Sobe, lento, soa, cheio. Guincha em seus suaves rodados. Sobe, lento até ao meio cruza-se, chega ao outro lado. Une a cidade baixa pelo esforço, até à alta. É a glória a subir: segue, cheio, velho, cansado. Não esmorece um segundo, trepa, lento; é ousado. Sobe e sabe que, do outro lado, espera tempo de real descanso. Quando desce até à foz, bem mais leve, chova ou não, segue, lento, chama, chia, reencontra o seu irmão, cumprimenta, passa, desce, traz estampada a solidão, continua em seu rodado. Pára, ronceiro, de supetão.
Há vários tipos de fitas...
Poema da Paula
Há vários tipos de fitas pela estrada fora... Estas são para nós as mais gratas, as mais amplas, as mais vastas, que te e nos soltam para o que há-de vir... Em sobressaltos? Na vida o que importa é partir. A viagem é p’ra curtir e nós queremos, «minha Caaanta», que a faças com um sorriso azul e rosa. Em verso ou prosa Tanto faz! Enche um manto de amor e encanto e voa... (Mas não à toa!) Que o que nos apraz, afinal, é que consigas a magia de um lugar sem par no porvir.
Queima das fitas da Canta
CAOS DENTRO DE MIM
Espaço aberto, solidão, é a cidade que vibra noite dentro, adormecida. Espaço aberto, podridão, a náusea que abre uma ferida. Nem sei as horas que são. O tempo passa e, do chão, ergue-se o odor da vida.
Espaço aberto, imensidão, céu ou mar, o que importa? Cerco de ambição desmedida. Há uma mente poluída. Almas vêm, almas vão, porque não te vejo ainda?
Espaço aberto, maldição! Dentro de mim tu existes, teus lábios acaricio, beijo-te, louco de frio, abraço teu corpo vazio, pois moras em meu pensamento. Mas porque não me contento com o meu espírito vadio?
Espaço aberto, saudação, à aurora que se aproxima. Abre as portas à esperança que uns protege, outros vitima. Espaço aberto, separação, almas vêm, outras vão. É a cidade que dorme, Acorda, inquieta, em ebulição.
Ricardo Lacerda Lumiar, 28 de Maio de 2008
Vinte Anos
(Para a expressiva voz da Ilda)
Ai quem me dera Ter outra vez vinte anos! Ai como eu era Como te amei, Santo Deus! Meus olhos Pareciam dois franciscanos À espera Do céu que vinha dos teus.
Beijos que eu dava Ai como quem morde rosas! Como te esperava Na vida que então vivi! Podiam Acabar-se os horizontes Podiam secar as fontes Mas não vivia sem ti.
Ai como é triste De o dizer não me envergonho Saber que existe Um ser tão mau tão ruim Tu eras O ombro para os meus sonhos Traíste O melhor que havia em mim.
Ai como o tempo Pôs neve nos teus cabelos! Ai como o tempo As nossas vidas desfez! Quem dera Ter outra vez desenganos Ter outra vez vinte anos Para te amar outra vez!
Quem dera Ter outra vez desenganos Ter outra vez vinte anos Para te amar outra vez!
Recordação dos anos 40: MARCHAS DE LOURENÇO MARQUES (Com falhas)
Marcha da Malhangalene(1º prémio)
(Cantada por Julieta Palhares)
1ª Estrofe
Malhangalene bonita
De graça humilde e modesta
Com teu vestido de chita
Também hás-de entrar na festa.
Se querem saber quem és,
Podes dizer sem vaidade
Que és o bairro mais bairrista
Que és o bairro mais bairrista
Que existe cá na cidade.
Refrão
Esta marcha vai
Na rua a passar
Na Malhangalene
Toda a gente sai
P’r’à ouvir cantar
Vamos, rapariga,
Que a tua cantiga
É que vai ganhar.
Toda a gente a canta
E a todos encanta
Porque é popular.
