Não entendi bem a interpretação feita
por Miguel Tamen aos últimos versos de Os Lusíadas, relativamente à inveja, que não me parece atribuível
a D. Sebastião, mas a Alexandre.
Camões escreveu o seu livro épico, de
longo saber e longa experiência de trabalho e aplicação, que dedica ao rei D. Sebastião.
Vem reclamar o que julga ser seu direito: a paga da sua extraordinária obra,
pois o rei deve prezar a virtude de tão extremo e brilhante esforço. Em troca,
compromete-se o poeta a ilustrar os feitos futuros de Sebastião em África, que
ele tem por efectivos: a musa épica do poeta irá exaltar-lhe esses feitos, de
tal forma ilustres e temerosos, que superarão os do próprio Aquiles, a servir
de espelho, ainda maior do que os deste, ao próprio Alexandre, o grande conquistador
da Ásia. Os invejáveis feitos de Sebastião superarão os de Aquiles, baços
estes, em comparação com os do rei português, exemplo excelso de réussite (futura), mau grado Aquiles ser considerado o maior herói da Antiguidade. Um discurso hiperbólico, é claro, mas
a inveja aqui não é portuguesa, e sim de Alexandre – D. Sebastião é que é digno
de maior inveja de Alexandre do que a que lhe poderá merecer Aquiles, no
capítulo da bravura épica, em que o rei macedónio era exímio.
155 «(Pera
servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.)
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Digna empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
156 «Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
Não, Camões cantou heroicidades, com outras desmesuras, no seu livro.
Talvez, por astúcia, o terminasse com a tal palavra carismática, bem definidora
do que ele entendia que o rodeava, ante a indiferença alheia. Honesto e
sincero, Camões sabia que fizera uma obra de mérito, mas – (talvez por atraso
de um povo modesto no saber, talvez também por inveja ou indiferença, dos do
círculo cortesão) – via-se obrigado a “mendigar” a mísera “tença” que lhe foi
destinada posteriormente, na tal “pátria
onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões!”. Inveja,
talvez, sim, nesse reconhecimento tardio do valor, só já quando o poeta deixa
de fazer sombra. Não foi caso exclusivo seu, Pessoa também viveu isso,
superiormente, é certo. O apadrinhamento é imprescindível nestas coisas do
reconhecimento, a sorte também requerendo sempre um saber estar "à for da corte”.
Mas Miguel Tamen divertiu-se e divertiu-nos com o seu texto. Se é que ainda
podemos ter fé em diversão, hoje.
Plano Nacional de Leitura II
A inveja é uma emoção reprovável que
não imaginamos poder sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que
haja por perto. O nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os outros.
MIGUEL TAMEN Colunista
do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na
Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 22 jan. 2023, 00:202
Politólogos
chegaram à conclusão de que a última palavra em Os Lusíadas é a palavra
“inveja.” A tese tornou-se consensual. Visto que o poema tem a reputação de
ser sobre Portugal, supõe-se também que a sua última palavra não poderá deixar
de conter uma descrição da característica mais portuguesa do país: aquilo a que
um estrangeiro chamou memoravelmente “uma espécie de dor causada pelo
sucesso aparente dos outros.”
Pode
espantar que este consenso sobre uma emoção reprovável seja tão ubíquo. No
Questionário de Camões que todos os anos as figuras públicas têm de preencher
antes das férias, a resposta ao quesito “O que eu detesto mais que tudo” é
quase sempre “A inveja.” A razão é todavia fácil de compreender. A inveja é
uma emoção reprovável que não imaginamos poder sentir; e que imaginamos
prontamente nos terceiros que haja por perto. O nosso consenso sobre a
inveja é realmente sobre os outros.
A
superioridade e a fiabilidade de Os Lusíadas na descrição de características
portuguesas pode ser detectada pelo teste da última palavra. Outras obras
conhecidas de literatura portuguesa parecem ter um valor descritivo menor. Os
Maias acaba com “subia”. Menina e
Moça com “LAUS DEO.” A Morgadinha
dos Canaviais acaba com “A Morgadinha dos Canaviais.”
São conclusões que só não são decepcionantes porque estes livros não são Os
Lusíadas. Um livro que acaba com “subia” não pode ser de ajuda. A Morgadinha
dos Canaviais, a julgar pela sua última palavra, será aquilo a que no ramo se
chama meta-ficção; também não é de fiar.
A
melhor maneira de perceber uma palavra é perceber a frase de que faz parte: o
que quem a usa está a querer dizer. No caso de Os Lusíadas será precisa paciência, visto que a frase em
questão não é curta; tem oitenta e quatro palavras, e estende-se por doze
versos. Tanto quanto se pode perceber, nessa frase não se declara que em
Portugal haja níveis substanciais de inveja, ou qualquer outra coisa portuguesa.
Reconhecemos todavia nela um género literário autóctone: a
Candidatura à Bolsa. Luís de
Camões (1524?-1580) dirige-se ao seu financiador putativo e explica-lhe porque
é que, caso lhe conceda a bolsa, o mecenas poderá adquirir qualidades que até
aí só lhe teriam ocorrido em sonhos.
A
mais importante das qualidades prometidas, esclarece Camões, é uma
inclinação castrense. Camões sugere que, por efeito de Os Lusíadas, o
seu financiador a adquirirá em grau tal que se transformará não apenas numa
reincarnação de Alexandre o Grande, como na de um Alexandre sem qualquer inveja
de Aquiles (Aquiles e Alexandre foram na Antiguidade dois militares
admiráveis.) Camões está a dizer que quem lhe der a bolsa não terá inveja de
ninguém; e por isso a descrever um mecenas em quem Os Lusíadas extinguirão
aquela que hoje consensualmente consideramos a principal qualidade
portuguesa. Acha no fundo que Os Lusíadas nos pode transformar em
estrangeiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário