sábado, 14 de janeiro de 2023

A propósito das sagas de hoje

 

Dá-nos, o Dr. Salles, a evocação das sagas de outrora, que bem graves foram também, sempre marcadas por astúcias e traições e as tais mordomias que, a ter continuado o Regente D. Pedro, da “Ínclita Geração” a reger, segundo os parâmetros da sua “carta de Bruges”, talvez tivessem contribuído para uma percepção menos mesquinha do que seja governar com inteligência e mais apego pelo bem geral, com efeitos sobre os tempos seguintes… Será uma bela leitura, essa da tal carta, que só conhecíamos por citação, tal como O Livro da Montaria de D. João I, e os de D. Duarte, de que pouco mais conhecíamos que a tal melancolia por este referida, causada pela morte da mãe. Bem felizes nos sentiremos, pois, se o Dr. Salles nos brindar com as tais normas de D. Pedro, filho da mesma mãe inglesa, D. Filipa de Lencastre.

SAGA DE UM REI QUE NÃO FOI

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO,  13.01.23

Pergunta: - Como teria sido se não tivesse sido como foi?

Resposta: - Essa pergunta é um disparate pois só pode conduzir à especulação sobre os resultados alcançados por uma experiência não experimentada. E a questão objectiva é a de imaginarmos como teria sido se na batalha de Alfarrobeira as forças do Infante D. Pedro tivessem saído vitoriosas e o próprio Infante tivesse sobrevivido à dita batalha.

* * *

Apesar da evidência da resposta acima, tentemos…

… imaginar D. Duarte e D. Pedro, esses dois membros da Ínclita Geração.

Do reinado de D. Duarte, destaco da minha memória a «Lei Mental» (8 de Abril de 1434) que deve ter sido escrita por ilustres sucessores do Doutor João das Regras (1357-1404) e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela» que, este sim, tenha sido escrito pelo próprio D. Duarte, já Rei.

Sobre o grande mérito da referida obra legislativa não restam quaisquer dúvidas, mas sobre o livro de equitação, tenho sérias dúvidas porque…

… produzir um escrito na Idade Média sobre equitação é praticamente o mesmo que compor hoje um manual de instruções para uso de um carro do topo ou da base de qualquer gama. E não imagino o nosso Professor Marcelo a ocupar os seus tempos (mesmo livres, se os tem) numa tal tarefa.

Como podemos facilmente imaginar, a dita obra sobre equitação está completamente desactualizada.

Duarte padecia de melancolia, esse mal a que actualmente chamamos depressão. Como é sabido, trata-se de mal que pode chegar a extremos incapacitantes e, quiçá, fatais. O reinado de D. Duarte sofreu directamente as consequências dessa grave enfermidade real apesar de o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e que ficou conhecido como «o Infante das Sete Partidas» (por viajar muito) lhe ter endereçado a famosa «Carta de Bruges», verdadeiro «vade mecum» para a boa governação.

Na sua condição de filho segundo, não lhe caberia subir ao trono a menos que o primogénito varão morresse sem descendência. Tal não aconteceu e D. Afonso V foi entronizado ainda criança ficando o seu tio, o Infante D. Pedro, como Regente.

Foi então a hora de pôr em prática os princípios da «Carta de Bruges» tendo o Reino beneficiado de um período da melhor governação da História de Portugal.

Está claro que a melancolia de D. Duarte deve ter possibilitado todos os abusos e é óbvio que o Regente D. Pedro deve ter tido algum trabalho a fazer cessar os desmandos. Eis como os povos se puseram ao lado do Regente e os que se tinham visto usurpados de mordomias imorais alinharam com o jovem D. Afonso V, então apenas Rei «in nomine».

Azedado o ambiente, deu-se a Batalha de Alfarrobeira – em Vialonga, Concelho de Vila Franca de Xira, onde actualmente se situa a fábrica da cerveja «Sagres» - donde resultou a morte do Infante D. Pedro.

Assim começou a desdita dos que pretendem servir Portugal e tomou rédea o «self service» patenteado diariamente pela comunicação social.