2ª Estrofe
Tanto na rua de baixo
Como na rua de cima
Toda a gente se conhece
E toda a gente se estima
E se alguém te quiser mal
Não tens nada que temer
Tens cá a Rua da Guarda
Tens cá a Rua da Guarda
Que te há-de defender.
Refrão
Esta marcha vai...
Marcha do Alto Maé
(2º prémio)
1ª Estrofe
...
Refrão
Alto Maé
É bairro da simpatia
Canta sempre noite e dia
Como aqui não há igual.
Alto Maé
Vive ali toda a nobreza
Da tradição portuguesa
Cá da nossa capital
2ª Estrofe
É lá que vive o operário
Com a sua ganga honrada
É a sua namorada
Riqueza do seu sacrário
É gente duma só fé
É bairro como nenhum
Pois são todos só por um
Neste nosso AltoMaé.
Refrão
Alto Maé...
Marcha da Baixa(3º Prémio)
(Cantada por Raquel Augusto)
1ª Estrofe
...
Refrão
Minha Baixa, tu és tão linda
Não sou eu, a cidade é que o diz
E vocês podem crer
Que merece bem ser
A princesa do nosso país.
2ª Estrofe
Vai a passar um bando de caixeirinhas
Que põem tontos os corações
Lá vão pousar como um bando de andorinhas
Na fantasia dos seus balcões
E ninguém mais tem sorrisos tão brejeiros
Como os sorrisos que elas têm
Olhos ideais, fulminantes, feiticeiros,
Que fazem prisioneiros
Sem molestar ninguém.
Refrão
Minha Baixa, tu és tão linda...
Marcha da Maxaquene
1ª Estrofe
...
Refrão
Maxaquene
Com as lindas avenidas
Cheias de acácias floridas
Parece um jardim em flor,
Maxaquene
Tens a mansão do Colono
Toda ela parece um trono
De mimo, vida e amor.
2ª Estrofe
Moçambique quis um dia
Com amor, com gratidão,
Dar aos bons velhos colonos
Uma pequena mansão.
E correu toda a cidade
P’ra do meu bairro, afinal,
Fazer um lindo canteiro
Dessa mansão ideal.
Refrão
Maxaquene..
Marcha da Polana
1ª Estrofe
...
Refrão
Polana, Polana,
Princesa encantada
De areia dourada
De prata a luzir
Polana, Polana,
Tens a lua e o sol
No teu caracol
Sempre sempre a sorrir.
Lá lá lá lá lá lá
Lá lá lá lá lá lá.
Lá lá lá lá lá lá
Lá lá lá lá lá lá.
2ª Estrofe
Desde a praia ao seu palmar
Muito sonho anda perdido
E o luar comprometido.
Mora ali a claridade
Tem a praia que seduz
Tem banhos de mar e luz
Leva a palma da cidade.
Refrão
Polana, Polana...
Marcha da Carreira de Tiro
1ª Estrofe
Bairro lindo e majestoso
De casas novas e belas
Erguidas no céu vaidoso
Quase beijando as estrelas
Tem tal beleza
Que embriaga o coração
Tem a alma portuguesa
Vinda na expedição.
Refrão
Carreira de Tiro
Parece um jardim
Desperta cedinho
Ao som do clarim.
Meu bairro adorado
Que não tem rival
És tão invejado
És tão invejado
Como é Portugal.
2ª Estrofe
Quando o sol lá no poente
Diz adeus a esta cidade,
O meu bairro reluzente
Fica cheio de saudade.
Então a lua
Vem dar-lhe um beijo de amor
E o bairro lindo flutua
Num poema encantador.
Refrão
Carreira de Tiro...
Marcha de S. José de Lhanguene
1ª Estrofe
Mesmo no fim da cidade
Passado o Alto Maé
O bairro da cristandade,
O bairro de S. José.
Tudo lá é cativante
Nada tem um ar solene
Não há bairro que suplante
O S. José de Lhanguene.
