Tal é o ardor dos que a estimam, essa tal de eutanásia. A próxima
redacção já não oferecerá ambiguidades, a copulativa/aditiva
substituída eficazmente pela disjuntiva/alternativa, não admitindo a adversativa
dos escrúpulos alheios e sim, a conclusiva sem quaisquer escrúpulos próprios. Tout ira bien qui finira bien. Amen.
Eutanásia. Uma derrota para Marcelo e um “e” difícil
de resolver
Apesar do chumbo da lei da eutanásia,
partidos celebram quase-vitória. Conceito de "doença grave e
incurável" deixou de ser obstáculo. Mas Tribunal Constitucional exige
correcções difíceis de acomodar.
MIGUEL SANTOS CARRAPATOSO: Texto
OBSERVADOR. 30
jan. 2023, 23:48
Mais um volte-face para os defensores da despenalização da morte
medicamente assistida. O diploma terá de ser redigido uma quarta vez depois de
ter sido declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, numa votação
renhida de sete contra seis. No entanto, e apesar dos lamentos, a notícia foi
recebida como uma quase-vitória, numa análise transversal aos cinco partidos
que subscreveram a lei: os juízes do Tribunal Constitucional infligiram uma
pesada derrota a Marcelo Rebelo de Sousa.
À cabeça, quando decidiu enviar o
diploma para o Tribunal Constitucional, o
Presidente da República tinha questionado o facto de não terem sido ouvidas as
assembleias legislativas dos Açores e da Madeira. No acórdão agora
divulgado pelo Palácio Ratton, nem por uma vez aparece qualquer referência às
regiões autónomas, o que deita por terra o primeiro argumento levantado por
Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois,
o Presidente da República tinha também questionado a supressão dos conceitos
de “doença fatal” e de “antecipação da morte” como condições para aceder à
morte medicamente assistida, argumentando que tais alterações implicariam “um
regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível”.
A
maioria dos juízes do Tribunal Constitucional entendeu o contrário, algo que
mereceu o voto vencido do próprio presidente, João Caupers. “O efeito conjunto da eliminação das palavras fatal, referida à doença, e antecipação, referida à morte assistida descriminalizada, traduz
um significativo alargamento dos casos desta. (…) A doença já não
tem de ser fatal, isto é, provocar inexoravelmente a morte; e esta já não tem
de ser antecipada, na medida em que deixou de ser previsível o seu momento”,
considerou Caupers.
Acolhido o conceito de “doença grave
e incurável”
No
mesmo sentido, para Marcelo, importava saber se o Tribunal Constitucional
entendia as alterações introduzidas pelo Parlamento como tendo sido no sentido
de densificar e de garantir a “determinabilidade” exigida num texto jurídico
desta natureza. O facto de o critério essencial à despenalização da
morte medicamente assistida ter passado de “doença fatal” para “doença grave e
incurável”, aqui entendida como uma patologia “que ameaça a vida, em fase
avançada e progressiva, incurável e irreversível e que origina sofrimento de
grande intensidade” dava ao diploma uma enorme “indefinição” conceptual.
Mais:
segundo explicou Marcelo na altura, o facto de a “exigência de
verificação de situação de sofrimento de grande intensidade” ocorrer “tanto
quando existe lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença
grave e incurável” imprimia “uma indefinição conceptual” que não podia
“manter-se, numa matéria com esta sensibilidade”, em que se exige, explicou
Marcelo, a “maior certeza jurídica possível”.
Ora, a maioria dos juízes do Tribunal
Constitucional não acompanha os argumentos utilizados por Marcelo nestes pontos
em concreto e desmonta as dúvidas levantadas pelo Presidente da República em
torno do conceito de “doença grave e incurável” – um termo chave e difícil de
balizar quando se discute uma questão como a eutanásia.
Para
o Palácio Ratton, “não há dúvida de que se trata de um conceito jurídico
indeterminado”. Mas, acrescenta-se, tem de o ser.
“Na impossibilidade de elencar todas as condições clínicas de
gravidade e incuráveis e na impossibilidade de definir exaustivamente uma
situação clínica que pressupõe conhecimentos técnicos de que o legislador
ordinário não dispõe, o mesmo optou pela utilização de um conceito de conteúdo
incerto (…) que nem será muito difícil de preencher”.
