quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Bimbi



Nas vésperas da decisão, muitos são os textos no OBSERVADOR, sobre o tema a aprovar dentro de dois dias no Parlamento. Escolho dois. Parece que está tudo concertado para a aprovação da dita eutanásia - arte de bem morrer - mau grado as razões dos oponentes, que seriam em maioria, certamente, se os quisessem atender. Ricardo Pinheiro Alves e Paulo Sérgio Macedo, os autores dos textos. O Parlamento, a Bimbi que cozinha os nossos destinos. Acefalamente, hipocritamente, escondendo os reais motivos. Em força e sem recuo. Ao contrário do nazismo. Este explicava com pormenor e sem rebuço os motivos do extermínio. Os da solidariedade lusa calam-nos, em alarido de afectividade, apenas.
I - Mais uma vez, a política da mentira! / premium
A política da mentira usa como primeiro passo tentar evitar que haja muita discussão pública e que seja limitada aos “profissionais da opinião”, designadamente os que defendem a eutanásia.
RICARDO PINHEIRO ALVES           PÚBLICO, 18 FEV 2020
Há 13 anos realizou-se o segundo referendo sobre o aborto. Na altura havia um consenso quase generalizado no discurso entre os que defendiam o “sim” e os que defendiam o “não”: o aborto é indesejável e a sua prática deve ser prevenida e reduzida. Para os defensores do aborto na altura do referendo era tudo muito simples. “Não vamos liberalizar o aborto, uma vez que somos anti-liberais” e a ideia liberal, ou neo-liberal como costumam referir, é contrária à ideologia da esquerda radical. Isto apesar de ao mesmo tempo defenderem os mesmos valores liberais que consideram inaceitáveis quando argumentavam que “não estamos a obrigar ninguém, cada um faz o que quer”. Mas diziam ainda: “Vão ser realizadas campanhas massivas de prevenção”; “Vamos ter meios imensos para promover o uso de anti-contraceptivos”; “As mulheres que queiram abortar vão ter apoio médico para as ajudar e para reduzir o seu número”. A mensagem principal dos defensores da liberalização do aborto era que a “saúde dos seres humanos, neste caso das mulheres, é a nossa grande preocupação”.
Após mais de 200 mil abortos, o equivalente à população que nasce em Portugal em 2 anos e meio, vemos como todas aquelas promessas foram atiradas para o lixo, juntamente com os fetos abortados.
Não houve qualquer tentativa organizada para desaconselhar ou tentar prevenir o aborto, as medidas de prevenção foram “engolidas” por quem as anunciou e o “neo-liberalismo” do aborto tornou-se um facto consumado e, de acordo com os seus defensores anti-liberais, com “muito bons resultados”. Esta foi, no caso do aborto, a política da mentira!
A actual abordagem à eutanásia pelos seus defensores é a mesma política da mentira que foi seguida para o aborto. Tal como antes, o discurso apresenta tudo como perfeito, sem máculas e sem dúvidas, só certezas, para garantir a aprovação da eutanásia. Depois, caso seja aprovada, virão as consequências. Mas nessa altura já ninguém se lembrará, como também hoje nenhum dos que pugnaram pela liberalização do aborto se lembram.
O discurso é o da “morte com humanidade” para pessoas em “estado terminal”, com pouco tempo de vida ou em “sofrimento psicológico”. Mas o que é estar em estado terminal ou ter pouco tempo de vida? Os médicos não o conseguem saber com precisão, mas os defensores da eutanásia não têm dúvidas a este respeito. E ainda menos dúvidas têm perante questões psicológicas em que a ignorância sobre o cérebro humano é quase total e por isso a psicologia está muito longe de ser uma ciência exacta.
Os seus defensores garantem sempre a “audição de profissionais de saúde do melhor que há e uma comissão de gente muito responsável, com juristas e especialistas” que vai garantir, podemos ficar descansados, “que não haverá mortes desnecessárias”, apenas as que são “adequadas”. Este sistema nacional de saúde “adequado” dos defensores da eutanásia é o mesmo que não é capaz de garantir cuidados paliativos a 90% das pessoas que deles necessitam e deixa acumular listas de espera para cirurgias e tratamentos urgentes. Mas médicos “adequados” para matar doentes não faltarão.
