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Trump "fez a sua magia" e
convenceu Bibi. Mas a paz ainda está longe de estar garantida
Em dia "histórico",
Presidente norte-americano conseguiu convencer líder israelita a pedir desculpa
ao Qatar e a aceitar um acordo para Gaza. Hamas pode recusar; e os parceiros de
Netanyahu também.
CÁTIA BRUNO: Texto
OBSERVADOR, 30 set. 2025, 01:032
Índice
O acordo
Biden 2.0 que tem dois pormenores espinhosos
A
“exasperação” com Netanyahu que levou Trump a dar um murro na mesa
Os entraves:
a resistência do Hamas e parceiros de coligação israelitas
“Um lindo dia, talvez até um dos maiores
dias de sempre da civilização.” Foi assim que o Presidente norte-americano
classificou o anúncio feito, esta segunda-feira, na Casa Branca, de uma
proposta de plano para acabar com o conflito em Gaza, que contou com a anuência
de Benjamin Netanyahu. Donald Trump falou num “dia
histórico para a paz” e Bibi acabou por selar o anúncio, dizendo “apoio o seu plano para pôr fim à guerra em
Gaza, que cumpre os nossos objectivos de guerra”.
É um avanço grande, já que é a primeira
vez que o primeiro-ministro israelita afirma tão declaradamente em público que
quer pôr um ponto final no conflito perante uma proposta que implica algumas
cedências da parte de Israel. O que, à primeira vista, se traduz numa grande
vitória para Trump.
▲Benjamin
Netanyahu e Donald Trump na conferência de imprensa de segunda-feira Getty Images
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Mas ainda falta a luz verde do Hamas — e
é possível que ainda haja tortuosas negociações, com o grupo terrorista a
resistir à desmilitarização e o líder israelita a querer evitar um compromisso
maior de reconhecimento de um futuro Estado da Palestina, a fim de não alienar
ainda mais os seus parceiros de coligação no Governo. Por isso, impõe-se a
questão: irá este dia ficar de facto para a
História? Ou ainda é cedo para dizer que Trump conseguiu o que parecia
impossível?
O acordo Biden 2.0 que tem
dois pormenores espinhosos
Em linhas gerais, o acordo de 20 pontos
apresentado esta segunda-feira inclui uma série de propostas como o fim imediato das operações militares por parte de
Israel, combinadas com a libertação
dos reféns em 72 horas. Prevê entrada
de ajuda humanitária na Faixa de Gaza, a desmilitarização do Hamas (e possível
amnistia dos seus membros), permanência dos palestinianos no enclave e o
estabelecimento uma gestão de transição gerida por tecnocratas palestinianos,
presidida pelo próprio Donald Trump e co-liderada por figuras
internacionais como o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, levantando
a possibilidade de a Autoridade Palestiniana vir a ocupar esse lugar no futuro.
Na prática, a proposta não é
radicalmente diferente de outras que já foram discutidas no passado, como notou
o jornalista da Economist Anshel Pfeffer: “Deve
ser dito que o acordo é essencialmente o mesmo apresentado por [Joe] Biden em
31 de maio do ano passado”, escreveu no X o também biógrafo de Netanyahu. “Tantas
vidas poderiam ter sido poupadas se Biden tivesse pressionado Netanyahu à
altura como Trump fez agora.”
A obrigatoriedade de
desmilitarização do Hamas e a possibilidade de a Autoridade Palestiniana vir a
assumir o poder em Gaza — com o reconhecimento de um Estado da Palestina no
futuro — são os pontos da proposta que enfrentarão mais resistência.
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Há de facto vários pontos de contacto em
ambas as propostas. Embora o plano de
Biden previsse um cessar-fogo temporário como primeira fase do acordo,
também previa a libertação de
reféns israelitas de um lado (embora de forma faseada) e de prisioneiros palestinianos do outro,
a entrada de ajuda humanitária e o regresso e permanência de palestinianos
no território. Mas também há algumas nuances: o plano de
Biden não tinha mais detalhes sobre o que constituía “um grande plano de
reconstrução” com apoio internacional.
Era uma definição de futuro vaga. Desta vez,
há alguns detalhes extra, como a criação de um órgão internacional para supervisionar o enclave. Os outros
novos pormenores são precisamente os que representam o principal entrave à
concretização deste plano de paz. Por um lado, a
obrigatoriedade de desmilitarização do Hamas, que consta no texto; por outro, a possibilidade
de a Autoridade Palestiniana vir a assumir o poder em Gaza, como
abordou Trump, e o reconhecimento de um Estado da Palestina no futuro.
