Do fino Tino, a respeito da alteração da letra do Hino, pois não me esqueço de que a escutei a António Vitorino, também de Almeida, já depois de cá estar, chegada do Ultramar, desfeitas as ilusões por conta das muitas traições, seguidas das sofreguidões que não mais pararam desde que se iniciaram, e cujo cinquentenário não tarda que festejemos, talvez destruindo o Hino, por proposta do digno Tino, que é o que está a dar, nestes tempos de auto-destruição, por conta da pretensão de se pedir perdão do tanto que fizemos em prol do alargamento terrenal que iniciámos com suficiente valor, verdadeiros "heróis do mar". O resto, vem bem descrito, com sabedoria e graça por Alberto Gonçalves, no seu estudo certeiro, mas aceito melhor a visão discreta e sentida de Eugénia de Vasconcellos, seja o patriotismo o que for. Todavia, por isso também, desprezo a submissão à tal proposta do refazer do Hino, pelo ressabiado Tino, cuja discussão esta esta aceita, talvez para se impor, assim o desejo, contra a matreirice de um defensor apenas das teorias de um woke de puro exibicionismo pedante dos seus apologistas em moda.
O hino e o Dino
Dado o excesso de d’Santiagos e a
falta de um Irving Berlin, podíamos jogar pelo seguro e inspirarmo-nos na
Espanha. Mau vento e péssimo casamento, mas um hino impecável. Pelo menos a
letra.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 14
jan. 2023, 00:215
Dino d’Santiago, cançonetista que
descobri quando se filmou a discutir com um chofer de praça, pede um hino
nacional “menos bélico, que incentive menos às guerras”. É engraçado o sr. d’Santiago ter formulado o pedido
perante uma audiência que incluía personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa,
António Guterres e Francisco Pinto Balsemão, garantias suficientes de que a
rendição seria a atitude de Portugal em qualquer guerra, mesmo aquelas em que
nem sequer entrasse. Além disso, o sr. d’Santiago frequenta com agrado a Festa
do “Avante!” e, pelas alusões à Rússia, aprecia o tipo de pacifismo que os
comunistas adoptaram durante o pacto Molotov–Ribbentrop.
Tais
pormenores não me impedem de concordar em parte com o sr. d’Santiago: A
Portuguesa é uma tristeza. A ressalva prende-se com o facto de não ser só
o belicismo a incomodar-me, e sim o gongorismo tosco da coisa, com “egrégios”,
“jucundos” e uma métrica que a partir da segunda, e não por acaso pouco
interpretada, estrofe anda às cabeçadas com a melodia (“Desfralda a
inviiiiiiicta bandeeeeeira”). A bazófia guerreira foi, com típica
originalidade, roubada ao “Aux armes, citoyens” de A Marselhesa, que
também emprestou o estilo do título. Para desenjoar das influências, A
Portuguesa plagiou generosos pedaços musicais do antigo Hino da Carta,
em vigor na monarquia e de que uns 20% da letra é a palavra “Constituição”.
E
depois há os versos: “Brade a Europa à terra inteira:/Portugal não pereceu!”,
raro momento em que um cântico de exaltação patriótica refere, se bem que para
o desmentir, o óbito da própria pátria, “imortal” que fosse. Aliás, o “Levantai
hoje de novo” reforça a ideia de que o protagonista do hino é um moribundo que
apresentou melhoras, e não uma potência mundial. É quase surpreendente que nos
sexto e sétimo versos de uma imaginária quarta estrofe não haja o “Ventilador
desligado!/Já respira sozinho, obrigado!”.
Em
geral, os hinos nacionais tendem para o foleiro. O nosso nasceu por reacção ao
Ultimato dos ingleses, que nestas matérias não têm mais sorte. God Save
the King (ou “Queen”, pois num assomo de vanguarda a cantiga é adaptável ao
“género”) é uma prece a Deus para abençoar o soberano de um povo que pelos
vistos depende pouco de si e do soberano e depende imenso da vontade divina (“Ó
Senhor, disperse os inimigos [do rei]/E faça com que caiam/Confunda a sua
política/Contrarie os seus truques velhacos”). “Truques velhacos”? Valha-lhes
Deus, de facto: antes as “brumas da memória”. Não admira que o autor de God
Save the King seja anónimo.
A
única vantagem do hino britânico é o tamanho: é breve e passa depressa. A
brevidade não é uma virtude do hino francês, que se estica muito para lá dos
limites das sevícias. São sete estrofes de fúria xenófoba, curiosamente
compostas a poucos meses de o Terror revolucionário desatar a decapitar
franceses, perdão, inimigos do povo (para o fim, decapitou os amigos). Em abono
desse manifesto de ódio cego, a melodia do refrão não é desengraçada.