O argumento mais hipócrita, contudo, é o “neo-liberal”, que diz que “não estamos a obrigar ninguém, e a comunidade ou o Estado não podem intervir nas decisões e na vida pessoal de cada um”. Os mesmos que o dizem são os que querem que o Estado obrigue as pessoas a tudo, desde a maternidade em que nascem até à escola onde aprendem e ao hospital onde deverão morrer por eutanásia. São os mesmos que proíbem armas porque são perigosas e touradas porque ferem os animais, mas legalizam a morte encomendada como quem anuncia a vinda da Telepizza. O discurso da morte é também o da suposta “generosidade”, em que “apenas se pretende ajudar as pessoas que o peçam”. As pessoas que o vão pedir estão à beira do desespero, numa completa solidão, sofrendo de uma sensação de inutilidade e de vazio, agravadas pela perspectiva do fim da vida. Os defensores da eutanásia afirmam que são estes que estão em perfeito estado mental para pedir que as matem. Em breve, como acontece na Bélgica e Holanda, serão os pais das crianças a pedir que as matem, e como acontece na Holanda com os dementes, serão mortos mesmo que não o queiram.
Esta argumentação da mentira é reforçada quando dizem que “apenas se pretende despenalizar a eutanásia, nada mais do que isto”, quando os projectos legislativos em discussão não visam despenalizar, o que visam é legalizar a eutanásia para pessoas “inaptas”, deficientes ou abandonadas ao desespero, que se sentem um fardo para os outros porque perderam a sua autonomia e porque ninguém delas quer saber.
A política da mentira usa como primeiro passo tentar evitar que haja muita discussão pública e que seja limitada aos “profissionais da opinião”, designadamente os que defendem a eutanásia, para não confundir as pessoas.
Depois, caso isto não seja possível, tenta esconder o que se passa em países como Holanda e Bélgica, porque isso pode afectar o raciocínio dos “ignorantes”. Isto é a mesma táctica dos que esconderam as mulheres que, na televisão, diziam orgulhosamente já ter feito meia dúzia de abortos.
Por fim, a táctica a aplicar é usar o argumento de que a decisão cabe aos “legítimos” representantes da população que estão na Assembleia da República, aqueles que sobre o assunto nada disseram antes das eleições e que dele percebem tanto como o cidadão comum. A política da mentira é que onde antes estava a “preocupação com a saúde das pessoas”, agora está apenas a “preocupação com as pessoas”, pois defendem que se lhes “trate” da saúde. A suposta “preocupação com a saúde das mulheres” dos defensores do aborto transformou-se na “preocupação para que as mulheres não precisem de saúde” dos defensores da eutanásia.
Os mesmos que na altura se diziam muito preocupados com o número de abortos praticados em Portugal, apesar de não o conhecerem uma vez que era clandestino, são os que agora vêm falar de “humanismo na morte”, atingindo desta forma o pináculo do relativismo moral. Nunca a morte de alguém foi tão despudoradamente relativizada. A mesma prática dos defensores do aborto, que mentiram quando disseram que não o iam liberalizar, atinge agora o cúmulo da hipocrisia quando afirmam que a eutanásia é um assunto que deve ser discutido de uma forma civilizada e séria. Mas sabemos da liberalização do aborto que esta forma “civilizada e séria” é apenas um código para uma política da mentira que não implica a verdade na discussão.
O texto reflecte apenas a perspectiva do autor.
COMENTÁRIOS: Carminda Damiao: Tem toda a razão, em comparar a prática da eutanásia com a do aborto. Começam a anunciar que é apenas para alguns casos, muito graves, mas depois vai avançando e não se sabe onde vai parar. Numa altura em que propõem que as touradas são só para maiores de idade, devem propor que se leve as crianças para assistirem à eutanásia do avô e da avó. Rui Kissol: Parabéns ao autor - que não se deixa levar pelas 'Estórias p/ Totós' dominantes na intelectualidade - rasteiramente prenhe do vácuo impante!