Além disso, continuam os juízes do Tribunal Constitucional, “no caso
em análise, trata-se de um conceito juridicamente indeterminado, que não é
manifestamente vago, e que permite com relativa facilidade o seu preenchimento
por parte dos aplicadores da lei sem que haja o perigo de deturpar a vontade do
legislador ou de tomar opções políticas por ele”.
Tudo
somado, e simplificando, os dois grandes argumentos de Marcelo – o facto de as
regiões autónomas não terem sido consultadas e o conceito indeterminado de
“doença grave e incurável” – não colheram aceitação por parte do Tribunal
Constitucional, o que desarmadilha o caminho que os proponentes da lei têm
agora de trilhar se quiserem ser bem sucedidos.
O conceito de “sofrimento físico” —
com dor ou sem dor?
No
entanto, nem tudo são boas notícias para os subscritores desta lei. E muito por
causa da referência ao “sofrimento físico”, introduzida nesta última redacção
do diploma. Escreve o Tribunal Constitucional: “O sofrimento é
privado e pessoal. O sofrimento é, por natureza, ontológico, multidimensional e
subjetivo, ligado a uma situação de angústia e aflição que afecta a
integralidade da pessoa. Cujas causas podem ser físicas, emocionais ou morais.
Sobram, pois, reservas quanto à conceção de sofrimento físico”.
A
questão é, de facto, complexa e as duas imagens utilizadas pelo presidente do
Tribunal Constitucional durante uma declaração aos jornalistas sem direito a
perguntas sintetizam bem isso mesmo: “Em termos práticos, está em
causa saber se um doente com cancro terminal com um prognóstico de esperança de
vida muito limitada ou um doente que padeça de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)
que não tenham sofrimento físico tem ou não acesso à morte medicamente
assistida”.
Dito de outra forma: uma pessoa a quem é diagnosticado um cancro
terminal não tem necessariamente e no sentido mais restrito do termo de estar a
sentir um sofrimento físico; nos casos de ELA, a força muscular é afectada, o
que quer dizer as pessoas não sentem dores, pelo que o conceito de sofrimento
físico pode ser colocado em causa.
“Parece
que a alusão ao carácter físico reclamará uma repercussão somática do
sofrimento: a literatura vem ligando a expressão sofrimento físico à dor
corporal ou, pelo menos sofrimento que advém da dor”, recuperam os juízes do
Tribunal Constitucional.
Segundo
apurou o Observador junto de fontes partidárias conhecedoras do processo, esta
referência do Tribunal Constitucional provocou alguma estupefação, uma vez que
a leitura do conceito de “sofrimento físico” por parte dos proponentes do
diploma vai muito para além da ideia de “dor corporal”. Todavia, a vontade
destes partidos é que se encontre uma redacção que permita ultrapassar esse
obstáculo. Resta saber como.
O problema do “e”
Apesar
destas questões que os juízes do Tribunal Constitucional levantaram, existe
um aspecto nuclear a determinar a decisão de vetar o diploma da despenalização
da morte medicamente assistida: a utilização de um “e” — e a dúvida sobre se a
lei, tal como foi desenhada, pretendia ser mais restritiva ou mais ampla.
Nesta
última redacção, os partidos entenderam que estariam em condições de recorrer à
eutanásia todos aqueles que estivessem a enfrentar um “sofrimento físico,
psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão
definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente,
continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
Segundo
a interpretação do Tribunal Constitucional o
uso do “e” levanta uma dúvida: alguém
que queira antecipar a morte deve manifestar sinais de grande “sofrimento
físico, psicológico e espiritual” – “persistente, continuado ou permanente e
considerado intolerável pela própria pessoa” – ou basta que uma das
condições (física, psicológica, espiritual) seja observada?
“No
caso de se entender que se trata de condições cumulativas, daí decorre que,
para se poder recorrer ao procedimento da morte medicamente assistida, é necessário que o requerente sofra, quer física, quer
psicológica, quer, ainda, espiritualmente.
Se se entender que se trata de condições alternativas, bastará a verificação de apenas um desses
tipos de sofrimento”, alertam os
juízes.