▲A
desmilitarização do Hamas é um dos pontos do acordo que pode levantar mais
resistência por parte do grupo Getty Images
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Ambas estão intrinsecamente ligadas,
do ponto de vista do Hamas. Pouco depois
da conferência de imprensa, um dos líderes do grupo terrorista deu uma
entrevista à Al Jazeera onde não fechou a porta a um acordo, mas sublinhou que
o plano atual é “uma tentativa de suprimir o impulso e a vaga de reconhecimento
de um Estado palestiniano” — indiciando que essa pode ser uma das
condições do Hamas para aceitar a proposta. Outro representante do grupo
fez declarações à BBC que apontam no mesmo sentido, dizendo que a desmilitarização é “uma linha
vermelha”, que só pode ser discutida se houver garantias de que venha a ser
“estabelecido um Estado palestiniano independente com as fronteiras de 1967”.
Já Netanyahu, na
conferência de imprensa, pareceu rejeitar liminarmente a ideia de a Autoridade
Palestiniana vir a gerir o território — e,
portanto, de vir a reconhecer um Estado da Palestina —, o que pode
chocar com as palavras (vagas) do texto. “Não será uma surpresa para vocês que a larga maioria dos israelitas
não tem qualquer fé que o leopardo da Autoridade Palestiniana venha a mudar as
suas manchas”. Trump, contudo, não considerou isso um problema: “O primeiro-ministro Netanyahu foi muito
claro sobre a sua oposição a um Estado palestiniano”, disse. “Compreendo e respeito a sua posição em
muitas coisas, mas o que ele está a fazer hoje é tão bom para Israel.”
A “exasperação” com
Netanyahu que levou Trump a dar um murro na mesa
Talvez Donald Trump acredite que pode
vir a convencer Bibi a mudar de ideias no futuro da mesma maneira que o fez
esta segunda-feira. O seu poder de persuasão sobre o líder israelita ficou
patente num momento crucial: aquele em que o primeiro-ministro israelita telefonou
ao primeiro-ministro do Qatar para pedir desculpas pelo ataque ao país no
início de setembro.
“Israel não tem qualquer plano para
voltar a violar a vossa soberania no futuro e fiz esse compromisso ao
Presidente [Trump]”, acrescentou Netanyahu durante a chamada. Um flic flac claro,
se tivermos em conta que, na véspera, em entrevista à Fox News, Bibi comparou o
ataque ao Qatar (que tinha como alvos líderes do Hamas que vivem no país) à
operação dos EUA no Paquistão que matou Bin Laden. “Um país que se respeite não
dá abébias a terroristas”, disse.
Mas foi um passo que Trump forçou
Netanyahu a tomar, por uma razão simples: na sequência do ataque, o
Qatar retirou-se como negociador da questão israelo-palestiniana. Sem o
emirado, que mantém grande influência sobre o Hamas e é também aliado dos
Estados Unidos, era praticamente impossível que as negociações se mantivessem
de pé.
▲Trump com o emir do Qatar, país
mediador do conflito em Gaza e aliado dos EUA
Getty Images
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A pressão de Trump foi evidente até na
linguagem corporal da conferência de imprensa, com o Presidente
norte-americano a protagonizar um longo monólogo perante um Netanyahu sem
expressão e em silêncio, ao contrário da sua postura habitual.
Mas como conseguiu Donald Trump dominar
Netanyahu e obrigá-lo a aceitar um acordo não muito diferente daquele que Biden
oferecera — e cujos novos detalhes podem ser ainda mais pesados, do ponto de
vista do primeiro-ministro israelita? Várias fontes da Casa Branca foram dando
sinais sobre isso ao longo do último mês:“toda
a gente está exasperada com o Bibi”, lamentava uma fonte da
administração ao site Axios, destacando como Steve Witkoff e Jared Kushner —
que estiveram na sala durante a reunião desta segunda-feira na Casa Branca — estão “pela ponta dos cabelos com Israel”.
“Os
árabes já concordaram a 100%. Agora estamos à espera que o Presidente faça a
sua magia com Netanyahu.” Conselheiro de Donald Trump ao site Axios
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A gota de água parece ter sido precisamente o ataque ao Qatar, um
conhecido aliado dos norte-americanos. “Cada
vez que estamos a fazer progressos, ele bombardeia alguém”, disse uma
fonte da equipa de Segurança Nacional ao Politico. “É por
isso que o Presidente e os seus conselheiros estão tão frustrados com
Netanyahu.”
Perante essa exasperação, como se posicionaram os Estados Unidos
para conseguir pressionar Benjamin Netanyahu? Ao
que tudo indica, terá sido uma combinação de diplomacia com pulso firme.
Primeiro, conseguindo alinhavar a proposta com vários países árabes e
conseguindo que a apoiassem — o que ficou patente horas depois da conferência
de imprensa, com uma declaração conjunta de respaldo à proposta. “Os árabes já concordaram a 100%. Agora
estamos à espera que o Presidente faça a sua magia com Netanyahu”, comentava
outro conselheiro do Presidente com o Axios.
