sábado, 28 de janeiro de 2023

Somos ou não somos boa gente?

 

Um “casus belli” muito nosso, de falta de emprego, afinal. Mas arranjou-se emprego, de bons que somos e é isso que conta. Quanto às razões de Eugénia Vasconcellos, são demasiada areia para a nossa camionete, julgo eu, embora também tenha visto "Tootsie" e o Dusty Hoffman nos seus dois papéis e ache as razões de EV intocáveis, mas que havemos de fazer?

Fake, o paradoxo da chaladice

O São Luiz foi invadido pelo activismo tóxico. Quem desrespeitou quem? André Patrício não desrespeitou ninguém, foi desrespeitado por quem lhe exigiu respeito. Maria João Vaz também foi desrespeitada.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 27 jan. 2023, 00:1523

O futuro ficou para trás no Teatro São Luiz quando Keyla Brasil, activista trans, travesti, «actriz, prostituta», invadiu o palco onde se levava à cena a adaptação de Tudo Sobre a Minha Mãe, e humilhou e responsabilizou um seu colega, o actor André Patrício, pelo seu desemprego e prostituição. Pior. Subalternizou-se o trabalho de André Patrício a um protesto e a uma agenda quando, logo no dia seguinte, o seu papel lhe foi retirado. Pior ainda. Menorizou-se uma actriz, Maria João Vaz, mulher transgénero, ao atribuir-lhe o papel retirado a André Patrício, por ela ser transgénero, não por ser actriz.

Regredimos culturalmente: só uma mulher trans poderá, de acordo com a nova cartilha, interpretar uma mulher trans. Limitámos a representação ao mundo conhecido: deixou, portanto, de ser representação para passar a ser apresentação. Pergunto: só uma mulher trans pode escrever sobre a mulher trans? Isso verte em todas as profissões relacionadas com a experiência transgénero, da psiquiatria à cirurgia?

Quero ser clara: repugna-me e condeno qualquer acto de violência e discriminação ou alienação de direitos do homem e da mulher transgénero. E defenderei sempre a luta política pela igualdade de direitos. Desta ou de outra minoria. Mas o que aconteceu é de outra natureza. A violência, a discriminação e a alienação de direitos recaíram, principalmente, sobre o actor André Patrício durante o exercício da sua profissão. Não por demérito seu como actor, não foi pateado, mas por ter nascido homem e se identificar como homem, ou seja, cisgénero na novilíngua, e interpretar o papel de uma mulher transgénero – para além de outros dois papéis.

O vídeo do acontecimento está disponível e aconselho-o. Nem que seja porque todas as categorias se confundem: lugar político e palco; activismo e arte e cultura; activistas e actores.

Os insultos de transfake que se vêem e ouvem são o paradoxo de toda esta chaladice.

Fake, em português falso ou fingido é, afinal, a chave da representação. Fingir. Fingir muito, ser tão mas tão falso e tão bem, que quem assiste acredita. No caso, acreditar que André Patrício, é Lola, uma mulher transgénero.

Há milhares de exemplos no teatro, no cinema, em séries, deste agora inaceitável fake. Momentos de grandeza, de beleza estarrecedora. Os quais, e não por ironia, fizeram mais pelas causas que neles estão implícitas do que qualquer ofensiva e humilhante invasão de palco.

Em Brokeback Mountain, de Ang Lee, com o já falecido Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, vê-se o amor e a paixão como amor e paixão, independentemente de ser hetero ou homossexual. De igual modo, vê-se o que é a homofobia através da memória de infância de Jack, o personagem de Jake Gyllenhaal, e da sua própria morte. Nenhum dos dois actores era homossexual. E aqueles que no filme espancam e deixam para morrer Jack decerto não são assassinos nem homofóbicos, não os foram buscar à cadeia. Hão-de ter, de certeza absoluta, carteira profissional de, pasme-se, actores.

De acordo com os cada vez mais segmentados critérios do politicamente correcto, a cada dia mais divisor e puritano nas suas instruções, o excelente Brokeback Mountain é um filme homofake. E nem sei o que possa ser dito de uma das minhas séries de eleição, Anjos na América, de Mike Nichols. Afinal, a pretexto do HIV e da sida, e de como foram vividos nos anos 80 politica, religiosa e socialmente, expõe a dor, a solidão, a perda.

