“O mito é o nada que é tudo”.
O Catargate e o mito da superioridade moral
da esquerda
Fosse este escândalo com políticos de
direita, ninguém calaria o coro trágico sobre “a ameaça à Democracia” no
coração da Europa. Como não é, não há coro nem perigo: são só casos de
corrupção pessoal.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 07
jan. 2023, 00:2032
A Esquerda conseguiu criar na opinião pública o mito da sua inalienável
superioridade intelectual, cultural e moral sobre a Direita. Superioridade de
causas e pessoas.
Intelectual e culturalmente, a Direita seria primitiva, ignorante,
iletrada e burra, e a Esquerda moderna, culta, sofisticada e inteligente.
Moralmente, as pessoas de esquerda seriam generosas, desprendidas,
igualitárias, solidárias, abertas ao mundo e à Ciência e dedicadas aos pobres e
oprimidos, e as de direita egoístas, corruptas, obscurantistas, xenófobas,
fundamentalistas, partidárias do capitalismo selvagem e indiferentes à sorte
dos pobres e marginalizados.
Embora muitos cristãos e
muitos pensadores e políticos de direita tenham tomado o partido dos oprimidos
e procurado defender pela palavra e pela ação a justiça e o equilíbrio sociais,
talvez a simplificação ainda se justificasse quando a Esquerda estava longe do
poder, nos tempos da primeira industrialização e do Manifesto Comunista.
Não agora.
O que surpreende é que
agora, depois de anos de poder, de “socialismo real” e de socialismo liberal, persista a ideia da inerente superioridade
moral da Esquerda. Tanto
que os escândalos de corrupção pessoal ou mesmo partidária à esquerda, cuja
frequência começa a ser alarmante, parecem continuar a funcionar como os desmandos
das “experiências comunistas”, ou seja, como acasos, enganos, desvarios
pessoais, excepções a
uma regra ou a um conjunto de princípios e presunções que permanecem intocáveis
e indiscutíveis.
Não
vou falar dos casos nacionais, os menos recentes e os que, mais recentemente,
desencadearam as desajeitadas demissões e nomeações em cadeia de membros do
governo e titulares de órgãos públicos a que temos vindo a assistir. Casos
tão obviamente alheados do bem público, tão centrados no conluio partidário e
no proveito próprio, que dificilmente poderiam deixar de ser relatados e
comentados, mesmo por uma comunicação social tendencialmente tão “moderada” e
alinhada como a nossa.
Falo,
antes, de um caso mais geral,
europeu, internacional. Um caso que
tem um mês, mas que os nossos media de referência e os seus
variadíssimos comentadores fizeram por esquecer logo que lhes foi possível,
como sempre acontece quando a realidade vem contrariar a rectidão e a
generosidade dos representantes das causas progressistas, justas e generosas.
Da justa luta contra a impunidade de
um homem de esquerda
Desde o Verão de 2022 que as autoridades policiais belgas, através
do Office Central pour la Repression de la Corruption, estavam na
pista de uma trama que envolvia altas personalidades do Parlamento Europeu, bem
como dirigentes de ONGS que teriam, mediante vantagens financeiras, ajudado o
governo do Catar a melhorar a sua imagem e a polir a sua reputação no capítulo
dos direitos humanos, velhos e novos.
Em 9 de Dezembro, António
Panzeri, antigo deputado
europeu do PD, Partito Democratico italiano, e Presidente da ONG Fight
Impunity, foi detido. A Fight Impunity, como o próprio nome indica, tem por
missão lutar contra a impunidade de políticos e empresários corruptos, dos que
abusam dos direitos humanos e fazem favores a empresas e a governos a troco de
“luvas”, logo, de políticos e empresários que, à partida, deveriam ser “de
extrema-direita”.
Além
deste seu mais recente activismo, Panzeri conta com um impressionante curriculum
de homem de esquerda: foi alto responsável sindical em Milão, desempenhou
missões de observação humanitária no Brasil e na Jugoslávia e pertenceu aos
Democratas da Esquerda e ao Partido Democrático (os partidos do Agiornamento, ou
da adaptação à democracia competitiva dos comunistas italianos depois do fim da
URSS). Mais tarde, a partir de 2004 e até 2019, foi deputado europeu,
inscrito no Grupo Socialista.
