segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Sebastião, o maior


Não entendi bem a interpretação feita por Miguel Tamen aos últimos versos de Os Lusíadas, relativamente à inveja, que não me parece atribuível a D. Sebastião, mas a Alexandre.

Camões escreveu o seu livro épico, de longo saber e longa experiência de trabalho e aplicação, que dedica ao rei D. Sebastião. Vem reclamar o que julga ser seu direito: a paga da sua extraordinária obra, pois o rei deve prezar a virtude de tão extremo e brilhante esforço. Em troca, compromete-se o poeta a ilustrar os feitos futuros de Sebastião em África, que ele tem por efectivos: a musa épica do poeta irá exaltar-lhe esses feitos, de tal forma ilustres e temerosos, que superarão os do próprio Aquiles, a servir de espelho, ainda maior do que os deste, ao próprio Alexandre, o grande conquistador da Ásia. Os invejáveis feitos de Sebastião superarão os de Aquiles, baços estes, em comparação com os do rei português, exemplo excelso de réussite (futura), mau grado Aquiles ser considerado o maior herói da Antiguidade. Um discurso hiperbólico, é claro, mas a inveja aqui não é portuguesa, e sim de Alexandre – D. Sebastião é que é digno de maior inveja de Alexandre do que a que lhe poderá merecer Aquiles, no capítulo da bravura épica, em que o rei macedónio era exímio.

155 «(Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.)
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Digna empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
156 «Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.

Não, Camões cantou heroicidades, com outras desmesuras, no seu livro. Talvez, por astúcia, o terminasse com a tal palavra carismática, bem definidora do que ele entendia que o rodeava, ante a indiferença alheia. Honesto e sincero, Camões sabia que fizera uma obra de mérito, mas – (talvez por atraso de um povo modesto no saber, talvez também por inveja ou indiferença, dos do círculo cortesão) – via-se obrigado a “mendigar” a mísera “tença” que lhe foi destinada posteriormente, na tal “pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões!”. Inveja, talvez, sim, nesse reconhecimento tardio do valor, só já quando o poeta deixa de fazer sombra. Não foi caso exclusivo seu, Pessoa também viveu isso, superiormente, é certo. O apadrinhamento é imprescindível nestas coisas do reconhecimento, a sorte também requerendo sempre um saber estar "à for da corte”.

Mas Miguel Tamen divertiu-se e divertiu-nos com o seu texto. Se é que ainda podemos ter fé em diversão, hoje.

Plano Nacional de Leitura II

A inveja é uma emoção reprovável que não imaginamos poder sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que haja por perto. O nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os  outros.

MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 22 jan. 2023, 00:202

Politólogos chegaram à conclusão de que a última palavra em Os Lusíadas é a palavra “inveja.” A tese tornou-se consensual. Visto que o poema tem a reputação de ser sobre Portugal, supõe-se também que a sua última palavra não poderá deixar de conter uma descrição da característica mais portuguesa do país: aquilo a que um estrangeiro chamou memoravelmente “uma espécie de dor causada pelo sucesso aparente dos outros.”

Pode espantar que este consenso sobre uma emoção reprovável seja tão ubíquo. No Questionário de Camões que todos os anos as figuras públicas têm de preencher antes das férias, a resposta ao quesito “O que eu detesto mais que tudo” é quase sempre “A inveja.” A razão é todavia fácil de compreender. A inveja é uma emoção reprovável que não imaginamos poder sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que haja por perto. O nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os outros.

A superioridade e a fiabilidade de Os Lusíadas na descrição de características portuguesas pode ser detectada pelo teste da última palavra. Outras obras conhecidas de literatura portuguesa parecem ter um valor descritivo menor. Os Maias acaba com “subia”. Menina e Moça com “LAUS DEO.” A Morgadinha dos Canaviais acaba com “A Morgadinha dos Canaviais.” São conclusões que só não são decepcionantes porque estes livros não são Os Lusíadas. Um livro que acaba com “subia” não pode ser de ajuda. A Morgadinha dos Canaviais, a julgar pela sua última palavra, será aquilo a que no ramo se chama meta-ficção; também não é de fiar.

A melhor maneira de perceber uma palavra é perceber a frase de que faz parte: o que quem a usa está a querer dizer. No caso de Os Lusíadas será precisa paciência, visto que a frase em questão não é curta; tem oitenta e quatro palavras, e estende-se por doze versos. Tanto quanto se pode perceber, nessa frase não se declara que em Portugal haja níveis substanciais de inveja, ou qualquer outra coisa portuguesa. Reconhecemos todavia nela um género literário autóctone: a Candidatura à Bolsa. Luís de Camões (1524?-1580) dirige-se ao seu financiador putativo e explica-lhe porque é que, caso lhe conceda a bolsa, o mecenas poderá adquirir qualidades que até aí só lhe teriam ocorrido em sonhos.

A mais importante das qualidades prometidas, esclarece Camões, é uma inclinação castrense. Camões sugere que, por efeito de Os Lusíadas, o seu financiador a adquirirá em grau tal que se transformará não apenas numa reincarnação de Alexandre o Grande, como na de um Alexandre sem qualquer inveja de Aquiles (Aquiles e Alexandre foram na Antiguidade dois militares admiráveis.) Camões está a dizer que quem lhe der a bolsa não terá inveja de ninguém; e por isso a descrever um mecenas em quem Os Lusíadas extinguirão aquela que hoje consensualmente consideramos a principal qualidade portuguesa. Acha no fundo que Os Lusíadas nos pode transformar em estrangeiros.

ERRO EXTREMO  OBSERVADOR

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