Análise impecável de José Pacheco
Pereira sobre o problema da Educação hoje, em que se não oferece solução, naturalmente.
Opinião
Entre o “respeito” e o “dar-se ao
respeito”
Muitos professores já foram
“educados” na mesma ecologia que torna os seus alunos impossíveis de educar. O
problema complementar é que muitos pais são exactamente iguais.
PÚBLICO, 21 de
Janeiro de 2023, 6:53
A palavra “respeito” tem tido
um papel relevante no protesto dos professores, representando um pedido e um
protesto que está muito para além das reivindicações salariais e de carreira. É provável que seja essa componente existencial a
mais significativa na mobilização destes últimos meses que, em bom rigor,
parece ter sido uma surpresa para todos, ministério e mesmo os professores e,
certamente, para o sindicalismo tradicionalmente dominante da Fenprof.
Quando
me perguntavam a profissão, mesmo quando era deputado, sempre respondi que era
professor. Na verdade, fui professor de todos os graus de ensino menos o
básico, e conheci muito daquilo que era a instabilidade da vida de professor
“provisório”. Dei aulas em Boticas, Espinho, Coimbra, Vila Nova de Gaia, Porto
e Lisboa. Em Espinho dei aulas na Escola Preparatória Sá Couto conhecida como
“o Triciclo”, porque estava sediada em três edifícios em locais diferentes e
era possível ter uma aula às 9h num, às 10h no outro, e às 11h de novo no
primeiro, ou seja, não havia intervalos.
Para
se chegar a Boticas, quando lá estive, a viagem a partir do Porto demorava
cerca de cinco horas e qualquer trajecto era péssimo, difícil e, nalgumas
alturas do ano, perigoso, para se atravessar as serras, o Marão, o Alvão ou o
Barroso a seguir às barragens. Tenho as melhores recordações de Boticas, mas
compreendia muito bem o mal-estar dos meus colegas que não viviam em Chaves,
uma das quais vinha de Coimbra e que ansiava por se ir embora logo que podia. Mas à distância, tendo em conta o que é dar aulas
hoje, tudo isto era um paraíso.
Estamos obviamente a falar da escola
pública, aquela que não pode escolher os seus alunos. Na altura, há poucas
décadas, a escola competia com a família na socialização dos alunos e, nalgumas
áreas mais pobres, competia com a rua. A droga ainda estava longe de ser o
problema que é hoje, e não havia a epidemia do “défice de atenção”, nem dos
factores que o explicam. É certo que nos subúrbios de Lisboa e Porto os estudos
já revelavam o enfraquecimento da socialização familiar, com crianças de idade
pré-escolar a já estarem muito pouco tempo com os pais e, quando estavam com
eles, estavam a ver televisão, que acabava por ter um papel crescente na sua
socialização.
Havia nas escolas o que sempre
houve, uma considerável violência e, também como sempre, não era a mesma coisa
viver numa casa com livros, com espaço e razoável conforto, ou num bairro
degradado, pobres no meio de pobres. A educação reproduzia as desigualdades
sociais, embora fosse ela própria um dos raros mecanismos de elevador social
num país muito desigual. Tudo isto era tão antigo e tão denso como era o nosso
atraso nacional, e, se a democracia, o fim da guerra e a entrada para a Europa
mitigaram esse fundo de atraso, estão longe de o diminuir de forma
significativa.
Sobre
este fundo veio a “tempestade
perfeita” que
ameaça seriamente o papel da escola, incapaz de competir com uma ecologia
social cada vez mais hostil, que põe em causa a capacidade da escola de ser um
factor eficaz de socialização, já para não falar de aprendizagem. A droga, as
novas formas de violência a que chamamos “bullying”, a destruição da capacidade
de atenção pela rapidez da imagem dos jogos desde a infância, a deseducação do
valor do tempo lento, do silêncio, do saber, da leitura, a ignorância agressiva
das redes sociais, a substituição da privacidade pela exibição fácil do corpo,
quer como chantagem, quer como vingança, quer como vaidade e sedução fácil, a
presentificação absoluta no mundo das mensagens, do Instagram, do Facebook, do
Tik-Tok, a utilização de devices como os telemóveis como instrumentos de
controlo, a construção de uma sexualidade perversa ou imatura, entre a
pornografia e a moda das identidades da moda, a obsessão pela explicação
psicologista, a completa inadequação de programas de há muito oscilando entre o
facilitismo “para não assustar os meninos”, ou um saber abstracto inadequado à
realidade actual, tudo isto torna as escolas, principalmente no secundário, um
dos sítios de pior viver nas sociedades contemporâneas. Ninguém sabe disso
melhor do que os professores.
Por
isso, têm razão em pedir “respeito”, se o sentido desse pedido implicar a
enorme dificuldade que hoje é ser professor e o reconhecimento que a sociedade
lhes deve, permitindo-lhes melhores condições materiais, menos burocracia,
estabilidade e uma carreira com regras. Mas para se ter respeito é preciso “dar-se ao
respeito” e muitos professores já foram “educados” na mesma ecologia que torna
os seus alunos impossíveis de educar. Já estão demasiado dentro da mesma
“tempestade perfeita”, lêem pouco, vivem dependurados nas mesmas redes sociais,
com os mesmos maus hábitos de desleixo pela verdade, de facilitismo, de
exibição, de opiniões ligeiras para não lhes chamar outras coisas, de
superficialidade e por aí adiante. O problema complementar é que muitos pais
são exactamente iguais, ou seja, há muito poucos factores qualitativos a “puxar
para cima”, mesmo que fosse pouco, o que já seria uma enorme vantagem.
Este é o retrato de uma crise profunda. Infelizmente, mesmo que este
retrato incomode muita gente, pela generalizada cumplicidade, é pura verdade.
O autor é colunista do PÚBLICO
Historiador
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