II - Vida: dádiva, vontade ou obrigação?
Queremos que as futuras gerações cresçam e se formem na ideia de que a vida é uma vontade? A vida, quando inicia, não é uma vontade. Porque haveria de sê-lo ao morrer?
O tema da eutanásia interpela-nos profundamente, na nossa condição humana comum e no sistema de valores de cada um. Pelas funções que ocupo, interpela-me de uma forma particular, dada a sua sensibilidade e transversalidade. Ele relaciona-se, ao mesmo tempo, com a dignidade humana; a cosmovisão individual; os princípios da liberdade, da autonomia e da propriedade da pessoa; o relacionamento entre a política e a religião; a confiança democrática nas instituições (um ponto que aqui não trataremos por razão do anterior); e a solidariedade intergeracional.
Em primeiro lugar, o conceito de dignidade humana. Na minha experiência de diálogo inter-religioso, costumo frequentemente dizer que nos unimos – cristãos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, baha’is, agnósticos ou ateus – pelo que mais nos separa: a religião. Essa é uma evidência, e procurar união pela e apesar da religião não faz sentido, pelo que nos resta construir a liberdade e o respeito na e pela diferença.
O que nos une, pelo contrário, é essa inexorável e indelével condição de nascer, viver e morrer como seres humanos. Somos dignos porque somos humanos. E humanamente diferentes. Essa condição tem ainda uma dignidade que lhe é própria e superior, fundada no juízo, essa maravilhosa capacidade que só os humanos têm de mediar a palavra e a acção pelo pensamento baseado em princípios e valores – mesmo contra a vontade, o interesse e as circunstâncias próprias. E contra o sofrimento. Todos nascemos, vivemos e morreremos nessa condição. E recorremos a esse juízo para reconhecer que aqueles que, por doença ou estado de inconsciência, não o têm, não perdem por isso a sua condição de dignidade de seres humanos.
O que nos separa, por vezes de forma inultrapassável, é a concepção que temos da origem da vida, da natureza e do destino humanos e dos valores pelos quais nos regemos – a nossa cosmovisão. A dignidade de cada indivíduo só é respeitada no respeito pela sua cosmovisão e atacar esta última é um ataque à primeira. Em relação à eutanásia, é óbvio que a concepção da origem da vida e da natureza humana enformará a posição sobre se é lícito ou não alguém terminar com a vida de outro, mesmo que a seu pedido. É nossa obrigação admiti-lo sem estigma e sem acusação. É óbvio que um cristão, que crê que todos os seres humanos contêm em si a beleza de um acto criativo de Deus, único e irrepetível, à Sua imagem, chegarão à conclusão da santidade da vida e do princípio da sua inviolabilidade. (E não, isso não implica um absoluto… Ou não haveria mártires, dispostos a abdicar da vida própria por ideais. Nem pais ou mães que matassem, sem culpa nem pena, para proteger os filhos. Falemos, aqui, só de eutanásia.) Mas é também óbvio que quem não possui uma mundividência que resida no transcendente acabe a fundar-se numa outra crença em si própria – a de que a vida, por mais valor que tenha, é só um finalizar do tempo, sem outro significado existencial, sem origem que não o acaso e sem destino que não o vazio. E a conclusão é a de que nada obsta a que termine a pedido do próprio.
Há ainda os casos, talvez excepcionais, de quem crê no transcendente, mas conclua que pedir a morte não atenta à santidade da vida; e quem alcance a supremacia da dignidade da vida sem necessitar de recurso à crença. No entanto, como civilização, devíamos, pelo menos, questionar-nos sobre a profundidade de um apelo a uma só voz, de tantas tradições milenares, pelo respeito pela vida humana. (E, para prevenir falsos argumentos, não é sobre outras coisas – como a escravatura, a inferioridade dos não crentes ou a condição da mulher, de que tantos acusam os textos antigos. É sobre a Vida.)