Esta, a saga de um País que teve um Rei que não foi.

Janeiro de 2023

Henrique Salles da Fonseca

NB – Logo que a encontre, publicarei na íntegra a «Carta de Bruges»

Tags: história

COMENTÁRIOS:

Anónimo 13.01.2023 19:57: Muito bem escrito. O Infante D. Pedro e o seu grande amigo e Português pertencente aos lendários " Doze de Inglaterra ", D.Alvaro Vaz de Almada, morreram heroicamente em Alfarrobeira, vitimas do ciúme e da inveja do 1°Duque de Bragança que, ironicamente, devia o seu Título ducal, precisamente ao meio irmão o Infante D. Pedro, quando este, por morte de D. Duarte, exercia a regência. José Henriques

APM  14.01.2023  12:18: M/ Caro, É sempre um gosto lê-lo. Os filhos segundos sempre foram um problema nas monarquias hereditárias. Até hoje em dia. D. Pedro "o de Alfarrobeira", Duque de Coimbra, não foi excepção. A legenda que a História lhe associou, "o das Sete Partidas", pode não ter a ver com as viagens que terá feito por essa Europa erudita à época (a Europa do Sul), mas com o movimento político que a agitava. Esse movimento consistia no regresso ao Direito Romano (e as "Sete Partidas" remeteriam para os sete livros do Direito Romano) que iria servir de base ideológica para o Absolutismo e o Estado Moderno. Alfarrobeira foi, precisamente, o choque entre aqueles que propugnavam por um Rei Absoluto, à cabeça de um Estado e não de um Reino Senhorial, e os que defendiam o status quo dos poderes senhoriais. Afonso V é o fruto da vitória nessa lide militar e foi no seu reinado que Portugal conheceu verdadeiramente o regime senhorial (ou feudalismo). Por isso, Afonso V deixou a seu filho, João II, nada mais que os caminhos de um Reino retalhado pelos poderes senhoriais. D. João II, por sua vez, foi a desforra última, decisiva e bem sucedida dos derrotados de Alfarrobeira.

Francisco G. de Amorim14.01.2023 12:41: Um dos meus raros ídolos da História de Portugal

