domingo, 23 de fevereiro de 2020

Uma história de encantar



Com uma personagem de encanto, que os seus escritos farão perdurar. Por Maria de Fátima Bonifácio.
OPINIÃO:  Vasco Pulido Valente
Quantas pessoas haverá capazes de se exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO      PÚBLICO, 23 de Fevereiro de 2020
Em Setembro de 1974, fui convocada por Fernando Lopes para uma “reunião de trabalho” no Centro Português de Cinema. À hora marcada, cinco da tarde, compareci no local. Éramos mais de uma dúzia de pessoas, a maioria delas ligadas ao cinema, outras eram jornalistas e eu era estudante de História na Faculdade de Letras na Universidade de Lisboa. A ideia, se bem me lembro, era produzir um documentário sobre Portugal. Ideia vaga, que caberia ao Vasco precisar. Mas não havia maneira de o Vasco chegar. Finalmente, com mais de meia hora de atraso, lá entrou o personagem – que eu não conhecia nem nunca vira – com ar sorridente e desportivo. Disse umas graçolas sobre o Spínola a que eu não achei graça nenhuma. Do alto dos meus 26 anos, talvez no auge da minha infantil arrogância e insolência, enfrentei a criatura e repreendi-o por ter feito esperar tanto tempo tanta gente. Ou seja, não podia ser mais atrevida e inconveniente. A reunião lá começou e já não sei como acabou. Cada um foi à sua vida, e eu à minha. Quinze dias depois, o telefone toca em minha casa. Atendi. Era o Vasco Pulido Valente a perguntar-me se eu não quereria ir trabalhar com ele no recém-criado Departamento de Programas Político-Sociais na RTP, do qual ele fora nomeado coordenador ou chefe ou outra coisa qualquer. Fiquei estupefacta! Mas não levei mais do que dois ou três segundos a perceber que ele tinha apreciado a minha irreverência. Ao longo da vida, nunca mais esta qualidade me serviu de trunfo para nada – bem pelo contrário, serviu-me para arranjar sarilhos e inimizades. Este episódio, à primeira vista tão banal, revelou-me que encontrara uma pessoa muito especial e peculiar. Eu lá entrei para a Televisão, e o Vasco bateu a porta duas ou três semanas depois. Déramo-nos bem, estabelecera-se entre nós uma espécie de amizade e dentro de pouco tempo já tínhamos amigos comuns. Mas mantive sempre com o Vasco uma relação à parte. Almoçávamos ou jantávamos juntos com regular assiduidade. Começámos pelo “Isaura”, que frequentámos bastante tempo; daqui passámos para o “Polícia”, onde jantávamos quase quinzenalmente; e, num upgrade final, mudámo-nos para o “Gambrinus”: já tínhamos subido na vida o suficiente para sustentar este luxo.
Mas foi ainda no tempo do “Isaura” que o Vasco um dia me deixou completamente desconcertada. Falávamos sobre as pessoas, as suas qualidades e defeitos. Eu disse qualquer coisa como – “Ninguém fala dos seus defeitos mais graves ou feios”. Resposta: “Pois eu falo”. Pergunta: “Então diz lá um defeito teu daqueles que as pessoas não mencionam.” Resposta: “Olha, por exemplo, sou mentiroso.” “Repete lá isso!”. “Eu sou mentiroso”. Fiquei atónita e sem palavras: tanta coragem moral! Desde esse dia passei a olhar para o Vasco com muita admiração e muito respeitinho. Quantas pessoas haverá capazes de se exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.
Não tem fim o que lhe devo. De todas as vezes que estivemos juntos aprendi sempre alguma coisa com ele; ou levava para casa uma questão para pensar. Principalmente, foi com o Vasco que aprendi a escrever história, num tempo em que a produção historiográfica portuguesa, esmagada entre o academismo e o marxismo, era praticamente ilegível. Sobre isto, o Vasco era divertidíssimo, mormente quando dedilhava as suas cordas mais cáusticas e mordazes, que eram as minhas preferidas. Estas duas qualidades, sobretudo, irritavam os leitores das suas inúmeras crónicas: que era um pessimista crónico, talhado para só ver o lado sombrio da existência. De facto, esta não lhe aparecia pelo lado solar, e ele não estava disposto a dourar a pílula da vida ou o mundo. Vasco Pulido Valente sempre foi o implacável escritor de uma justificada desesperança.
A sua inteligência deslumbrava – do Vasco Pulido Valente se pode dizer, com toda a pertinência, que era um génio. A sua cultura enciclopédica era esmagadora – mas esta, trabalhada e assimilada pela sua mente superior, transformou-a ele num método de pensar. A inexcedível beleza da sua prosa servia à maravilha esta espécie de alquimia. Resta acrescentar que existe um fio condutor que confere coerência ao que muitas vezes pareciam incongruências: a sua absoluta intransigência em relação à Liberdade. Foi um homem livre e sempre respeitou a total liberdade dos outros, mesmo quando esta tocava as raias da extravagância. Parece fácil ou evidente? Não, é muito difícil, e foi, em Vasco Pulido Valente, a forma privilegiada da sua generosidade. Historiadora

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