No passado dia 12 de fevereiro, pela segunda vez num espaço de aproximadamente um ano e meio, quase uma dezena entre as comunidades religiosas radicadas mais significativas em Portugal tomaram posição contra a despenalização da Eutanásia. Em maio de 2018, oito confissões assinaram, publicamente e pela primeira vez, uma declaração comum, com o título “Cuidar até ao Fim com Compaixão”, afirmando valores como o da vida, o da dignidade humana, o do cuidado com os doentes terminais e o da necessidade de aprofundar o seu alcance. Agora, através de um comunicado e de uma conferência de imprensa, o Grupo de Trabalho Inter-religioso Religiões-Saúde reafirmou esses princípios, centrando a tónica na falta de “sensatez e de legitimidade” da despenalização da eutanásia pelo Parlamento, face à exiguidade de recursos de cuidados paliativos. Fundados no que consideram Revelação – textos bíblicos, corânicos, toraicos, védicos ou outros – os representantes das confissões signatárias dos dois documentos atrás referidos transportam a voz do tempo, em aviso de que cada vida tem um valor imanente, intrínseco, de origem divina, de que ninguém deve dispor. E, para elas, é esse valor que está a ser questionado e alterado, abrupta e levianamente. Ou, como dizem, sem sensatez e sem legitimidade. O terceiro ponto é o que mais me interpela e o que maior fragilidade denota para os argumentos daqueles que, em consciência, sem certezas e com humildade, defendem que o Estado não deve permitir a morte, mesmo que a pedido da pessoa que deseja morrer. Esta questão exige de cada ser humano uma posição, muito mais do que uma opinião. As opiniões podem ser infundadas, voláteis, inconsequentes; mas a morte, dos nossos e a nossa, é uma realidade com que lidámos e lidaremos, pois somos com ela confrontados e exige de nós posição. Na formulação de uma posição, não contam obviamente só as crenças, mesmo que alicerçadas em sólidos princípios racionais; contam muito, também, as conclusões a que chegámos com apoio do que lemos e ouvimos, as reflexões que realizámos e as conclusões que construímos como nossas.
Entre estas, os princípios da liberdade, da autonomia e da propriedade da pessoa são os mais difíceis de harmonizar com a penalização da eutanásia, por parecerem incompatíveis com o direito de, numa situação limite, pedir a própria morte. É que a liberdade é também uma componente imanente, intrínseca e condicionante da dignidade humana. Sem a primeira não existe plenamente a segunda. E, com ela, o princípio da autonomia, da disposição de ser e cumprir a própria lei em relação a si mesmo. E, com as anteriores, o sentido de propriedade sobre o próprio corpo, do direito à não existência de qualquer reclamação de posse e de uso que não do próprio. Como explicou John Locke: “Todo o homem detém a propriedade sobre a sua pessoa. Sobre isso, ninguém tem direito, que não o próprio”. É verdade que, para um crente cristão, como podemos extrair dos Evangelhos, a liberdade só se alcança paradoxalmente, na entrega da vontade Àquele que liberta – do pecado, do mal, da carne, da morte… Aí, após essa entrega, a que chamamos conversão, a autonomia transforma-se em dependência, e a propriedade é devolvida à Sua verdadeira origem. Daí que ninguém seja autónomo, pois já não obedece à sua própria lei; e ninguém é proprietário de si, da sua vontade, do seu corpo, pois a Deus pertence. Mas Esse é o mesmo que só deseja essa mesma entrega se for voluntária. Este plano de argumento não colhe como base para a lei de uma sociedade livre, plural, secular, como é, felizmente, a nossa, embora seja muitas vezes invocado por aqueles que se opõe à eutanásia. Assim, para a questão axiológica que opõe entre si direitos superiores — como são a vida e a liberdade — só na axiologia se pode encontrar resposta. É que a liberdade não é, tal como a vida, um valor absoluto. Os que defendem o direito legal a pedir a morte tendem a colocar a liberdade como valor supremo, logo, superior à vida; os que defendem que tal direito não deve ser permitido, tendem a valorizar a vida como supremo, logo, superior à liberdade. Nenhum é absoluto e ambos, vida e liberdade, não deveriam ser vistos como um excluindo o outro, pois ambos pertencem à esfera da dignidade humana. A tensão permanente de avaliar se a vida vale a pena sem liberdade e se a liberdade merece a perda da vida tem sido o motor das maiores decisões da História. Como, então, justificar a falta de liberdade para pedir a própria morte? É que, de facto, desejar não continuar a viver é uma situação limite, para lá da razão, da natureza, da vontade inata de viver e de sobreviver. Ela surge como último recurso perante a ausência de sentido, perante o sofrimento, a dor, a solidão, o abandono, a desesperança. E a pergunta que se impõe é se alguém, numa só ou num conjunto destas circunstâncias, se encontra verdadeiramente livre para decidir sobre a solução última, a única que não tem apelo nem revogação – a morte. Foi para esta questão que os Capelães das diferentes comunidades religiosas – homens e mulheres experientes, que lidam com o sofrimento e a morte nos hospitais todos os dias – mais se pronunciaram no documento que citámos.