À
semelhança de Portugal, as demais colónias culturais francesas padecem de hinos
intermináveis. O do Brasil estende-se tanto quanto a mítica Covid longa, com a
atenuante de o arranjo habitual ir em cavalgada a ver se despacha aquilo. Pelo
meio, contorce-se no divertido simbolismo da época: há para ali “fúlgidos”,
“fulguras”, “flâmulas”, “florões” e ainda estamos no “f”. No “l”, há “lábaros”.
No “v”, há “vívido”, que não rima com “límpido”, nem “símbolo” rima com
“flâmula”. Numa versão anterior, o desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e
Silva, que estudou em Coimbra e devia julgar-se sueco, agradecia assim a
hospitalidade dos portugueses: “Homens bárbaros, gerados/De sangue Judaico e
Mouro/Desenganai-vos: a Pátria/Já não é vosso tesouro”. De brinde, chamou-nos
“monstros”.
Dos
hinos que conheço, as excepções ao estilo ressabiado são, se calhar
naturalmente, as que escapam ao embaraço. Gosto do hino israelita, curtinho e
devotado à “terra” e à “esperança”, a Hatikva do título. Gosto do
hino canadiano, O Canada, repleto de paisagens e que infelizmente partilha
o estatuto oficial com o “God Save the…”. E gosto do hino americano, música e
empolada letra, que por azar saiu longo e, nos versos finais de cada estrofe,
impossível de cantar sem guinchos. O melhor hino não é um hino, a não ser
informal: God Bless America, do grande Irving Berlin, mostra a diferença
entre um criador de génio e uns amadores esforçados. É uma canção sucinta,
clara, intemporal, perfeitinha. Tudo o que A Portuguesa não é.
Por
mim, repito, mudávamos de cantilena. Porém, há que conter entusiasmos e evitar
encomendar uma nova ao sr. d’Santiago. Espreitei a veia lírica do homem e
apareceu-me o seguinte: “Querias uma utopia onde podias ser poesia/Mas nós
estamos preocupados com as tuas estrias e celulite”; “Em todas as culturas/Quem
ainda sofre bué/São as pessoas mais escuras”; “Meu povo vem da lama como
Dalai/E fez todo o meu drama virar minha light/Mundo é minha Alfama, tou no meu
bairro” e por aqui fora até ao suplício. Para isto, prefiro manter canhões e as
armas.
Contas
feitas, dado o excesso de d’Santiagos e a falta de um Irving Berlin, podíamos
jogar pelo seguro e inspirarmo-nos na Espanha. Mau vento e péssimo casamento,
mas um hino impecável. Pelo menos a letra.
POLITICAMENTE CORRETO SOCIEDADE MÚSICA CULTURA
II - Não me toques que me desafinas
Para além da desdramatização lúdica, o
facto: como republicana, este hino, para mim, tem significado. Por junto com a
bandeira que, concedo, não é de grande beleza mas é a minha.
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 13
jan. 2023, 00:1636
Dino D´Santiago — não o conheço mas
parece-me uma pessoa afável, simpática –, veio propor a mudança do nosso hino.
Porque o hino é «bélico, incentiva à guerra» e o cantor discorda da transmissão
desses valores aos filhos e às gerações futuras.
Devo dizer, antes de continuar o texto,
que a minha posição em relação ao radicalismo e
puritanismo woke é clara, inequívoca e já aqui, no
Observador, a manifestei.
E mesmo muito antes, em 2013, quando escrevi Camas Politicamente
Incorrectas da Sexualidade Contemporânea, como em crónicas posteriormente
publicadas.
No Observador encontrei o debate regular
de temas propostos pela agenda woke que não vejo suficientemente
discutidos noutros media, com a salvaguarda da história, como o faz João Pedro Marques, ou com
a especialização de Patrícia
Fernandes, ou num sentido mais amplo, com a qualidade da análise, e
muitas vezes o humor, de Paulo Tunhas,
autores de quem sou assídua leitora.
Devo dizer também que não conheço
qualquer outra posição política e cultural de Dino D´Santiago, por isso não sei
se, ou quanto, da agenda woke defende. Na verdade, associei este
assunto às surpreendentes manifestações e concessões de Álvaro Beleza àquela
agenda a propósito do Padrão dos Descobrimentos. E não recuso a possibilidade
do meu enviesamento.
Dino D´Santiago propôs uma discussão à
qual adiro. Não é uma proposta nova nem uma discussão nova. Vale a pena
consultar os arquivos da RTP e ouvir no Caso do Dia, a proposta de Alçada
Baptista, aliás com o mesmo argumento de Dino D´Santiago, e o
comentário daqueles que fazem parte da nossa história política e cultural, para
além do próprio Alçada Baptista, Jorge Sampaio, Jorge Rosas, entre outros.
