domingo, 8 de janeiro de 2023

Por isso se disse


“O mito é o nada que é tudo”.

O Catargate e o mito da superioridade moral da esquerda

Fosse este escândalo com políticos de direita, ninguém calaria o coro trágico sobre “a ameaça à Democracia” no coração da Europa. Como não é, não há coro nem perigo: são só casos de corrupção pessoal.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 07 jan. 2023, 00:2032

A Esquerda conseguiu criar na opinião pública o mito da sua inalienável superioridade intelectual, cultural e moral sobre a Direita. Superioridade de causas e pessoas.

Intelectual e culturalmente, a Direita seria primitiva, ignorante, iletrada e burra, e a Esquerda moderna, culta, sofisticada e inteligente. Moralmente, as pessoas de esquerda seriam generosas, desprendidas, igualitárias, solidárias, abertas ao mundo e à Ciência e dedicadas aos pobres e oprimidos, e as de direita egoístas, corruptas, obscurantistas, xenófobas, fundamentalistas, partidárias do capitalismo selvagem e indiferentes à sorte dos pobres e marginalizados.

Embora muitos cristãos e muitos pensadores e políticos de direita tenham tomado o partido dos oprimidos e procurado defender pela palavra e pela ação a justiça e o equilíbrio sociais, talvez a simplificação ainda se justificasse quando a Esquerda estava longe do poder, nos tempos da primeira industrialização e do Manifesto Comunista.  Não agora.

O que surpreende é que agora, depois de anos de poder, de “socialismo real” e de socialismo liberal, persista a ideia da inerente superioridade moral da Esquerda. Tanto que os escândalos de corrupção pessoal ou mesmo partidária à esquerda, cuja frequência começa a ser alarmante, parecem continuar a funcionar como os desmandos das “experiências comunistas”, ou seja, como acasos, enganos, desvarios pessoais, excepções a uma regra ou a um conjunto de princípios e presunções que permanecem intocáveis e indiscutíveis.

Não vou falar dos casos nacionais, os menos recentes e os que, mais recentemente, desencadearam as desajeitadas demissões e nomeações em cadeia de membros do governo e titulares de órgãos públicos a que temos vindo a assistir. Casos tão obviamente alheados do bem público, tão centrados no conluio partidário e no proveito próprio, que dificilmente poderiam deixar de ser relatados e comentados, mesmo por uma comunicação social tendencialmente tão “moderada” e alinhada como a nossa.

Falo, antes, de um caso mais geral, europeu, internacional. Um caso que tem um mês, mas que os nossos media de referência e os seus variadíssimos comentadores fizeram por esquecer logo que lhes foi possível, como sempre acontece quando a realidade vem contrariar a rectidão e a generosidade dos representantes das causas progressistas, justas e generosas.

Da justa luta contra a impunidade de um homem de esquerda

Desde o Verão de 2022 que as autoridades policiais belgas, através do   Office Central pour la Repression de la Corruption, estavam na pista de uma trama que envolvia altas personalidades do Parlamento Europeu, bem como dirigentes de ONGS que teriam, mediante vantagens financeiras, ajudado o governo do Catar a melhorar a sua imagem e a polir a sua reputação no capítulo dos direitos humanos, velhos e novos.

Em 9 de Dezembro, António Panzeri, antigo deputado europeu do PD, Partito Democratico italiano, e Presidente da ONG Fight Impunity, foi detido. A Fight Impunity, como o próprio nome indica, tem por missão lutar contra a impunidade de políticos e empresários corruptos, dos que abusam dos direitos humanos e fazem favores a empresas e a governos a troco de “luvas”, logo, de políticos e empresários que, à partida, deveriam ser “de extrema-direita”.

Além deste seu mais recente activismo, Panzeri conta com um impressionante curriculum de homem de esquerda: foi alto responsável sindical em Milão, desempenhou missões de observação humanitária no Brasil e na Jugoslávia e pertenceu aos Democratas da Esquerda e ao Partido Democrático (os partidos do Agiornamento, ou da adaptação à democracia competitiva dos comunistas italianos depois do fim da URSS).  Mais tarde, a partir de 2004 e até 2019, foi deputado europeu, inscrito no Grupo Socialista.