Na série, os actores multiplicam papéis. Prior, doente terminal, é na realidade um actor saudável. A actriz Meryl Streep, além de ser um dos anjos, interpreta, entre outros, um homem velho e judeu, o rabi Chemelwtiz, num fingimento tal, numa tão completa falsidade que é irreconhecível. Temos, assim, um homem saudável a representar um doente. Uma mulher cisgénero a fazer de anjo, uma criatura assexuada, dizem. E de rabi. Ora, Meryl não é judia. Pode interpretar um homem pertencente a uma minoria sujeita a perseguição histórica e genocídio? E para mais, velho, sendo que na altura a actriz estava distante dos critérios geriátricos. Mil vezes fake. É caso para gritar «desce daí, respeita esse palco»?

Ou é caso para perguntar: uma mulher transgénero não pode fazer de homem judeu e velho? Não pode interpretar uma mulher heterossexual? Um anjo? Um doente terminal? A ser desta forma, isto é, de acordo com os critérios de Keyla Brasil, terá uma vida profissional muito limitada. Ou então entramos directamente na mirabolante lógica woke: os opressores/maioritários/apropriadores não podem interpretar trans nem isto nem aquilo, mas os oprimidos/minoritários/apropriados podem interpretar todo e qualquer papel.

O palco do São Luiz foi invadido pelo activismo tóxico. Quem desrespeitou quem, de facto? André Patrício não desrespeitou ninguém. Mas foi desrespeitado por quem lhe exigiu respeito. Maria João Vaz também foi desrespeitada.

Este é o mesmo activismo trans cuja toxicidade tem por alvo, em regra, as mulheres agora ditas cisgénero heterossexuais ou lésbicas sexualmente atraídas por outras mulheres cisgénero. Desta vez a toxicidade transbordou e levou de caminho um homem cisgénero.

Há outro activismo trans, não tóxico. É o que tem lugar no palco político.

Em cena, no teatro, está, ou deve estar, o talento, esse mistério onde se fundem as competências técnicas, a vocação e a chama.

No primeiro texto que escrevi para este jornal, falei sobre o caso da tradução do poema de Amanda Gorman, a jovem poeta, modelo e activista que se tornou global na tomada de posse de Joe Biden, ao dizer o seu The Hill We Climb. E de como nos Países Baixos, e depois um pouco por todo lado, se levantou a estapafúrdia questão de que a tradução daquele texto deveria ser feita por uma mulher negra – tradutores de trabalho provado, Booker Prize incluído, viram interrompido o seu trabalho. Porque não exigir também que os tradutores fossem modelos e activistas e de 20 anos?

Sou poeta e tenho poesia traduzida. Não quero saber nem a cor, nem o género, nem com quem dorme, nem em quem vota quem me traduz: desejo apenas um bom tradutor. E um bom filme. Uma boa série. Um bom actor em palco. O que cabe num mundo diverso e plural. E um mundo diverso e plural que não ceda ao activismo tóxico.

O São Luiz cedeu. Fez mal.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

TEATRO   CULTURA   TRANSGÉNERO   SOCIEDADE   POLITICAMENTE CORRECTO

Esclarecimento da história

ANDRÉ FILIPE ANTUNES: Texto

AGÊNCIA LUSA: Texto

OBSERVADOR, 20 jan. 2023, 21:03 

Actriz e prostituta travesti interrompe peça "Tudo Sobre a Minha Mãe" em protesto pela inclusão trans.

Acção de actriz e prostituta interrompeu o espectáculo com apelos à inclusão: "Não temos espaço para estarmos aqui neste palco”. Actriz trans Maria João Vaz interpreta papel já a partir desta sexta-feira.

A plateia do Teatro São Luiz que esta quinta-feira à noite assistia a uma performance da peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” foi surpreendida quando Keyla Brasil, actriz e performer travesti, interrompeu o espectáculo em protesto contra a falta de representatividade de actores transgénero – um protesto que acabou por ter consequências rápidas.

Baseada no filme homónimo de Pedro Almodóvar, a peça parte de um texto de Samuel Adamson (com tradução de Hugo van der Ding) e encenação de Daniel Gorjão. A história inclui duas personagens trans, Agrado e Lola. A primeira interpretada pela actriz trans brasileira Gaya de Medeiros, e a segunda pelo actor cisgénero André Patrício.

Foi precisamente este último o alvo do protesto. No vídeo partilhado na página de Instagram do duo musical Fado Bicha (que participou na organização da “acção direta”), é possível ver Keyla Brasil a subir, seminua, ao palco, gritando a palavra “transfake” e exigindo a André Patrício que descesse do palco e tivesse “respeito” por aquele lugar.