Refrão
Ó Bairro de S. José,
Ó bairro do meu encanto,
Tens um ar santificado.
No teu nome tenho fé
Tu és o bairro dum santo
S. José abençoado.
La lá lá lá
Lá lá rá lá lá.
La lá lá lá
Lá lá lá lá lá lá lá.
2ª Estrofe
....
Refrão
Ó Bairro
quarta-feira, 4 de janeiro de 2023
Casus belli
O hábito cria o monge, ao contrário do que
diz o provérbio: parecemos todos monges, nos nossos hábitos de constância, nas
circunstâncias dos padrões colhidos - repetitivos, com amigos ou conhecidos parecidos,
compulsivos, compelidos, na mesma cartilha lidos… e afinal aprovados pelos da missão
probatória, sempre amável…
Um caso singular
Singular país em que, excluindo a
legitimidade formal, já não há materialmente Governo, o presidente sofre de
verborreia, a oposição está encerrada para obras e onde se chama a tudo isto
estabilidade.
NUNO GONÇALO POÇAS, Colunista do Observador. Advogado, autor de
"Presos Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril"
OBSERVADOR, 03
jan. 2023, 00:1520
É claro que me incomoda o valor da
indemnização paga a Alexandra Reis.Como
perturba a forma despudorada como foi combinada a sua saída da TAP e a nomeação
para a NAV.Ou a distinta lata que teve ao aceitar o não menos descarado
convite que Fernando Medina lhe fez para a secretaria de Estado do Tesouro
quando no Terreiro do Paço se sabia de tudo o que se tinha passado (sim,
bem sei, o ministro das Finanças diz que não sabia, temos todos o pavoroso dever
de acreditar nele, mas cá em casa também se sofre de “fernandomedinite”: as
minhas filhas também nunca sabem de nada e nunca partem nada, as coisas
simplesmente «partem-se»; portanto, digamos que conheço mais ou menos a
fórmula: elas dizem-me que não sabem quem foi, eu zango-me, umas vezes,
finjo que acredito, noutras, e no fim quem paga o gasto é o pai e a mãe).
Toda
esta novela é, de facto, sinistra e de um ou vários descaramentos que desarmam
até o mais acérrimo dos fiéis seguidores do poder. Mas a
única coisa efectivamente pornográfica no caso de Alexandra Reis é o valor da
indemnização que recebeu para sair da TAP.
Tirando isso, nada na sua história é particularmente singelo: é o
costume. Com a única diferença de
que foi o dinheiro envolvido que lhe deu o destaque devido. Não estivéssemos a
discutir uma mala de notas e estávamos todos a fingir que não existe o que
todos sabemos que existe: empresas públicas, institutos, fundações,
observatórios, direcções-gerais, administrações hospitalares, centros de
segurança social, centros de emprego, enfim, uma lista imensa de organismos
cuja necessidade nem sequer discuto, mas que servem essencialmente para o
situacionismo empregar as suas lapas e as suas amizades, normalmente em condições
laborais que dificilmente encontrariam noutro lado, e, noutros casos ainda,
para usufruírem do subsídio, do apoio, do patrocínio ou da avença, só possível
com elites em estado de priapismo com o Estado. Arrisco, até, que se cada caso
destes fosse tratado mediaticamente e com o escrutínio de uma opinião pública
verdadeiramente livre, todas as semanas caía um membro do Governo.
O caso de Alexandra Reis não é mais
do que o retrato fiel da situação e de um certo estado a que chegámos e de que
nunca saímos, com rigor. Há sempre, nestes enredos, um novelo em que, aos
poucos, vão surgindo amigos, primos, irmãos, compadres, o diabo a quatro,
sempre relatados como casos singulares, em que a amizade, o laço familiar ou o
simples pagamento de favor são tratados como meras coincidências – e muitas
vezes sê-lo-ão, não duvido, mas que são sobretudo possíveis porque o país é
estruturalmente endogâmico e as elites circulam em ambiente fechado.
