba pessoal, anti-intelectualismo
militante, hipocrisia religiosa, machismo, violência e agressividade
permitissem uma identificação com muitas pessoas que lhes são iguais no mesmo
movimento de poder e exclusão.
E
isto cresce.
O autor é colunista do PÚBLICO
Historiador
Tópicos OPINIÃO DEMOCRACIA REDES SOCIAIS
POPULISMO EDUCAÇÃO DONALD TRUMP
JAIR BOLSONARO
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