Justificada por uma democracia no seu
pleno significado etimológico: “o
povo é quem mais ordena”.
Uma crónica exemplar de HELENA MATOS. Para nós, a consciência do nosso
despenhadeiro como nação.
Os reféns da escola pública
Primeiro a escola combateu a COVID.
Depois o Ministério e os sindicatos combateram a avaliação. Agora os
professores combatem o ministro da Educação. E os alunos, quem e quando lutará
por eles?
HELENA MATOS Colunista do Observador
OBSERVADOR, 15 jan. 2023, 00:3679
Os alunos que este ano estão a
frequentar o que outrora se designava como 4ª classe podem não saber fazer uma
conta de dividir ou ler com fluência mas vão certamente ter direito a um
doutoramento honoris causa pelo ISCTE em lutas dentro de aparelho de
estado. Neste mês de
Janeiro de 2023, à segunda-feira ou noutro dia a gosto, não há aulas porque o S.T.O.P. – Sindicato de Todos os Profissionais da
Educação convoca
greves como forma de contestação do regime de recrutamento de professores. Já na terça ou quiçá na quarta é a vez dos filiados na
Fenprof – Federação Nacional dos Professores fazerem greve ao sobretrabalho e
às horas extraordinárias. Na quarta ou talvez na sexta os alunos não têm o
primeiro tempo porque o SIPE – Sindicato Independente dos Professores e
Educadores convocou uma greve parcial que visa contestar propostas de alteração
ao regime de recrutamento… E assim sucessivamente até ser sábado.
O velho horário escolar está a ser
substituído pelo calendário das greves decididas pelos diferentes sindicatos. Enviar os filhos para a escola pública em Portugal é
fazê-los participar numa experiência antropológica que parte de uma
pergunta-base: pode uma geração não imbecilizar após anos sucessivos
numa escola que se esqueceu que foi criada para ensinar?
Lembro
a quem ainda não o tiver percebido: está agora a acabar a escola primária uma
geração que não sabe o que é uma escola a funcionar regularmente. Para tornar
óbvia esta anomalia dêmos um nome aos protagonistas desta alienação escolar.
Chamemos-lhe João, Catarina, Maria. Eles entraram no que se chamava outrora
primeira classe no ano lectivo de 2019/2020. O seu último dia de aulas normal
aconteceu a 12 de Março de 2020. Nesse dia o Governo anunciou o fecho de todas
as escolas a partir da segunda-feira seguinte, 16 de Março, até 9 de Abril. Na
verdade eles já não voltaram à escola no dia seguinte, 13 de Março, e também
não voltariam no dia 9 de Abril.
Eles
foram para casa com um monte de fichas. Os professores acompanhavam on
line a aprendizagem. E eles desenhavam o arco-íris em páginas onde os pais
acrescentavam uma frase a dizer que ia ficar tudo bem.
A
9 de Abril veio a confirmação do que já se esperava: “o ensino básico permanecerá até
ao fim do ano lectivo no modelo de ensino não presencial, com recurso às
metodologias digitais que será reforçado com o apoio de emissão televisiva de
conteúdos pedagógicos”
A
Catarina, o João, a Maria… não voltaram à escola até ao final desse ano lectivo. O mundo estava em estado pandémico. Rapidamente se tornou óbvio que não ia ficar tudo
bem, que as aprendizagens com as “metodologias digitais” não levavam a parte
alguma mas, repetia-se com fé, no próximo ano lectivo os alunos iam recuperar.
E então sim ia ficar tudo bem.
Começou
o ano lectivo 2020/2021. O João, a Catarina e a Maria estavam na segunda
classe, segundo ano ou o que se lhe quiser chamar. O ano lectivo começou a 14
de Setembro de 2020. As aulas eram presenciais mas com obrigatoriedade de
uso de máscara nas escolas. Havia também
regras para circular nos espaços da escola, frequentar a cantina ou praticar
ginástica. Às vezes a
escola parecia um manicómio mas tudo era melhor do que aquilo que se seguiu.
O
início do segundo período foi adiado de 3 para 10 de Janeiro de 2021. Chamou-se
a este adiamento “semana de contenção de contactos”. Se a Catarina, a Maria e o
João frequentassem escolas privadas poderiam ter tido aulas à distância. Na
escola pública não foi essa a opção. As escolas reabriram a 11 de Janeiro de
2021 quando já só se falava do risco da nova variante da COVID. O país vivia na
exaltação da pandemia: apesar de já existirem vacinas e de os médicos
sul-africanos, os primeiro a lidar com a nova variante, a Omicron, afirmarem
que a mesma se propagava muito mas não era grave, a 21 de Janeiro de 2021, as
escolas voltavam a fechar.
Desta
vez não haverá ensino à distância, nem aprendizagens digitais. O então ministro
da Educação, Tiago Brandão
Rodrigues, avisou os privados:
“Esta é uma interrupção lectiva
para todos” “este espreitar sempre a excepção é o que tem causado tantos
problemas em termos societais”. Ou seja o problema societal do João,
da Catarina e da Maria não era estarem a viver um processo de desescolarização
mas sim o facto de os estabelecimentos de ensino privado procurarem assegurar
aulas on line. São quinze dias de interrupção “para todos” que, diz-se,
serão depois compensados no calendário escolar.