Dizem eles que ninguém, mesmo que em sofrimento, que não esteja profundamente só, que não se sinta abandonado, que não sofra de falta de esperança, deseja verdadeiramente morrer. Não tenho a mesma certeza que eles, mas uma convicção, de facto, tenho: é uma irresponsabilidade moral oferecer uma saída irremediável sem ter feito todos os esforços para que tal dor, sofrimento, solidão e desesperança não tenham lugar. E, sim, nunca estarão feitos todos os esforços, pois uma vida só, vale todos os esforços. Aqui reside a imoralidade de permitir que alguém peça a sua morte, mesmo que com base na sua liberdade, autonomia e propriedade, num quadro de ausência de cuidados de fim de vida mínimos que garantam um acompanhamento digno, para já não exigir compassivo. A legalização da liberdade de alguém pedir a sua morte é a admissão de toda uma sociedade de que falhou em dar-lhe sentido para continuar a viver.
Um outro ponto que me interpela de forma especial relaciona-se com os limites dos discursos da religião e da política. A Igreja Adventista do Sétimo Dia pronunciou-se sobre a “Assistência aos Moribundos” em Declaração da sua mais alta autoridade eclesiástica e administrativa, a Sessão da Conferência Geral, em 1992. Aí estão plasmados pontos de partida que enquadram a sua proposta de reflexão para os seus membros e para a sociedade em geral: a dignidade do ser humano como criado por Deus e à imagem de Deus; o sofrimento e a morte como integrantes da condição e das circunstâncias humanas; a responsabilidade – de profissionais de saúde, familiares, amigos, crentes… – de mitigar a dor através da prestação de cuidados e do acompanhamento compassivo; o desafio dos avanços científicos, nomeadamente no prolongamento artificial e inconsequente da vida. Estes pontos de partida conduzem, então, a um conjunto de princípios que orientam a sua proposta sobre os limites da assistência àqueles em situação de doença terminal: a rejeição da Eutanásia, a chamada “boa morte”, como “golpe de misericórdia”, “o acto de tirar intencionalmente a vida a uma pessoa que está a morrer”; e a compreensão da interrupção da Distanásia, a prestação de cuidados que “apenas aumentem o sofrimento do doente, ou prolonguem desnecessariamente o processo de morrer”, logo, sem esperança de recuperação, e sempre de acordo com a vontade do doente e da sua família e das regras em vigor.
Mas a comunidade que represento também defende e observa os princípios da liberdade religiosa como fundamentais, em muito pela sua experiência passada e pela sua idiossincrasia doutrinária. Uma parte fulcral desse princípio é a separação bem nítida entre as esferas da Religião e da Política, do Estado e da(s) Igreja(s). Tomar posição num assunto público não é, pois, uma decisão de ânimo leve e é sempre apresentada de forma quase tímida. É por essa razão, por exemplo, que tal Igreja manifestou a sua posição sobre o valor da vida e de oposição à Eutanásia, justificando-a em declaração própria; mas não se pronunciou nem se pronunciará sobre a aprovação ou não da sua despenalização no Parlamento e não defenderá nem se oporá à realização de um Referendo. A vida – como os outros direitos fundamentais imanentes à dignidade humana – não deveria ser sujeita a votação, parlamentar ou referendária; mas não é por sê-lo que alterará o que as diferentes cosmovisões pensam e manifestam sobre ela. É outro plano. Se, por um lado — e felizmente — a Religião e as comunidades religiosas já não têm o poder de decidir politicamente, nem o pensamento livre contemporâneo lhes permite a veleidade de serem “donas” das consciências dos seus seguidores, também não devem os decisores políticos esperar o silêncio, a anuência e a complacência dos crentes em matérias do foro da consciência, condicionando-os com a acusação de interferência na Política, que não lhes deveria deter o primado, quanto mais o exclusivo.