Anónimo 14.01.2023 13:12: Gostei da tua frase “… e tomou rédea o self-service patenteado diariamente pela comunicação social”. Interpretei a parte inicial dela como a versão moderna de “É fartar, vilanagem”, proferida exactamente na Batalha de Alfarrobeira, pelo amigo e valido de D. Pedro, D. Álvaro Vaz de Almada, referido no comentário do Senhor José Henriques. Segundo a internet, a frase completa é a seguinte: “Meu corpo sinto que não pode mais” e tu, minha alma, já tarda; é fartar vilanagem”. E o fartote foi tal que, quando D. João II sobe ao poder por morte de seu pai, D. Afonso V, proferiu a célebre frase: “Meu pai deixou-me rei das estradas de Portugal”. Alfarrobeira marca a suspensão do processo de centralização régia iniciada por D. João I, que o segundo deste nome haverá de continuar de forma violente e sangrenta (talvez também como resposta ao comportamento do Duque de Bragança para com o seu avô. D. Pedro, e que é mencionado no citado comentário do Senhor José Henriques). Ao que parece, D. Álvaro é um dos retratados nos Painéis de S. Vicente. Quem diria que o brado “É fartar, vilanagem” atravessaria tantos séculos, envolvendo tantos vilões, burgueses, nobres, monárquicos, republicanos e “tutti quanti”… (“Tutti frutti” é a designação de uma operação em vigor da PJ sobre uma teia de corrupção, segundo é do conhecimento público). No volume 2 da monumental História de Portugal, coordenada pelo Prof. José Mattoso, pode ler-se (pág. 503) que D. Pedro, após receber o poder de Regente, afirmou que o aceitava “não para beneficiar clientelas sociais e políticas, mas para servir o País, a Nação, todos os grupos e classes”. Assume uma postura de homem de Estado, demarcando-se dos seus eleitores mais numerosos (casos, por exemplo, dos concelhos de Lisboa e do Porto) o que não tardará a desagradar a muitos. Repara, Henrique, que quando os candidatos a Presidente da República dizem na noite das eleições que a maioria que os elegeu se extinguiu e que serão Presidente de todos os Portugueses, estão a repetir o que D. Pedro afirmou uns bons séculos antes. A versão da motivação da Batalha de Alfarrobeira, que nos ensinaram, é a que consta do comentário já citado – ciúme e inveja do Duque de Bragança – e também ânsia de mais poder deste e de outros, em detrimento do poder real, como já mencionei. É verdade, mas não é toda a verdade. O meu professor Jorge Borges de Macedo revela, em “História Diplomática Portuguesa” (volume I, páginas 80 e seguintes), a verdade complementar.
Sabemos que a expansão ultramarina é realizada perante um vizinho poderoso e ambicioso que Portugal tinha. Duas correntes se confrontam na corte D. João I: alargamento da área africana, defendida por D. Henrique, e outra, que embora aceitasse a presença em África, entendia que a ligação com Borgonha, com a Inglaterra, com o Mediterrâneo e com o Mar do Norte continuava a ser o essencial para o País, sendo esta defendida por D. Pedro. (Esta problemática África versus Europa, não te diz nada do passado recente, Henrique?). D. João I aceitava ambas as políticas, e procurou através de casamentos prosseguir esses objectivos. Ele próprio estava casado com uma Lencastre, e casou sua filha Isabel, com o Duque de Borgonha, D. Duarte com uma princesa de Aragão, D. Pedro com uma catalã da família Urgel, rival da Casa Aragão. Por outro lado, perante as disputas entre os Reinos de Aragão e de Castela, Portugal, desde D. João I e continuando com D. Duarte, manteve uma política de neutralidade que foi quebrada, com a oposição do Duque de Bragança e da Rainha viúva, que era aragonesa, como dito, por D. Pedro que apoiou Castela, na pessoa do respetivo condestável Álvaro de Luna, o qual foi vencido. Caído este em desgraça, a sorte de D. Pedro estava traçada, também por isso o Prof. Borges de Macedo dizer que a Batalha de Alfarrobeira foi “em grande medida, uma consequência da política externa de D. Pedro”. Sabemos que nenhum dos Reinos de Aragão e de Castela conseguiu a hegemonia em relação ao outro e que a solução foi encontrada na paridade, nas pessoas dos Reis Católicos, cujo lema é bem elucidativo: “
Monta tanto, tanto monta, Isabel como Fernando, Fernando como Isabel”. Abraço. Carlos Traguelho

Adriano Miranda Lima 14.01.2023 23:50: Muito grato estou ao Dr. Salles da Fonseca e aos ilustres comentadores que até agora intervieram nesta revisita a um tão importante episódio da nossa História. Claro que o conheço bem e aproveito para relembrar o quão eloquentemente o saudoso Professor José Hermano Saraiva sobre ele discorreu num dos seus célebres programas da RTP. Só por mera distracção se não dá conta da gravidade deste facto histórico e das muito prováveis consequências (negativas, obviamente) que resultaram para o futuro do país. Podia escrever simplesmente do "reino", mas será sempre mais acertado escrever o "país", ou a nação projectada no futuro. Resta apenas saber se D. Pedro teria tido, caso tivesse triunfado, a ciência e a autoridade bem mais afinadas, calculadas e aferidas do que o que conseguiu D. João II para restabelecer o poder real sem peias e sem ociosas fracturas internas. É certo que, por outro lado, não é fácil formular juízos taxativos sobre o que teria sido o reino de D. João II caso não tivesse morrido tão novo, aos 40 anos, envenenado, segundo se suspeita. Mas para quem ousou dar os passos que deu para afastar os empecilhos internos e para projectar o país além-mar, é bem possível que com mais anos de vida poderia ter consolidado o poder real em bases mais sólidas e com isso eliminado de vez a fragmentação do país em interesses privados que cuidam muito mais de si do que do conjunto nacional. A verdade é que há males e vícios que parecem fadados a perpetuar pelo tempo fora.

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