Nos
últimos dias, os investigadores solicitaram ao Parlamento Europeu o
levantamento da imunidade de mais dois deputados – o belga
Marc Tarabella, da ONG No Peace Without Justice, e o italiano Andrea Cozzolino,
também do Partido Democrático italiano –, já que a Presidente do Parlamento, a
maltesa Roberta Metsola, assegurara que “não haveria impunidade para ninguém”.
A
Vice-presidente do Parlamento, a grega Eva
Kaili, perdeu a
imunidade por voto unânime dos deputados europeus ao ser apanhada com uma
avultada quantia em Euros no seu apartamento da capital belga; e Francesco Giorgi, companheiro de Eva e sócio de Panzeri, está
também detido. Eva Kaili é uma militante de esquerda, do Pasok, deputada ao
Parlamento de Atenas desde 2007 e eurodeputada desde 2014 e apoiou a escolha do
Catar para o Campeonato Mundial de Futebol, elogiando o pioneirismo do país no
mundo árabe e os seus progressos quanto ao direito do trabalho e aos direitos
humanos.
O “dogma laico” da bondade por
inerência
Fosse este escândalo passado
com partidos ou pessoas de direita, e os jornais, as rádios, os canais de
televisão, não mais cessariam de nos alertar em loop para “a ameaça
da extrema-direita que alastra na Europa e mina o Parlamento Europeu”. Mas
o que fazer quando os maus da fita são os bons, os campeões dos direitos
humanos, das paridades, das inclusividades e das sustentabilidades e os
justiceiros dos que prevaricam? O
que fazer quando os activistas
das ONGS que
identificam os impunes para os punirem, quando os castigadores
da Hungria e da Polónia por questões de arco-íris, promovem o Catar, de olho no pote de ouro no fim do arco-íris? É simples: condenam-se de passagem os progressistas
corruptos e transviados, como se continuam a condenar de passagem Estalines e
Maos, instala-se o silêncio e a superioridade moral da Esquerda continua.
Não
é assim, felizmente, em toda a parte. Na
Itália, onde há um governo de direita nacional conservadora e
popular, o escândalo e “o dogma laico que levou a esquerda a ser logicamente
imune a quaisquer desvios morais” tem vindo a ser discutido e debatido. Não é para menos, visto que a rede corruptora
é dominantemente italiana e conta com eurodeputados e dirigentes de ONGS oriundos
do Partido Comunista e do Partido Socialista.
Porém, também em Itália, perante a dureza e realidade dos factos, a maioria
dos jornais e dos media de esquerda escolheu ora a omissão ora a
condenação dos suspeitos, pondo em dúvida o seu autêntico esquerdismo ou
revivendo um passado assente em fórmulas sagradas como a de que o eleitor de
direita “vota com a carteira” e segundo os seus interesses e o eleitor de
esquerda “vota com o coração” e em prol do bem comum. Talvez a caricatura
pudesse até corresponder a alguma realidade quando a Esquerda estava longe e
fora do poder. Não agora.
Qualquer pessoa com
experiência de vida sabe que a superioridade moral por inerência dos militantes
de um partido ou dos promotores de uma causa é uma falácia, porque há boas
causas servidas por pessoas más e más causas servidas por pessoas boas. Basta pensar na experiência da Terceira República
portuguesa para ver que, em termos de corrupção, de políticos corruptos, de
negociatas, as culpas e os delitos, na sua grande maioria impunes, se
distribuem por todo o leque partidário.
E
quanto a boas causas, é também falaciosa a ideia de que a sua bondade seja
eterna e absoluta ou que possa desligar-se de resultados e consequências. Assim,
se o pessimismo antropológico da Direita pode gerar um excesso de realismo na gestão dos
egoísmos dos homens e das sociedades, ou um excessivo apego ao peso da tradição
e da continuidade da natureza humana, o utópico optimismo
antropológico da Esquerda, com o
seu irrealismo e simplismo, tem resultado num alheamento em relação aos altos
“custos redibitórios” das transformações e aos infernos ateados pelas boas
intenções, ou na sua ocultação.
O que está em causa é o maniqueísmo dos políticos, académicos,
intelectuais, jornalistas e comentadores que, contra todas as evidências,
continuam a pretender que a Esquerda tem o monopólio das pessoas boas e do bem
comum, varrendo para a Direita todo o sinistro resto.
É
esse o nó do problema e é essa a lição que o Catargate ou os últimos episódios
do folhetim político doméstico nos ensinam: que uma corrente
ideológica ou política invoque uma inerente superioridade moral para isentar de
escrutínio as suas práticas e desqualificar os adversários não pode deixar de
ser “um perigo para a Democracia”.
