sábado, 14 de janeiro de 2023

Não é original, a proposta


Do fino Tino, a respeito da alteração da letra do Hino, pois não me esqueço de que a escutei a António Vitorino, também de Almeida, já depois de cá estar, chegada do Ultramar, desfeitas as ilusões por conta das muitas traições, seguidas das sofreguidões que não mais pararam desde que se iniciaram, e cujo cinquentenário não tarda que festejemos, talvez destruindo o Hino, por proposta do digno Tino, que é o que está a dar, nestes tempos de auto-destruição, por conta da pretensão de se pedir perdão do tanto que fizemos em prol do alargamento terrenal que iniciámos com suficiente valor, verdadeiros "heróis do mar". O resto, vem bem descrito, com sabedoria e graça por Alberto Gonçalves, no seu estudo certeiro, mas aceito melhor a visão discreta e sentida de Eugénia de Vasconcellos, seja o patriotismo o que for. Todavia, por isso também, desprezo a submissão à tal proposta do refazer do Hino, pelo ressabiado Tino, cuja discussão esta esta aceita, talvez para se impor, assim o desejo, contra a matreirice de um defensor apenas das teorias de um woke de puro exibicionismo pedante dos seus apologistas em moda.

O hino e o Dino

Dado o excesso de d’Santiagos e a falta de um Irving Berlin, podíamos jogar pelo seguro e inspirarmo-nos na Espanha. Mau vento e péssimo casamento, mas um hino impecável. Pelo menos a letra.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 14 jan. 2023, 00:215

Dino d’Santiago, cançonetista que descobri quando se filmou a discutir com um chofer de praça, pede um hino nacional “menos bélico, que incentive menos às guerras”. É engraçado o sr. d’Santiago ter formulado o pedido perante uma audiência que incluía personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres e Francisco Pinto Balsemão, garantias suficientes de que a rendição seria a atitude de Portugal em qualquer guerra, mesmo aquelas em que nem sequer entrasse. Além disso, o sr. d’Santiago frequenta com agrado a Festa do “Avante!” e, pelas alusões à Rússia, aprecia o tipo de pacifismo que os comunistas adoptaram durante o pacto Molotov–Ribbentrop.

Tais pormenores não me impedem de concordar em parte com o sr. d’Santiago: A Portuguesa é uma tristeza. A ressalva prende-se com o facto de não ser só o belicismo a incomodar-me, e sim o gongorismo tosco da coisa, com “egrégios”, “jucundos” e uma métrica que a partir da segunda, e não por acaso pouco interpretada, estrofe anda às cabeçadas com a melodia (“Desfralda a inviiiiiiicta bandeeeeeira”). A bazófia guerreira foi, com típica originalidade, roubada ao “Aux armes, citoyens” de A Marselhesa, que também emprestou o estilo do título. Para desenjoar das influências, A Portuguesa plagiou generosos pedaços musicais do antigo Hino da Carta, em vigor na monarquia e de que uns 20% da letra é a palavra “Constituição”.

E depois há os versos: “Brade a Europa à terra inteira:/Portugal não pereceu!”, raro momento em que um cântico de exaltação patriótica refere, se bem que para o desmentir, o óbito da própria pátria, “imortal” que fosse. Aliás, o “Levantai hoje de novo” reforça a ideia de que o protagonista do hino é um moribundo que apresentou melhoras, e não uma potência mundial. É quase surpreendente que nos sexto e sétimo versos de uma imaginária quarta estrofe não haja o “Ventilador desligado!/Já respira sozinho, obrigado!”.

Em geral, os hinos nacionais tendem para o foleiro. O nosso nasceu por reacção ao Ultimato dos ingleses, que nestas matérias não têm mais sorte. God Save the King (ou “Queen”, pois num assomo de vanguarda a cantiga é adaptável ao “género”) é uma prece a Deus para abençoar o soberano de um povo que pelos vistos depende pouco de si e do soberano e depende imenso da vontade divina (“Ó Senhor, disperse os inimigos [do rei]/E faça com que caiam/Confunda a sua política/Contrarie os seus truques velhacos”). “Truques velhacos”? Valha-lhes Deus, de facto: antes as “brumas da memória”. Não admira que o autor de God Save the King seja anónimo.

A única vantagem do hino britânico é o tamanho: é breve e passa depressa. A brevidade não é uma virtude do hino francês, que se estica muito para lá dos limites das sevícias. São sete estrofes de fúria xenófoba, curiosamente compostas a poucos meses de o Terror revolucionário desatar a decapitar franceses, perdão, inimigos do povo (para o fim, decapitou os amigos). Em abono desse manifesto de ódio cego, a melodia do refrão não é desengraçada.

