No assertivo das referências como na
probidade dos conceitos. Mas o resvaladouro é para continuar. Alegra-nos,
todavia, a ideia de que haverá sempre jovens, como Telmo Ferreira, capazes de dar continuidade a
pensamentos “clássicos”.
Uma inacreditável rábula política
É notória a dificuldade em recrutar
para a vida política governantes de qualidade, com verdadeiro espírito de
missão para a coisa pública.
TELMO FERREIRA Politólogo
OBSERVADOR, 23
jan. 2023, 00:00
Ao
longo destes últimos meses temos presenciado um vórtice que tem devastado a
composição do actual governo. Assoberbado por situações no mínimo duvidosas, foi
encontrada uma solução para resolver a tão afamada crise política: um
questionário. Quem nunca
perdeu uma tarde nos serviços públicos, esperando que um derradeiro formulário
fosse a resolução de todos os seus problemas? Exactamente, devem estar a pensar
o mesmo que eu!
Depois de uma primeira tentativa de
incluir a Presidência da República e o Tribunal Constitucional na decisão sobre
o recrutamento dos membros do executivo (prontamente recusada pelo Presidente
Marcelo), o governo
liderado por António Costa avançou com a tão esperada solução: uma lista de questões e um compromisso de honra, que
atesta a capacidade e legitimidade dos governantes.
Ignorando
o facto de infelizmente isto não ser um número de comédia política, poderemos
analisar várias problemáticas de fundo, essas verdadeiramente preocupantes. Primeiro que
tudo, coloca-se a dúvida: anteriormente
a este questionário, os cidadãos convidados a assumirem funções governamentais
não eram devidamente escrutinados sobre a sua idoneidade e o seu percurso? Só
agora é que são analisadas possíveis incompatibilidades? É que o anúncio com
pompa e circunstância desta “novidade” passa a ideia de uma anterior incauta
escolha de governantes.
De
seguida, a necessidade deste questionário não coloca em evidência
a incapacidade do actual governo de escolher os seus próprios membros? Além do mais, a inicial peregrina ideia
de envolver o Presidente da República e o Tribunal Constitucional no mecanismo
de escrutínio, em algo que é exclusivamente da sua competência, coloca isto
ainda mais a nu. Mas calma, ainda não fica por aqui.
Se a suspeição existente sobre o ambiente político e o exercício de
funções políticas não fosse suficiente, a existência do questionário coloca os
candidatos a funções governamentais como suspeitos em princípio, assumindo que
só após responderem ao questionário de forma satisfatória poderão ser
considerados inocentes. Mas com que critérios? Quem é responsável pela
avaliação do questionário?
Já agora, os actuais membros do
governo também vão ser alvo do questionário? Se sim, e na eventualidade de
resultado negativo, vão ser demitidos?
Aplicando o princípio caro de Max
Weber “viver para a política e não da política”, fica difícil a alguém com
verdadeiro espírito de servidor público aceitar toda esta suspeição e
desconfiança.
É claro e evidente, na análise do
funcionamento das sociedades e particularmente na teoria das elites, a
inevitável necessidade da existência de uma elite dirigente capaz de
tomar as decisões e gerir politicamente uma comunidade. A
existência dessa elite é tão fundamental como a existência de uma sociedade
informada e crítica, capaz de escrutinar as decisões do poder político. Neste momento, estas duas simples condições
parecem esvaziar-se à medida que o tempo passa.
Por um lado, é notória a sistémica
dificuldade em recrutar para a vida política governantes de qualidade, com
verdadeiro espírito de missão para a coisa pública.
Actualmente, o percurso governamental aparentemente parece ser
apenas um meio de obter vantagens/oportunidades para um futuro promissor e
algumas manchetes jornalísticas. Obviamente não existe ideal, mas terá de haver um
mínimo aceitável. Claramente o que tem ocorrido, não o é.
Por outro lado, o facto de estarmos, como sociedade, a considerar
esta medida de controlo de governantes sem
ter um ataque de riso, mostra bem ao ponto a que chegamos. Exactamente o de
todo este descrédito que continua a erodir as fundações do nosso regime
democrático, dado à sucessão de situações que mais parecem retiradas de uma
rábula. Se ambicionamos preservar o regime, talvez devamos começar por aqui,
abandonando a incapacidade e os jogos de aparência. Infelizmente esta cortina de fumo deliberadamente
lançada como panaceia, além de colocar mais problemas do que soluções, não é
retirada de uma comédia passada num qualquer país ficcional.
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