(Não
sei se Alexandra Reis, coitada, nem precisava disto para nada, se até tinha
todas as condições para ser um grande quadro da aviação internacional, e assim
sucessivamente. Não faço ideia das suas capacidades e competências. Mas a uma
coisa já me habituei: não há um oportunista, um trampolineiro, um
lambe-botas qualquer, que, uma vez evidenciada a sua trapaça ou a sua
moscambilha, não tenha direito a um coro de vozes enunciando as suas qualidades.
Nesta terra não há um único imbecil que, tendo as relações certas dentro da
cloaca que Lisboa é, não acabe tratado pelos seus pares como um portento.)
Certo
é, e ninguém parece apto a contrariar tal facto, que se Alexandra Reis se
tivesse mantido na administração da NAV e nunca tivesse chegado ao Governo,
ainda por lá continuaria, apreciada por todos os que, de alguma forma, circulam
nesta esfera intermédia da sociedade portuguesa que vive fora dos holofotes e
dentro das redes de favores e bons ordenados à conta do Estado. Acabaram todos traídos por terem perdido a
vergonha por completo. E o Governo acabou graças a uma arlequinada destas,
evitável se ainda por ali houvesse um mínimo de pudor.
Por
outro lado, o singular caso de Alexandra Reis ofereceu também ao país sentado
novos actos da tragédia marcelista. Na noite da consoada, o presidente da
República falou do caso de Alexandra Reis para dizer que não o ia comentar. Na
tarde do dia de Natal, voltou a falar do assunto para introduzir um tema que
nunca esteve em causa, tranquilizando a pátria ao dizer que não se estava ali
perante um caso de incompatibilidade (?). À noitinha, Marcelo voltava à carga,
sugerindo que podia haver quem pensasse que era bonito a secretária de Estado
abdicar da indemnização. No dia
seguinte, a 26 de Dezembro, pedia esclarecimentos sobre a indemnização, que
seriam importantes para todos. Chegamos ao Ano Novo e Marcelo Rebelo de Sousa
parece outro, deixou avisos ao Governo, enfim, fez o seu papel, por uma vez,
depois de uma incontinência verbal mais uma vez inexplicável.
E
cumpriu, ainda, o seu papel quando resolveu sossegar os mais ansiosos que
começaram a exigir a demissão do Governo ou a dissolução do Parlamento,
explicando que, ainda que o fizesse, não há alternativa a isto. E Luís
Montenegro deu-lhe razão. O presidente do maior partido da oposição, ou pelo
menos assim chamado, escreveu um tweet anunciando que o PSD vai
«continuar a construir a alternativa», como quem diz que ela própria, a
alternativa, não existe.
Eis, então, que o singular caso de Alexandra Reis revela um também
singular país, em que, excluindo a legitimidade formal, já não há materialmente
Governo, o presidente sofre de verborreia que flutua ao sabor dos telejornais,
a oposição está encerrada para obras e onde se chama a tudo isto
«estabilidade».
Fernando Cascais:Medina não
conhecia Alexandra Reis, ou se a conhecia, conhecia-a muito mal. O convite para
Secretária do Tesouro surgiu por um acaso. Tudo se passou numa tarde amena de
outono na casa de Medina, quando a mulher deste convidou umas amigas para um
chá social. Ao chegar a casa Medina depara-se com a tertúlia de gestoras da
administração pública:
Medina: - Olá minhas senhoras, com tanto
bom cérebro reunido a casa fervilha de neurónios por todo o lado. O país
agradece.
As gestoras em uníssono: - Olá Sr.
Ministro, como vão as vagas no ministério?
Medina: - Por acaso vamos fazer uma
remodelação no governo e vou precisar de alguém para secretário do tesouro.
Conhecem alguém?