À semelhança de Portugal, as demais colónias culturais francesas padecem de hinos intermináveis. O do Brasil estende-se tanto quanto a mítica Covid longa, com a atenuante de o arranjo habitual ir em cavalgada a ver se despacha aquilo. Pelo meio, contorce-se no divertido simbolismo da época: há para ali “fúlgidos”, “fulguras”, “flâmulas”, “florões” e ainda estamos no “f”. No “l”, há “lábaros”. No “v”, há “vívido”, que não rima com “límpido”, nem “símbolo” rima com “flâmula”. Numa versão anterior, o desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, que estudou em Coimbra e devia julgar-se sueco, agradecia assim a hospitalidade dos portugueses: “Homens bárbaros, gerados/De sangue Judaico e Mouro/Desenganai-vos: a Pátria/Já não é vosso tesouro”. De brinde, chamou-nos “monstros”.

Dos hinos que conheço, as excepções ao estilo ressabiado são, se calhar naturalmente, as que escapam ao embaraço. Gosto do hino israelita, curtinho e devotado à “terra” e à “esperança”, a Hatikva do título. Gosto do hino canadiano, O Canada, repleto de paisagens e que infelizmente partilha o estatuto oficial com o “God Save the…”. E gosto do hino americano, música e empolada letra, que por azar saiu longo e, nos versos finais de cada estrofe, impossível de cantar sem guinchos. O melhor hino não é um hino, a não ser informal: God Bless America, do grande Irving Berlin, mostra a diferença entre um criador de génio e uns amadores esforçados. É uma canção sucinta, clara, intemporal, perfeitinha. Tudo o que A Portuguesa não é.

Por mim, repito, mudávamos de cantilena. Porém, há que conter entusiasmos e evitar encomendar uma nova ao sr. d’Santiago. Espreitei a veia lírica do homem e apareceu-me o seguinte: “Querias uma utopia onde podias ser poesia/Mas nós estamos preocupados com as tuas estrias e celulite”; “Em todas as culturas/Quem ainda sofre bué/São as pessoas mais escuras”; “Meu povo vem da lama como Dalai/E fez todo o meu drama virar minha light/Mundo é minha Alfama, tou no meu bairro” e por aqui fora até ao suplício. Para isto, prefiro manter canhões e as armas.

Contas feitas, dado o excesso de d’Santiagos e a falta de um Irving Berlin, podíamos jogar pelo seguro e inspirarmo-nos na Espanha. Mau vento e péssimo casamento, mas um hino impecável. Pelo menos a letra.

POLITICAMENTE CORRETO    SOCIEDADE    MÚSICA    CULTURA

II - Não me toques que me desafinas

Para além da desdramatização lúdica, o facto: como republicana, este hino, para mim, tem significado. Por junto com a bandeira que, concedo, não é de grande beleza mas é a minha.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 13 jan. 2023, 00:1636

Dino D´Santiago — não o conheço mas parece-me uma pessoa afável, simpática –, veio propor a mudança do nosso hino. Porque o hino é «bélico, incentiva à guerra» e o cantor discorda da transmissão desses valores aos filhos e às gerações futuras.

Devo dizer, antes de continuar o texto, que a minha posição em relação ao radicalismo e puritanismo woke é clara, inequívoca e já aqui, no Observador, a manifestei. E mesmo muito antes, em 2013, quando escrevi Camas Politicamente Incorrectas da Sexualidade Contemporânea, como em crónicas posteriormente publicadas.

No Observador encontrei o debate regular de temas propostos pela agenda woke que não vejo suficientemente discutidos noutros media, com a salvaguarda da história, como o faz João Pedro Marques, ou com a especialização de Patrícia Fernandes, ou num sentido mais amplo, com a qualidade da análise, e muitas vezes o humor, de Paulo Tunhas, autores de quem sou assídua leitora.

Devo dizer também que não conheço qualquer outra posição política e cultural de Dino D´Santiago, por isso não sei se, ou quanto, da agenda woke defende. Na verdade, associei este assunto às surpreendentes manifestações e concessões de Álvaro Beleza àquela agenda a propósito do Padrão dos Descobrimentos. E não recuso a possibilidade do meu enviesamento.

Dino D´Santiago propôs uma discussão à qual adiro. Não é uma proposta nova nem uma discussão nova. Vale a pena consultar os arquivos da RTP e ouvir no Caso do Dia, a proposta de Alçada Baptista, aliás com o mesmo argumento de Dino D´Santiago, e o comentário daqueles que fazem parte da nossa história política e cultural, para além do próprio Alçada Baptista, Jorge Sampaio, Jorge Rosas, entre outros.