A 8 de Fevereiro de 2021 voltaram as
aulas mas apenas na versão on line. As escolas mantinham-se fechadas. Só a 15
de Março as crianças voltarão à escola. Uma semana depois, a 22 de Março, o
Decreto-Lei n.º 22-D/2021 anula a realização das provas de aferição do 2.º, 5.º
e 8.º anos de escolaridade do ensino básico e das provas finais do ensino
básico do 9.º ano de escolaridade.
Estes
cancelamentos são justificados com o propósito de “contribuir para um quadro de
justiça e equidade”. Portanto
não procurar avaliar o que o João, a Catarina, a Maria e demais crianças tinham
ou não aprendido nesses dois anos era uma forma de “contribuir para um quadro
de justiça e equidade”. Como a
título de amostra algumas escolas efectuaram as provas pode dizer-se que os
resultados não revelaram nem equidade nem justiça mas sim enormes dificuldades:
no 2º ano de
escolaridade muitos dos alunos não conseguiram analisar textos nem distinguir
verbos ou sequer identificar palavras no plural.
Mas
certamente que no ano lectivo seguinte, o de 2021-2022 iria então ficar tudo
bem. Felizmente continuavam a não faltar lápis para desenhar tanto
arco-íris!
O
ano lectivo 2021-2022 começa com máscaras obrigatórias e regras sobre
distanciamento. Mas as aulas eram presenciais. Contudo se alguém tinha ilusões
sobre a possibilidade de o João, a Catarina e a Maria terem finalmente uma
escolaridade normal logo as perdeu. Porquê? Porque se passou da fase em que a
escola fechava para combater um vírus, que por sinal pouco ou nada afecta as
crianças, para a fase em que a escola fecha porque os seus funcionários estão em
luta com o ministério.
Assim
o terceiro ano lectivo do João, da Maria e da Catarina começou entre os dias 14
e 17 de Setembro de 2021 mas não começou de qualquer modo: começou a com a
luta de de professores e pessoal não docente contra a municipalização da
educação, greve essa convocada por um então pouco conhecido Sindicato de Todos
os Professores (STOP). A bem dizer a escola pública é desde então
uma escola sempre em luta pois não só ainda não tinha acabado a luta contra a
COVID – em Janeiro de 2022 os alunos só voltam à escola a 10 porque a escola
estava novamente em luta contra a Covid – como o PCP e o BE procuravam ganhar
na rua (que é como quem diz nas escolas) o discurso de luta que tinham calado
enquanto fizeram parte da solução de governo na chamada geringonça. A
FENPROF entrega sucessivos avisos de greve para o que designa como sobretrabalho, designação que abarca tudo mas mesmo tudo o que
não seja actividade lectiva propriamente dita.
Entretanto
João Costa, que passara de secretário de Estado a ministro da Educação,
anunciava que os alunos portugueses tinham melhorado em 2022 as suas
competências em comparação com o último ano antes da pandemia, 2019. O facto,
único no mundo, está ao nível do milagre ou da fantasia.
Na prática andamos a medir os
conhecimentos destes jovens com uma régua elástica como denunciou Susana
Peralta.
Quando o ano lectivo 2022/2023
começa, o João, a Cataria e a Maria estão no quarto ano do ensino básico como
agora se diz (ou dizia, que estas terminologias estão sempre a mudar).
Esperava-se que no final deste ano tivessem operacionalizado as aprendizagens essenciais, por
sinal cada vez mais reduzidas e doutrinárias. A
aprendizagem em que de facto estão a progredir é no designado processo de
desescolarização em curso: o ano começou com perturbações. Desde 24 de Outubro
que a FENPROF retomou as greves ao sobretrabalho e às horas
extraordinárias. O STOP faz greves por tempo indeterminado e o Sindicato
Independente dos Professores e Educadores (SIPE) faz greve mas só a certas
horas. Ontem, 14 de Janeiro, os professores desfilaram em Lisboa. Amanhã 16,
começa uma greve por distritos que se prolongará por Fevereiro e sempre terá o
mérito de fazer os alunos interessarem-se pela aprendizagem essencial do mapa
de Portugal.
As
associações de pais pedem serviços mínimos mais por não terem onde deixar os
filhos do que por eles estarem a perder ainda mais aprendizagens. Afinal isso
não será um problema pois no final do ano lectivo provas feitas à medida darão
conta do crescente sucesso dos alunos das escolas públicas em Portugal.
Os sindicatos que dizem que lutar é
estudar e que nunca abrem a boca pela degradação do ensino, pela burocratização
das suas funções e progressiva opacidade sobre a qualidade do ensino ou pelas
formas como são coagidos a dar números para o sucesso, prometem mais luta pela dignificação
dos mesmos professores que
eles proletarizaram.
O
Governo, preocupado com o
aparecimento de greves “atípicas”, enrola-se na armadilha que a si
mesmo montou.
Quanto ao João, à Maria e à Catarina o
caso é tão só este: as suas famílias conseguem colocá-los em escolas privadas?
Pagar explicações? Estudar com eles em casa? Se assim não for só lhes resta
acreditar em milagres e esperar que as suas crianças não integrem o contingente
anunciado de uma geração perdida.
EDUCAÇÃO SINDICATOS DE PROFESSORES
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