As gestoras formam um círculo íntimo,
confidenciam, e passados uns minutos a mulher de Medina toma a palavra:
Mulher de Medina: - Medina, temos a
Alexandra Reis que está disponível. Ela conhece bem as pastas da TAP e pode ser
útil para entalares o Pedro quando se der a sucessão. Além disso, tem um
currículo imaculado.
Medina: - Excelente escolha, está feito, mais um
assunto resolvido.
O hábito cria o monge, ao contrário do que diz o provérbio: parecemos todos monges, nos nossos hábitos de constância, nas circunstâncias dos padrões colhidos - repetitivos, com amigos ou conhecidos parecidos, compulsivos, compelidos, na mesma cartilha lidos… e afinal aprovados pelos da missão probatória, sempre amável…
Um caso singular
Singular país em que, excluindo a legitimidade formal, já não há materialmente Governo, o presidente sofre de verborreia, a oposição está encerrada para obras e onde se chama a tudo isto estabilidade.
NUNO GONÇALO POÇAS, Colunista do Observador. Advogado, autor de "Presos Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril"
OBSERVADOR, 03 jan. 2023, 00:1520
É claro que me incomoda o valor da indemnização paga a Alexandra Reis. Como perturba a forma despudorada como foi combinada a sua saída da TAP e a nomeação para a NAV. Ou a distinta lata que teve ao aceitar o não menos descarado convite que Fernando Medina lhe fez para a secretaria de Estado do Tesouro quando no Terreiro do Paço se sabia de tudo o que se tinha passado (sim, bem sei, o ministro das Finanças diz que não sabia, temos todos o pavoroso dever de acreditar nele, mas cá em casa também se sofre de “fernandomedinite”: as minhas filhas também nunca sabem de nada e nunca partem nada, as coisas simplesmente «partem-se»; portanto, digamos que conheço mais ou menos a fórmula: elas dizem-me que não sabem quem foi, eu zango-me, umas vezes, finjo que acredito, noutras, e no fim quem paga o gasto é o pai e a mãe).
Toda esta novela é, de facto, sinistra e de um ou vários descaramentos que desarmam até o mais acérrimo dos fiéis seguidores do poder. Mas a única coisa efectivamente pornográfica no caso de Alexandra Reis é o valor da indemnização que recebeu para sair da TAP. Tirando isso, nada na sua história é particularmente singelo: é o costume. Com a única diferença de que foi o dinheiro envolvido que lhe deu o destaque devido. Não estivéssemos a discutir uma mala de notas e estávamos todos a fingir que não existe o que todos sabemos que existe: empresas públicas, institutos, fundações, observatórios, direcções-gerais, administrações hospitalares, centros de segurança social, centros de emprego, enfim, uma lista imensa de organismos cuja necessidade nem sequer discuto, mas que servem essencialmente para o situacionismo empregar as suas lapas e as suas amizades, normalmente em condições laborais que dificilmente encontrariam noutro lado, e, noutros casos ainda, para usufruírem do subsídio, do apoio, do patrocínio ou da avença, só possível com elites em estado de priapismo com o Estado. Arrisco, até, que se cada caso destes fosse tratado mediaticamente e com o escrutínio de uma opinião pública verdadeiramente livre, todas as semanas caía um membro do Governo.
O caso de Alexandra Reis não é mais do que o retrato fiel da situação e de um certo estado a que chegámos e de que nunca saímos, com rigor. Há sempre, nestes enredos, um novelo em que, aos poucos, vão surgindo amigos, primos, irmãos, compadres, o diabo a quatro, sempre relatados como casos singulares, em que a amizade, o laço familiar ou o simples pagamento de favor são tratados como meras coincidências – e muitas vezes sê-lo-ão, não duvido, mas que são sobretudo possíveis porque o país é estruturalmente endogâmico e as elites circulam em ambiente fechado.