Nos últimos dias, os investigadores solicitaram ao Parlamento Europeu o levantamento da imunidade de mais dois deputadoso belga Marc Tarabella, da ONG No Peace Without Justice, e o italiano Andrea Cozzolino, também do Partido Democrático italiano –, já que a Presidente do Parlamento, a maltesa Roberta Metsola, assegurara que “não haveria impunidade para ninguém”.

A Vice-presidente do Parlamento, a grega Eva Kaili, perdeu a imunidade por voto unânime dos deputados europeus ao ser apanhada com uma avultada quantia em Euros no seu apartamento da capital belga; e Francesco Giorgi, companheiro de Eva e sócio de Panzeri, está também detido. Eva Kaili é uma militante de esquerda, do Pasok, deputada ao Parlamento de Atenas desde 2007 e eurodeputada desde 2014 e apoiou a escolha do Catar para o Campeonato Mundial de Futebol, elogiando o pioneirismo do país no mundo árabe e os seus progressos quanto ao direito do trabalho e aos direitos humanos.

O “dogma laico” da bondade por inerência

Fosse este escândalo passado com partidos ou pessoas de direita, e os jornais, as rádios, os canais de televisão, não mais cessariam de nos alertar em loop para “a ameaça da extrema-direita que alastra na Europa e mina o Parlamento Europeu”.  Mas o que fazer quando os maus da fita são os bons, os campeões dos direitos humanos, das paridades, das inclusividades e das sustentabilidades e os justiceiros dos que prevaricam? O que fazer quando os activistas das ONGS que identificam os impunes para os punirem, quando os castigadores da Hungria e da Polónia por questões de arco-íris, promovem o Catar, de olho no pote de ouro no fim do arco-íris? É simples: condenam-se de passagem os progressistas corruptos e transviados, como se continuam a condenar de passagem Estalines e Maos, instala-se o silêncio e a superioridade moral da Esquerda continua.

Não é assim, felizmente, em toda a parte.  Na Itália, onde há um governo de direita nacional conservadora e popular, o escândalo e “o dogma laico que levou a esquerda a ser logicamente imune a quaisquer desvios morais” tem vindo a ser discutido e debatido. Não é para menos, visto que a rede corruptora é dominantemente italiana e conta com eurodeputados e dirigentes de ONGS oriundos do Partido Comunista e do Partido Socialista. Porém, também em Itália, perante a dureza e realidade dos factos, a maioria dos jornais e dos media de esquerda escolheu ora a omissão ora a condenação dos suspeitos, pondo em dúvida o seu autêntico esquerdismo ou revivendo um passado assente em fórmulas sagradas como a de que o eleitor de direita “vota com a carteira” e segundo os seus interesses e o eleitor de esquerda “vota com o coração” e em prol do bem comum. Talvez a caricatura pudesse até corresponder a alguma realidade quando a Esquerda estava longe e fora do poder. Não agora.

Qualquer pessoa com experiência de vida sabe que a superioridade moral por inerência dos militantes de um partido ou dos promotores de uma causa é uma falácia, porque há boas causas servidas por pessoas más e más causas servidas por pessoas boas. Basta pensar na experiência da Terceira República portuguesa para ver que, em termos de corrupção, de políticos corruptos, de negociatas, as culpas e os delitos, na sua grande maioria impunes, se distribuem por todo o leque partidário.

E quanto a boas causas, é também falaciosa a ideia de que a sua bondade seja eterna e absoluta ou que possa desligar-se de resultados e consequências. Assim, se o pessimismo antropológico da Direita pode gerar um excesso de realismo na gestão dos egoísmos dos homens e das sociedades, ou um excessivo apego ao peso da tradição e da continuidade da natureza humana, o utópico optimismo antropológico da Esquerda, com o seu irrealismo e simplismo, tem resultado num alheamento em relação aos altos “custos redibitórios” das transformações e aos infernos ateados pelas boas intenções, ou na sua ocultação.

O que está em causa é o maniqueísmo dos políticos, académicos, intelectuais, jornalistas e comentadores que, contra todas as evidências, continuam a pretender que a Esquerda tem o monopólio das pessoas boas e do bem comum, varrendo para a Direita todo o sinistro resto.

É esse o nó do problema e é essa a lição que o Catargate ou os últimos episódios do folhetim político doméstico nos ensinam: que uma corrente ideológica ou política invoque uma inerente superioridade moral para isentar de escrutínio as suas práticas e desqualificar os adversários não pode deixar de ser “um perigo para a Democracia”.