CORRUPÇÃO JUSTIÇA POLÍTICA PARLAMENTO
EUROPEU UNIÃO
EUROPEIA EUROPA MUNDO FILOSOFIA
POLÍTICA
COMENTÁRIOS (de 32)
Jorge Carvalho: À
excepcionalidade da informação pedagógica de JNP o meu muito obrigado. José Miranda: A natureza humana não escolhe direita nem esquerda. Todos desejam viver bem. A esquerda é, além do mais, hipócrita. Usa os
desfavorecidos para atingir o poder. E assim conseguem viver à grande. João Floriano: E por cá? Precisamente o mesmo. Não nos
esqueçamos do caso Ricardo Robles alguém ligado ao Bloco de Esquerda e agora as
mordomias que o governo PS tem permitido: o caso Miguel Alves e vamos lá
a ver o que vai concluir o inquérito sobre a TAP. A nível autárquico os
exemplos que têm vindo a público, dizem sobretudo respeito a autarcas
ligados ao PS. Transcrevo uma citação da revista sábado de 8 de junho de 2019:
«E nos últimos anos a percentagem tem vindo sempre a subir: de
32,9% em 2015 para 35% em 2016, subindo para 44,6% em 2017, chegando agora aos
48% em 2018.» Não estou a
dizer que todos estes casos investigados tenham sido confirmados como
corrupção. Mas houve motivos para averiguação. Os números são de há cerca de 3,
4 anos. Desde 2019 certamente que mais casos se juntaram. Trata-se de gente de
esquerda que pelo menos gere mal dinheiros públicos. A esquerda é excelente a
gerir o dinheiro que não lhe sai do bolso mas do bolso dos «ignóbeis» da
direita. Até podemos descortinar um certo padrão de equilíbrio: a direita
produz a esquerda gasta. PNS tem derretido milhões na TAP e
recebe dos seus apoiantes os maiores elogios sobre a sua capacidade e
determinação. Se fosse alguém da direita as bloquistas já teriam gritado e
insultado de tal maneira que o Ventura por comparação seria um doce de
pessoa. Uma gestora recebe 500.000 euros de compensação por uma saída cujas
condições levantam sérias dúvidas e muito provavelmente não será caso
único. E estes são alguns exemplos da «boa» gestão dos esquerdistas, gente
contra o capital e que por ser coerente com este princípio de que o capital é a
raiz de todos os males, faz questão de se desfazer rapidamente dele em negócios
e gestões completamente danosas. klaus muller:
Era um artigo destes, sobre a dualidade
de critérios com que a nossa CS analisa o comportamento da Esquerda e da
Direita, que eu já há uns tempos ansiava por ler. Ainda bem que J.N.Pinto publicou este texto não
politicamente correto, sem medo de ser atacado pela maior parte dos nossos
funcionários da CS portuguesa. TIM DO Ó:
"Fosse este escândalo com políticos
de direita, ninguém calaria o coro trágico sobre a ameaça à democracia no
coração da Europa ". É mesmo isso. Touché! bento
guerra: A "esquerda" não rouba , apanha
migalhas que caem da mesa dos capitalistas. Para o próprio bolso, entenda-se, dado
o fardo que é governar Pedro
Appleton: Há uma velha pergunta que nos é
colocada com frequência, sobre a semelhança e diferença entre os valores do
Socialismo e do Cristianismo. O primeiro, movido pelo sentido de uma utopia
igualitária, quer acabar com os ricos, o segundo, movido pela utopia de um amor
incondicional, sempre quis acabar com os pobres…não há qualquer equívoco.
João Ramos: A
“superioridade “ moral da esquerda não passa de uma falácia, no fundo, no fundo
não passam de uns invejosos que usam argumentação para enganar os tolos e ao
chegarem ao poder a grande preocupação é conseguirem enriquecer à custa de quem
trabalha e cria riqueza, usando para isso, a maioria das vezes despudoradamente
os dinheiros supostamente públicos… Rosa
Silvestre: O que mais admiro nos seus artigos é o
aprofundar e olhar de outros ângulos os temas que são tratados pela maioria dos
comentadores, concordando ou não, mas na mesma perspectiva. Irene Osorio: Obrigada! Por favor continue a ensinar-me a
pensar!!!
Manuel Matos: Excelente!!! Ausenda Rodrigues: Excelente artigo, como sempre. Obrigada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário