Uma vez mais, uma caricatura merecida feita por AG sobre o nosso useiro e vezeiro status
de basbaques embevecidos com o aparato indiscreto causado por uma hipotética
pandemia, inspiradora de pânico, com o espalhafato concedido ao caso pelos
órgãos da imprensa e os próprios governantes.
Festival Coronavírus: seis curtíssimas
metragens /premium
A directora-geral de saúde avisa: “Não
nos devemos beijar todo o dia e a toda a hora”. Eu fique ceguinho se já me
ocorreu beijar, uma vez que fosse, a dra. Graça Freitas.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 29 fev 2020
Pacientes
zero
Face
à discrepância entre o número de suspeitos (uma resma deles) e o número de
casos confirmados (nenhum), o primeiro-ministro já veio serenar as massas e
prometer entusiasmado que, “mais tarde ou mais cedo”, Portugal terá o seu
primeiro paciente com o coronavírus. Falar é fácil. E, para o dr. Costa, mentir
é facílimo. Certo é que o tempo passa e até agora nada. No momento em que
escrevo, cinco dezenas de países exibem vítimas da doença e nós continuamos sem
uma para contar a história aos repórteres televisivos exaustos de entrevistar a
mulher do mecânico à porta de casa. Em
matéria de coronavírus, estamos como na economia: na cauda da Europa e nos
fundilhos do mundo. O país é tão pelintra que nem os micro-organismos querem
nada connosco. O bicharoco é igual aos terroristas islâmicos: se se apanhar por
cá, no dia seguinte atravessa a fronteira para causar baixas em lugares
civilizados. Etc. (Aceitam-se sugestões de novas graçolas alusivas à situação).
O costume dos suspeitos
A
propósito, de que modo se determina que um indivíduo é suspeito de sofrer do
coronavírus? Dito de outra maneira, o que distingue os suspeitos do coronavírus
dos suspeitos da gripe comum? Dito ainda de uma terceira forma, se amanhã for
ao médico por causa de um resfriado, quais as probabilidades de que me
receitarem Ilvico em vez de me submeterem a 35 horas de exames? O que decide, o
tipo de espirro? As férias recentes em Hubei, China? O palpite dos clínicos? A
cara do “utente”? Uma lista secreta de quotas para suspeitos a preencher por
cada hospital ou centro de saúde? E porque é que, mudando um bocadinho de
assunto, a quantidade de suspeitos sem doença cresce diariamente? O INEM
recebeu ordens para caçar transeuntes com pingo no nariz? Por fim, quem nos
garante que os suspeitos da gripe comum não padecem realmente do coronavírus? E
que os suspeitos não confirmados podem ficar aliviados com a eficácia das
análises? Convinha que as autoridades nos esclarecessem, logo que alguém
esclarecesse as autoridades.
Os nossos homens em Toyoake
Do
governo às entidades da saúde, dos jornalistas aos moços que cuidam dos
“alertas CM”, o país está mortinho, salvo seja, por encontrar o primeiro
português infectado com o coronavírus. Por sorte, há dois. Por azar, tiveram a
desconsideração de o “contrair” (sic) para os lados do Japão, que não fica à
mão de redacções televisivas sitas em Carnaxide, ou Almoxarife ou Alcabideche
ou lá o que é. E além das dificuldades logísticas, há as exigências simbólicas:
o herói que Portugal procura não pode ser um estrangeirado. É urgente que, no
meio de tantos suspeitos, se arranje depressa um Zé Carlos Santos, residente
num subúrbio e possuidor de uma família disposta a entreter os repórteres. Não
duvido de que estaremos entre os melhores do mundo em matéria de pacientes. Com
ou sem vírus, paciência é o que não nos falta.
Walking (não exactamente) dead
À
semelhança do sr. Canas, que através de jantaradas com o “eng.” Sócrates se
prepara há 40 anos para ser juiz do Tribunal Constitucional, é possível que a
dra. Temido se tenha preparado durante 45 anos para ser ministra da Saúde. Eu
preparo-me há 50 para ser governado por anedotas ambulantes. Mas ainda não
estou pronto. Sobre as pessoas que viajaram por zonas afectadas, a dra. Temido
afirmou: “Quem provenha destas regiões onde há transmissão do vírus deve ter
cuidados especiais, designadamente mantendo-se isolado (…)”. Ou seja, quem
passeou por Roma ou Seul deve, mal aterre por cá, fugir dos familiares à espera
no aeroporto e correr para locais ermos, por exemplo o topo de colinas,
shoppings falidos ou as instalações da Qimonda, onde ficará a vaguear, género
zombie, por tempo indeterminado. A alternativa seria testar os passageiros
que chegam da China e tal, mas tamanha irresponsabilidade custaria um
dinheirão, aliás necessário para “injectar” no Novo Banco e em alguns velhos.
Entretanto, fomos informados de que as declarações da dra. Temido constituíram
um lapso. Não era preciso: toda a gente sabe que a própria existência da dra.
Temido é um lapso.
Beijem-me, idiotas
É
preciso notar que nem todas as autoridades produzem disparates imediatamente
desmentidos. Algumas dizem asneiras que ninguém desmente. A directora-geral de
saúde avisa: “Não nos devemos beijar todo o dia e a toda a hora”. Eu fique
ceguinho se já me ocorreu beijar, uma vez que fosse, a dra. Graça Freitas.
A Oeste tudo de velho
Por
falar em beijinhos, resta o prof. Marcelo. Na noite de 17 de Junho de 2017, o
prof. Marcelo chegou a Pedrógão Grande e declarou: “O que se fez foi o máximo
que se poderia ter feito”. No dia 25 de Fevereiro de 2020, o prof. Marcelo
afirmou: “Tudo está a ser feito para lidar com o coronavírus”. É nestas alturas
que invejo os que sabem rezar. Se soubesse, rezaria para que o bicho mantenha o
desprezo por um lugarejo cujos líderes são criminalmente irresponsáveis, cujas
autoridades não têm autoridade nenhuma, cujos hospitais assistem à morte de
infelizes em salas de espera e cujo povo sente orgulho de semelhante circo, e
confia no circo para o proteger. Para a portugalidade é que não há cura.
COMENTÁRIO
Pedro J.: Muito bom!
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