Brasil prosseguiu a sua intervenção durante cerca de três minutos. “Gente, boa noite. Chamo-me Keyla Brasil. Sou actriz, sou prostituta”. Enquanto a cortina vermelha ia descendo, a manifestante ignorou os apelos da produção para que saísse do palco, atacando a precariedade dos actores trans em Portugal:

O que está a acontecer agora é um assassinato e um apagamento das identidades travesti. Se contrataram quatro mulheres e três homens, porque é que não contrataram duas pessoas trans para fazer a personagem? Sabem porque é que eu trabalho como prostituta? (…) Porque não temos espaço para estarmos aqui neste palco”.

A intervenção, que a princípio gerou confusão e apupos de respeito pelos actores, acabou por colher o apoio da plateia, que aplaudiu particularmente após a revelação feita pela performer de que teria tido um revólver apontado à cara dias antes enquanto trabalhava como prostituta. “Por causa disto ia sendo morta! Não estão dando oportunidade para um travesti trabalhar”.

A questão da representatividade trans na peça não foi alheia à produção da peça. Na folha de sala do espectáculo, Daniel Gorjão já admitia que “este não é um espetáculo perfeito também neste aspecto, porque a Lola é interpretada por um homem e não por uma mulher trans”, antes de justificar a decisão com pressupostos financeiros. “Infelizmente, as lógicas de produção, às vezes, impõem-se às lógicas artísticas”, pode ler-se.

Na Instagram, os Fado Bicha já tinham, anteriormente, dado voz a um manifesto onde apelaram ao boicote da peça, explicando também a origem e significado do termotransfake – “descreve a acção de artistas que participam na exclusão de trabalhadores culturais trans, através da apropriação de papéis trans”.

O elenco de actores voltou a subir ao palco para falar com a activista: Gaya de Medeiros (a única atriz trans da peça), de punho erguido numa demonstração de apoio, deixou um apelo à plateia:“Quero que vocês entendam com generosidade, de coração. A liberdade de uma não será a liberdade de todas. Eu sou apenas um começo. Isto aqui não está como deveria estar. Mas acho que hoje este acto da Keyla Brasil, uma artista que está na prostituição, deve entrar na história de Portugal, para que se entenda a importância destes corpos ocuparem estes espaços para contarem as suas histórias. Isto não é contra o actor e o director. Isto é contra uma denúncia histórica, que andamos a fazer há muitos anos”.

Actriz trans Maria João Vaz interpreta Lola a partir desta sexta-feira

Após o protesto, a sessão não foi retomada. Esta sexta-feira, quando “Tudo Sobre a Minha Mãe” voltar a subir ao palco, terá mudanças no elenco, com a atriz trans Maria João Vaz a substituir André Patrício no papel de Lola. Patrício não abandona a peça ainda assim: desempenha três papéis no enredo e deixa apenas de desempenhar Lola.

O anúncio, feito na página de Instagram do São Luiz, refere que a mudança foi possível “no seguimento de vários actos de contestação pela representação de uma personagem trans por um actor cis e pela criação de condições de acesso e representatividade para pessoas trans” e foi largamente elogiada nas redes sociais.

Em declarações à Agência Lusa, Daniel Gorjão ofereceu algumas explicações. “Como já assumi, tentei fazer um gesto de representatividade que não foi bem acolhido pela comunidade trans”. O encenador mostrou-se “solidário” com “a sua luta pelo acesso ao trabalho e pela representatividade” da comunidade trans, com quem “sempre” esteve, discordando, porém, da forma “violenta” como o fazem.

“Estou com a comunidade, sempre estive”, frisou, ressalvando que “a mudança faz-se mudando”, pelo que já esta noite vão ter mais uma actriz trans no elenco, a fazer o papel de Lola, no caso a actriz Maria João Vaz. A “possibilidade” surge agora, prosseguiu Gorjão, “depois de todos os acontecimentos”, uma vez “que se reuniram condições”, com “o total suporte dos teatros produtores”.

“Foi isto que aconteceu. Nem tudo sempre é apenas uma questão de vontade. Como eu já tinha explicado, existem sempre condicionantes na criação de um espetáculo”, lembrou Daniel Gorjão à Lusa, lamentando os acontecimentos e sublinhando “nunca ter tido a intenção de ofender quem quer que seja”. “E o meu trabalho também pode falar por mim nestas questões”, concluiu.

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