CORRUPÇÃO   JUSTIÇA   POLÍTICA   PARLAMENTO EUROPEU   UNIÃO EUROPEIA   EUROPA   MUNDO   FILOSOFIA POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 32)

Jorge Carvalho: À excepcionalidade da informação pedagógica de JNP o meu muito obrigado.            José Miranda: A natureza humana não escolhe direita nem esquerda. Todos desejam viver bem. A esquerda é, além do mais, hipócrita. Usa os desfavorecidos para atingir o poder. E assim conseguem viver à grande.             João Floriano: E por cá?  Precisamente o mesmo. Não nos esqueçamos do caso Ricardo Robles alguém ligado ao Bloco de Esquerda e agora as mordomias que o governo PS tem permitido: o caso Miguel Alves e vamos lá  a ver o que vai concluir o inquérito sobre a TAP. A nível autárquico os exemplos que têm vindo  a público, dizem sobretudo respeito a autarcas ligados ao PS. Transcrevo uma citação da revista sábado de 8 de junho de 2019: «E nos últimos anos a percentagem tem vindo sempre a subir: de 32,9% em 2015 para 35% em 2016, subindo para 44,6% em 2017, chegando agora aos 48% em 2018.» Não estou a dizer que todos estes casos investigados tenham sido confirmados como corrupção. Mas houve motivos para averiguação. Os números são de há cerca de 3, 4 anos. Desde 2019 certamente que mais casos se juntaram. Trata-se de gente de esquerda que pelo menos gere mal dinheiros públicos. A esquerda é excelente a gerir o dinheiro que não lhe sai do bolso mas do bolso dos  «ignóbeis» da direita. Até podemos descortinar um certo padrão de equilíbrio: a direita produz a esquerda gastaPNS tem derretido milhões na  TAP e recebe dos seus apoiantes os maiores elogios sobre a sua capacidade e determinação. Se fosse alguém da direita as bloquistas já teriam gritado e insultado  de tal maneira que o Ventura por comparação seria um doce de pessoa. Uma gestora recebe 500.000 euros de compensação por uma saída cujas condições levantam sérias dúvidas  e muito provavelmente não será caso único. E estes são alguns exemplos da «boa» gestão dos esquerdistas, gente contra o capital e que por ser coerente com este princípio de que o capital é a raiz de todos os males, faz questão de se desfazer rapidamente dele em negócios e gestões completamente danosas.              klaus muller: Era um artigo destes, sobre a dualidade de critérios com que a nossa CS analisa o comportamento da Esquerda e da Direita, que eu já há uns tempos ansiava por ler. Ainda bem que J.N.Pinto publicou este texto não politicamente correto, sem medo de ser atacado pela maior parte dos nossos funcionários da CS portuguesa.                 TIM DO Ó: "Fosse este escândalo com políticos de direita, ninguém calaria o coro trágico sobre a ameaça à democracia no coração da Europa ".  É mesmo isso. Touché! bento guerra: A "esquerda" não rouba , apanha migalhas que caem da mesa dos capitalistas. Para o próprio bolso, entenda-se, dado o fardo que é governar                Pedro Appleton: Há uma velha pergunta que nos é colocada com frequência, sobre a semelhança e diferença entre os valores do Socialismo e do Cristianismo. O primeiro, movido pelo sentido de uma utopia igualitária, quer acabar com os ricos, o segundo, movido pela utopia de um amor incondicional, sempre quis acabar com os pobres…não há qualquer equívoco.                   João Ramos: A “superioridade “ moral da esquerda não passa de uma falácia, no fundo, no fundo não passam de uns invejosos que usam argumentação para enganar os tolos e ao chegarem ao poder a grande preocupação é conseguirem enriquecer à custa de quem trabalha e cria riqueza, usando para isso, a maioria das vezes despudoradamente os dinheiros supostamente públicos…                      Rosa Silvestre: O que mais admiro nos seus artigos é o aprofundar e olhar de outros ângulos os temas que são tratados pela maioria dos comentadores, concordando ou não, mas na mesma perspectiva.                Irene Osorio: Obrigada!  Por favor continue a ensinar-me a pensar!!!                Manuel Matos: Excelente!!!                 Ausenda Rodrigues: Excelente artigo, como sempre.  Obrigada. 

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