O nosso hino não é o mais bonito do mundo. E as letras mudam-se — já substituímos «bretões» por «canhões»; já deixámos cair duas estrofes de A Portuguesa. E não me oporia a uma renovação do hino ou da bandeira, caso se justificasse, e nas novas produções se congregasse o sentimento popular que estes com mais de cem anos de existência convocaram quando surgiram. Mas nunca para reescrevermos a história. Muito menos como acto penitencial. A anulação retroactiva é um mecanismo de defesa desadequado para tratarmos o nosso passado colectivo. De igual forma, a expiação a que o acto penitencial convida.

O nosso hino, A Portuguesa, uma marcha construída em simetria com A Marselhesa, surgiu como resposta ao ultimato inglês — na sequência do Mapa Cor-de-Rosa onde se ilustrava a pretensão portuguesa de unir Angola a Moçambique e por isso se marchava contra os «bretões», actualizados em posteriores «canhões».

Com os brios nacionalistas pelas ruas da amargura, isto é, humilhados pelos ingleses, e em discordância com as cedências de Dom Carlos I, que fazer?

A reparação surgiria sob a égide de Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça, autores, respectivamente, da música e letra de A Portuguesa. De marcha de vocação patriótica, rapidamente popularizada, a hino republicano foi um ai. Em 1891, os revolucionários republicanos tê-la-ão entoado no falhado Golpe do Porto, com o patrocínio da banda de Infantaria 18 que os acompanharia, o que conduziu à sua proibição. Inútil proibição. A marcha estava difundida.

A 5 de Outubro esta marcha fez-se ouvir repetidamente pela Avenida da Liberdade abaixo. Após a implantação da República em 1910, A Portuguesa foi adoptada como hino nacional em 1911, logo na primeira sessão da Constituinte.

Mas afinal o que tem o hino de perverso? Como país com as fronteiras desde muito cedo definidas e com uma identidade consolidada por séculos, não somos muito permeáveis a nacionalismos. Estamos confortavelmente sentados na nossa portugalidade até na diáspora. Para o bem e para o mal. O nacionalismo, portanto, não será a perversidade.

Então qual é o problema do hino? Sermos «heróis do mar»? Na verdade, não o fomos? Atravessar o mar desconhecido numa casca de nós é tão duro como atravessar o céu numa cápsula como o fizeram os astronautas nos anos 60. A coragem é uma virtude. Todo o conhecimento que decorreu daquele período da nossa história transcende largamente qualquer revisionismo colonialista e esclavagista que se lhe impregne, da ciência náutica à astronomia; de João de Barros à cartografia com passagem por Camões e pela culinária, ou pelo famoso chá das cinco que não se serve depois das quatro e foi para Inglaterra no dote de Catarina depois de viajar o mundo. Ao «nobre povo» acredito que ninguém objecte: somos criaturas aspiracionais, podemos, devemos ser melhores, a nobreza de actos passados deve ser um referente futuro tanto quanto os erros são adversativos. «Nação valente» é um facto: entalados entre o mar e Espanha temos resistido a tudo, até às nossas piores decisões políticas ou piores governações. «Imortal», bem, parece-me um saudável exagero, mas já cá andamos desde 1143. «Levantar o esplendor de Portugal» é desejável sempre como hoje, nesta decadência em que vivemos, com o nosso PIB, salário médio, condições de vida e classe governante. Ou melhor, é necessário. As «brumas da memória que nos trazem a voz dos nossos egrégios avós», oferecem-nos uma ideia de continuidade. De um pequeno condado às fronteiras de hoje que se estendem para lá dos Pirenéus com assento em Bruxelas. Se nos «levará ou não à vitória», não sei, mas a esperança é um bom condutor. «Às armas» será literalmente bélico, o que in extremis não é mau: quando ameaçados com a aniquilação devemos combater. Mas é também um incitamento a lutar por aquilo em que se acredita seja em que cenário for, «terra ou mar», contra o que for, «bretões ou canhões», ou qualquer outra coisa, em nome daquilo em que se acredita. Fico-me por aqui, a segunda parte do hino, ninguém canta.

Para além da desdramatização lúdica, o facto: como republicana, este hino, para mim, tem significado. Por junto com a bandeira que, concedo, não é de grande beleza mas é a minha. Estes símbolos, como outros, fazem parte da nossa história que não é um monólito, é um movimento de pessoas, territórios e pensamento que nenhuma fronteira contém.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

POLÍTICA    POLITICAMENTE CORRECTO    SOCIEDADE

 

 

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