“Resumidamente, o que aos
olhos de um leigo pode parecer uma mera indeterminação terminológica, na
realidade tem implicações de monta, no plano jurídico-constitucional, quanto ao
círculo de casos em que é descriminalizada a morte medicamente assistida. (…) Efectivamente, sendo suficiente um sofrimento
psicológico ou espiritual, abrem-se as portas para a morte medicamente
assistida em situações em que, verificando-se uma das duas hipóteses
tipificadas na lei, ainda não há dor física e o requerente da morte medicamente
assistida deseja a mesma por motivos relacionados, v.g., com a sua qualidade de
vida, com a vontade de não ser um encargo pesado para os seus
familiares, ou com circunstâncias laterais da mesma índole”, argumentam.
De
resto, o facto de a Assembleia da República ter tentado enquadrar o conceito de
“sofrimento de grande intensidade”, mencionando o tal “sofrimento físico,
psicológica e espiritual” mereceu críticas do juiz Gonçalo Almeida Ribeiro, que
votou pela inconstitucionalidade da lei. “É difícil determinar o que levou o
legislador a empreender tão espinhosa tarefa, tendo em conta que o acórdão [anterior]
não censurou neste aspeto o decreto então apreciado – que, recorde-se, não definia a noção de sofrimento −, e que o legislador espanhol, cuja influência na redacção do regime
português foi manifestamente grande, não cometeu a imprudência de tentar definir o que é porventura insusceptível de
definição”,
argumenta Almeida Ribeiro,
antes de acrescentar: “A verdade é que, para além de não ter logrado um
conceito mais determinado, o que não lhe era de todo o modo exigível, o
legislador português criou, suponho que inadvertidamente, uma nova
indeterminação, esta grave e evitável.”
O
Tribunal Constitucional recorda, a título de exemplo, que na
legislação espanhola, que serviu de grande inspiração à portuguesa, “o
sofrimento físico e o psicológico valem como alternativa e não como condições
cumulativas”, como sucede com a lei belga e colombiana. “Com o que fica a dúvida: terá o legislador
português, afastando-se da legislação espanhola, querido optar por uma solução mais
restritiva?”, questionam os juízes.
Os
autores do diploma procuram utilizar conceitos já previstos na lei que regula o
acesso aos cuidados paliativos, que utiliza de facto a formulação
“sofrimento físico, psicológico, social e espiritual”. Ora, contra-argumenta o Tribunal Constitucional, as
pessoas que têm acesso aos cuidados paliativos não têm de acumular estas quatro
tipologias de sofrimento. Pelo que a apropriação desta formulação no desenho da
lei da eutanásia levanta dúvidas sobre a verdadeira intenção do legislador:
queriam ou não que os três pressupostos (sofrimento físico, psicológico e
espiritual) estejam verificados?
Partidos vão procurar aproximação
Apesar
das reservas do Palácio Ratton, a questão, como se viu pelas declarações de
Isabel Moreira (PS), João Cotrim Figueiredo (IL), José Manuel Pureza (BE), Inês
Sousa Real (PAN) e Paulo Muacho (Livre) não se coloca: a intenção do legislador
passou sempre por garantir que a questão fosse cumulativa, ou seja, que estivessem sempre garantidos os
três pressupostos – sofrimento
de grande intensidade física, psicológica e espiritual – de maneira a garantir
uma solução mais conservadora.
Ou
seja, uma vez esclarecida a dúvida do Tribunal Constitucional na redacção do
novo diploma (as tês condições são cumulativas), há margem para que a
lei receba luz verde da maioria dos juízes do Palácio Ratton. É essa, pelo
menos, a grande expectativa dos cinco partidos envolvidos no desenho do
diploma.
Mesmo
a terminar o acórdão, os juízes do Tribunal Constitucional deixam esse mesmo
desafio: “Cabe ao legislador parlamentar, perante esta dúvida –
para desencadear o procedimento que conduz à morte medicamente assistida é
exigido, cumulativamente, o sofrimento físico, o psicológico e o espiritual, ou
basta que se verifique um deles? –, fazer uma
determinada opção legislativa (cumulação ou alternatividade) e formulá-la de
tal forma que não deixe lugar a dúvidas ou equívocos. (…) Caso o legislador
pretenda que os sofrimentos sejam cumulativos, deverá usar uma expressão que o
indique de forma absolutamente clara. Assim o exige um Estado que se quer, efectivamente,
de direito”.
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