É por isso que uma qualquer decisão não afectará a orientação moral de quem acompanha os doentes. Como diz um Capelão meu amigo: “O meu dever é acompanhar sempre. Lutarei até ao fim para que os que sofrem até ao limite nunca desejem a morte ao ponto de a pedir; mas, se tal acontecer, estarei lá nesse momento, sem recriminações e não os deixando sós… a segurar-lhes a mão”.
Por fim, a discussão da eutanásia chega num momento histórico particularmente sensível de desconstrução das características fundamentais de uma sociedade. O aumento da esperança média de vida, doenças crónicas durante largos períodos de tempo, a diminuição do número de filhos por família, a migração dos jovens por questões laborais, a quebra dos relacionamentos de vizinhança, por um lado; e a pressão sobre as instituições públicas e privadas de tratamento e acolhimento dos doentes e dos idosos, que dos factores anteriores derivam, por outro; são explicação para uma verdadeira “epidemia da solidão” (como lhe chama o Padre José Nuno Ferreira, porta-voz do referido Grupo de Trabalho) que assolará as gerações futuras. E que impacto terá na decisão de pedir a morte? À primeira vista, parece quase abjecto utilizar o argumento de “rampa deslizante”, no motivo e em número, alertando para um crescimento imprevisível de casos de pedido de morte para justificar a não despenalização da Eutanásia; mas não o é menos oferecer uma alternativa rápida e indolor para quem já não tem força ou motivação para viver, porque já não tem por quem ou para quê viver.
É também essa ausência de responsabilidade recíproca que constrói a noção de dignidade do ser humano. As gerações mais novas precisam de aprender, ao assistir e ao cuidar do sofrimento dos seus ascendentes, que uma vida vale por si, tem dignidade por si, é independente e está acima da perspectiva que a sociedade e que o próprio tem de si. Porque o valor é muito mais que a utilidade, e a dignidade é muito mais do que a condição. A dor e o sofrimento podem ser atrozes e não têm mérito em si mesmo. Mas o amor pelos mais jovens, aqueles que sonhamos que mantenham o que de melhor construímos, impõe-nos uma educação para a dor, para o sofrimento, para a morte, que seja humana, próxima, compassiva. O que melhor construímos, como sociedade e durante muito tempo, foi uma certa ideia de dignidade de cada ser humano.
É isto que se discute na actualidade, nos jornais, nos cafés, nas escolas, com mais ou com menos profundidade.
Na semana passada, a caminho de casa, a minha filha adolescente contou-me que se falou sobre eutanásia na aula de Cidadania. “Gostei muito do debate”, disse. “Mas achei estranho que quase todos os meus colegas concordassem com a eutanásia… Até houve alguém que disse que achava bem, porque a vida não é uma obrigação, é uma vontade”. Queremos que as futuras gerações cresçam e se formem na ideia de que a vida é uma vontade? A vida, quando inicia, não é uma vontade. Porque haveria de sê-lo ao morrer? E, principalmente, para bem de todos, será bom que pensemos na vida dos outros como uma obrigação nossa – com humanidade, proximidade, compaixão. Talvez assim, com a nossa obrigação perante os outros, os outros passem a ter mais vontade de viver. E vice-versa, quando chegar a nossa vez.                    EUTANÁSIA  SAÚDE 
COMENTÁRIO: João Faustino: A vida é uma dádiva, que cada um de nós contribua para que todos a sintamos como tal. Obrigado pelo texto.


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