(Não sei se Alexandra Reis, coitada, nem precisava disto para nada, se até tinha todas as condições para ser um grande quadro da aviação internacional, e assim sucessivamente. Não faço ideia das suas capacidades e competências. Mas a uma coisa já me habituei: não há um oportunista, um trampolineiro, um lambe-botas qualquer, que, uma vez evidenciada a sua trapaça ou a sua moscambilha, não tenha direito a um coro de vozes enunciando as suas qualidades. Nesta terra não há um único imbecil que, tendo as relações certas dentro da cloaca que Lisboa é, não acabe tratado pelos seus pares como um portento.)
Certo é, e ninguém parece apto a contrariar tal facto, que se Alexandra Reis se tivesse mantido na administração da NAV e nunca tivesse chegado ao Governo, ainda por lá continuaria, apreciada por todos os que, de alguma forma, circulam nesta esfera intermédia da sociedade portuguesa que vive fora dos holofotes e dentro das redes de favores e bons ordenados à conta do Estado. Acabaram todos traídos por terem perdido a vergonha por completo. E o Governo acabou graças a uma arlequinada destas, evitável se ainda por ali houvesse um mínimo de pudor.
Por outro lado, o singular caso de Alexandra Reis ofereceu também ao país sentado novos actos da tragédia marcelista. Na noite da consoada, o presidente da República falou do caso de Alexandra Reis para dizer que não o ia comentar. Na tarde do dia de Natal, voltou a falar do assunto para introduzir um tema que nunca esteve em causa, tranquilizando a pátria ao dizer que não se estava ali perante um caso de incompatibilidade (?). À noitinha, Marcelo voltava à carga, sugerindo que podia haver quem pensasse que era bonito a secretária de Estado abdicar da indemnização. No dia seguinte, a 26 de Dezembro, pedia esclarecimentos sobre a indemnização, que seriam importantes para todos. Chegamos ao Ano Novo e Marcelo Rebelo de Sousa parece outro, deixou avisos ao Governo, enfim, fez o seu papel, por uma vez, depois de uma incontinência verbal mais uma vez inexplicável.
E cumpriu, ainda, o seu papel quando resolveu sossegar os mais ansiosos que começaram a exigir a demissão do Governo ou a dissolução do Parlamento, explicando que, ainda que o fizesse, não há alternativa a isto. E Luís Montenegro deu-lhe razão. O presidente do maior partido da oposição, ou pelo menos assim chamado, escreveu um tweet anunciando que o PSD vai «continuar a construir a alternativa», como quem diz que ela própria, a alternativa, não existe.
Eis, então, que o singular caso de Alexandra Reis revela um também singular país, em que, excluindo a legitimidade formal, já não há materialmente Governo, o presidente sofre de verborreia que flutua ao sabor dos telejornais, a oposição está encerrada para obras e onde se chama a tudo isto «estabilidade».
GOVERNO POLÍTICA TAP EMPRESAS ECONOMIA PRESIDENTE MARCELO
COMENTÁRIOS (de 23)
Fernando Cascais: Medina não conhecia Alexandra Reis, ou se a conhecia, conhecia-a muito mal. O convite para Secretária do Tesouro surgiu por um acaso. Tudo se passou numa tarde amena de outono na casa de Medina, quando a mulher deste convidou umas amigas para um chá social. Ao chegar a casa Medina depara-se com a tertúlia de gestoras da administração pública:
Medina: - Olá minhas senhoras, com tanto bom cérebro reunido a casa fervilha de neurónios por todo o lado. O país agradece.
As gestoras em uníssono: - Olá Sr. Ministro, como vão as vagas no ministério?
Medina: - Por acaso vamos fazer uma remodelação no governo e vou precisar de alguém para secretário do tesouro. Conhecem alguém?
As gestoras formam um círculo íntimo, confidenciam, e passados uns minutos a mulher de Medina toma a palavra:
Mulher de Medina: - Medina, temos a Alexandra Reis que está disponível. Ela conhece bem as pastas da TAP e pode ser útil para entalares o Pedro quando se der a sucessão. Além disso, tem um currículo imaculado.
Medina: - Excelente escolha, está feito, mais um assunto resolvido.