Ninguém sabe ao certo o que disse Trump
a Bibi dentro daquela sala. Mas, a fazer fé no mesmo conselheiro, a estratégia
poderá ter sido dura: se Netanyahu não
aceitasse, o Presidente norte-americano iria culpá-lo em público por não ter
sido alcançado um acordo, o que seria um puxão de orelhas inédito dos Estados
Unidos ao seu aliado.
Os entraves: a resistência do Hamas e parceiros de
coligação israelitas
Significa isto que agora é
apenas uma questão de tempo até os bombardeamentos pararem e os reféns serem
libertados? Não exactamente.
Primeiro,
é preciso que o Hamas aceite a proposta. A
esperança de Washington é que a pressão dos países árabes possa ajudar a dobrar
o grupo terrorista e convencê-lo, mesmo isso implicando aceitar uma paz que
representa a sua auto-destruição, ao mesmo tempo que suaviza a resistência dos
israelitas a uma transferência de poder futura para a Autoridade Palestiniana.
“Não vejo ainda um acordo. Vejo um grande
acordo teórico, vejo uma simulação”, notou à Al Jazeera o
ex-diplomata israelita Alon Pinkas. “Quero
ser optimista, mas acho que isto é demasiado complicado, demasiado complexo, há
demasiados temas alvo de disputa aqui.”
Não
só é difícil imaginar o Hamas a aceitar livrar-se do seu armamento e estruturas
militares, como também não é claro como conseguirá Bibi convencer os partidos
de extrema-direita que sustentam a sua coligação a aceitar esta proposta. O ministro
da Segurança, Itamar Ben-Gvir, já tinha avisado no sábado: “Senhor primeiro-ministro, o senhor não tem mandato para acabar com a
guerra sem uma derrota completa do Hamas”, escreveu no X. Já o ministro
das Finanças, Bezalel Smotrich, tem colocado como exigências para um
acordo a manutenção de tropas israelitas no corredor de Filadélfia (na
fronteira de Gaza com o Egito) e o completo afastamento do processo da
Autoridade Palestiniana e do Qatar.
▲Ben-Gvir e Smotrich, os ministros radicais do
Governo de Israel que podem rejeitar o acordo POOL/AFP via Getty Images
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Sobre este último país — e ilustrando o
afastamento de Smotrich de Bibi —, o ministro
reagiu ao telefonema de Netanyahu para Doha comparando-o ao Acordo de Munique,
assinado por Neville Chamberlain e outros líderes europeus com a Alemanha Nazi
em 1938. Dirigindo-se directamente ao seu primeiro-ministro, acusou: “O seu bajulador pedido de desculpas a um
Estado que apoia e financia o terrorismo é uma desgraça.”
Isso não significa, contudo, que
Ben-Gvir e Smotrich arrisquem deitar abaixo o Governo e perderem a capacidade
de continuar a influenciar a liderança do país. E, mesmo que o venham a fazer,
há sinais de que isso pode ser contornado, como explicou à BBC Jonathan
Conricus, antigo porta-voz das IDF: o militar reconhece que o acordo é “difícil de vender
internamente”, mas também que é possível “embrulhá-lo e oferecê-lo à opinião
pública de Israel”.
Não por acaso, os principais líderes da
oposição, Yair Lapid e Benny Gantz, aplaudiram o documento e desfizeram-se
em elogios a Donald Trump. Lapid classificou a proposta como “a base certa
para um acordo”, Gantz destacou que este “deve ser implementado”. No passado,
ambos já se ofereceram para substituir os partidos de extrema-direita, caso Netanyahu precise de apoio político
para aprovar um acordo que leve ao fim da guerra em Gaza.
No fundo, as incógnitas ainda são
muitas. “Estamos numa espécie de limbo; meio que fora do inferno, mas ainda sem
saber se vamos chegar ao paraíso”, resumiu à BBC Yehuda Cohen, pai do refém
Nimrod Cohen, que ainda está em Gaza. Por agora, só há uma coisa clara: “Entre sorrisos e abraços, Trump forçou
Netanyahu a aceitar este acordo”, diz o israelita, apontando o
telefonema para o Qatar como exemplo máximo. “Trump está a forçar Netanyahu a aceitar este acordo enquanto o abraça.”
Conflito Israelo-palestiniano
Mundo
Presidente Trump Estados Unidos da América América Israel Médio Oriente
COMENTÁRIOS;
Antonio Madureira: Biden 2.0?!
Por amor de Deus! É um plano totalmente diferente que inclui passos detalhados
para a reconstrução de Gaza e envolve muitos Estados Árabes. Sei que é muito
difícil reconhecer que Trump possa fazer qualquer coisa certo mas os
jornalistas terão de se habituar...
henrique pereira dos santos: Nem uma palavra sobre os reféns que o Hamas não quer
libertar. Extraordinário.