O nosso hino não é o mais bonito do
mundo. E as letras mudam-se — já substituímos «bretões» por «canhões»; já
deixámos cair duas estrofes de A Portuguesa. E não me oporia a uma
renovação do hino ou da bandeira, caso se justificasse, e nas novas produções
se congregasse o sentimento popular que estes com mais de cem anos de
existência convocaram quando surgiram. Mas nunca para reescrevermos a história.
Muito menos como acto penitencial. A anulação retroactiva é um mecanismo de
defesa desadequado para tratarmos o nosso passado colectivo. De igual forma, a
expiação a que o acto penitencial convida.
O nosso hino, A Portuguesa, uma marcha
construída em simetria com A Marselhesa, surgiu como resposta ao ultimato
inglês — na sequência do Mapa Cor-de-Rosa onde se ilustrava a pretensão
portuguesa de unir Angola a Moçambique e por isso se marchava contra os
«bretões», actualizados em posteriores «canhões».
Com os brios nacionalistas pelas ruas da
amargura, isto é, humilhados pelos ingleses, e em discordância com as cedências
de Dom Carlos I, que fazer?
A reparação surgiria sob a égide de
Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça, autores, respectivamente, da música
e letra de A Portuguesa. De marcha de vocação patriótica, rapidamente
popularizada, a hino republicano foi um ai. Em 1891, os revolucionários
republicanos tê-la-ão entoado no falhado Golpe do Porto, com o patrocínio da
banda de Infantaria 18 que os acompanharia, o que conduziu à sua proibição.
Inútil proibição. A marcha estava difundida.
A 5 de Outubro esta marcha fez-se ouvir
repetidamente pela Avenida da Liberdade abaixo. Após a implantação da República
em 1910, A Portuguesa foi adoptada como hino nacional em 1911, logo
na primeira sessão da Constituinte.
Mas afinal o que tem o hino de perverso? Como país
com as fronteiras desde muito cedo definidas e com uma identidade consolidada
por séculos, não somos muito permeáveis a nacionalismos. Estamos
confortavelmente sentados na nossa portugalidade até na diáspora. Para o bem e
para o mal. O nacionalismo, portanto, não será a perversidade.
Então qual é o problema do hino? Sermos «heróis do mar»? Na verdade,
não o fomos? Atravessar o mar desconhecido numa casca de nós é tão duro como
atravessar o céu numa cápsula como o fizeram os astronautas nos anos 60. A
coragem é uma virtude. Todo o conhecimento que decorreu daquele período da
nossa história transcende largamente qualquer revisionismo colonialista e
esclavagista que se lhe impregne, da ciência náutica à astronomia; de João de
Barros à cartografia com passagem por Camões e pela culinária, ou pelo famoso
chá das cinco que não se serve depois das quatro e foi para Inglaterra no dote
de Catarina depois de viajar o mundo. Ao «nobre povo» acredito que ninguém
objecte: somos criaturas aspiracionais, podemos, devemos ser melhores, a
nobreza de actos passados deve ser um referente futuro tanto quanto os erros
são adversativos. «Nação valente» é um facto: entalados entre o mar e Espanha
temos resistido a tudo, até às nossas piores decisões políticas ou piores
governações. «Imortal», bem, parece-me um saudável exagero, mas já cá andamos
desde 1143. «Levantar o esplendor de Portugal» é desejável sempre como hoje,
nesta decadência em que vivemos, com o nosso PIB, salário médio, condições de
vida e classe governante. Ou melhor, é necessário. As «brumas da memória que
nos trazem a voz dos nossos egrégios avós», oferecem-nos uma ideia de
continuidade. De um pequeno condado às fronteiras de hoje que se estendem para
lá dos Pirenéus com assento em Bruxelas. Se nos «levará ou não à vitória», não
sei, mas a esperança é um bom condutor. «Às armas» será literalmente bélico, o
que in extremis não é mau: quando ameaçados com a aniquilação devemos
combater. Mas é também um incitamento a lutar por aquilo em que se acredita
seja em que cenário for, «terra ou mar», contra o que for, «bretões ou
canhões», ou qualquer outra coisa, em nome daquilo em que se acredita. Fico-me
por aqui, a segunda parte do hino, ninguém canta.
Para
além da desdramatização lúdica, o facto: como republicana, este hino, para mim,
tem significado. Por junto com a bandeira que, concedo, não é de grande beleza
mas é a minha. Estes símbolos, como outros, fazem parte da nossa história que
não é um monólito, é um movimento de pessoas, territórios e pensamento que
nenhuma fronteira contém.
A autora escreve segundo a antiga
ortografia
POLÍTICA POLITICAMENTE
CORRECTO SOCIEDADE
Nenhum comentário:
Postar um comentário