Com uma personagem de encanto, que os
seus escritos farão perdurar. Por Maria
de Fátima Bonifácio.
OPINIÃO: Vasco
Pulido Valente
Quantas pessoas haverá capazes de se
exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.
M.
FÁTIMA BONIFÁCIO PÚBLICO, 23 de Fevereiro de 2020
Em
Setembro de 1974, fui convocada por Fernando Lopes para uma “reunião de
trabalho” no Centro Português de Cinema. À hora marcada, cinco da tarde,
compareci no local. Éramos mais de uma dúzia de pessoas, a maioria delas
ligadas ao cinema, outras eram jornalistas e eu era estudante de História na
Faculdade de Letras na Universidade de Lisboa. A ideia, se bem me lembro,
era produzir um documentário sobre Portugal. Ideia vaga, que
caberia ao Vasco precisar. Mas não havia maneira de o Vasco chegar. Finalmente,
com mais de meia hora de atraso, lá entrou o personagem – que eu não conhecia
nem nunca vira – com ar sorridente e desportivo. Disse umas graçolas sobre o
Spínola a que eu não achei graça nenhuma. Do alto dos meus 26 anos, talvez no
auge da minha infantil arrogância e insolência, enfrentei a criatura e
repreendi-o por ter feito esperar tanto tempo tanta gente. Ou seja, não podia ser
mais atrevida e inconveniente. A reunião lá começou e já não sei como
acabou. Cada um foi à sua vida, e eu à minha. Quinze dias depois, o telefone toca
em minha casa. Atendi. Era o Vasco Pulido Valente a
perguntar-me se eu não quereria ir trabalhar com ele no recém-criado
Departamento de Programas Político-Sociais na RTP, do qual ele fora nomeado
coordenador ou chefe ou outra coisa qualquer. Fiquei estupefacta! Mas não levei
mais do que dois ou três segundos a perceber que ele tinha apreciado a minha
irreverência. Ao longo da vida, nunca mais esta qualidade me serviu de
trunfo para nada – bem pelo contrário, serviu-me para arranjar sarilhos e
inimizades. Este episódio, à primeira vista tão banal, revelou-me
que encontrara uma pessoa muito especial e peculiar. Eu lá entrei para a Televisão, e o Vasco bateu a
porta duas ou três semanas depois. Déramo-nos bem, estabelecera-se entre nós
uma espécie de amizade e dentro de pouco tempo já tínhamos amigos comuns. Mas
mantive sempre com o Vasco uma relação à parte. Almoçávamos ou jantávamos
juntos com regular assiduidade. Começámos pelo “Isaura”, que frequentámos
bastante tempo; daqui passámos para o “Polícia”, onde jantávamos quase
quinzenalmente; e, num upgrade final, mudámo-nos para o “Gambrinus”: já
tínhamos subido na vida o suficiente para sustentar este luxo.
Mas
foi ainda no tempo do “Isaura” que o Vasco um dia me deixou completamente
desconcertada. Falávamos sobre as pessoas, as suas qualidades e defeitos. Eu
disse qualquer coisa como – “Ninguém fala dos seus defeitos mais graves ou
feios”. Resposta: “Pois eu falo”. Pergunta: “Então diz lá um defeito teu
daqueles que as pessoas não mencionam.” Resposta: “Olha, por exemplo, sou
mentiroso.” “Repete lá isso!”. “Eu sou mentiroso”. Fiquei atónita e
sem palavras: tanta coragem moral! Desde esse dia passei a olhar para o Vasco
com muita admiração e muito respeitinho. Quantas pessoas haverá capazes de se
exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.
Não
tem fim o que lhe devo. De todas as vezes que estivemos juntos aprendi
sempre alguma coisa com ele; ou levava para casa uma questão para pensar.
Principalmente, foi com o Vasco que aprendi a escrever história, num tempo em
que a produção historiográfica portuguesa, esmagada entre
o academismo e o marxismo, era praticamente ilegível. Sobre
isto, o Vasco era divertidíssimo, mormente quando dedilhava as suas cordas mais
cáusticas e mordazes, que eram as minhas preferidas. Estas duas
qualidades, sobretudo, irritavam os leitores das suas inúmeras crónicas: que
era um pessimista crónico, talhado para só ver o lado sombrio da existência. De
facto, esta não lhe aparecia pelo lado solar, e ele não estava disposto a
dourar a pílula da vida ou o mundo. Vasco Pulido Valente sempre foi o
implacável escritor de uma justificada desesperança.
A sua inteligência deslumbrava – do
Vasco Pulido Valente se pode dizer, com toda a pertinência, que era um génio. A
sua cultura enciclopédica era esmagadora – mas esta, trabalhada e assimilada
pela sua mente superior, transformou-a ele num método de pensar. A inexcedível beleza da sua prosa servia à maravilha
esta espécie de alquimia. Resta acrescentar que existe um fio condutor que
confere coerência ao que muitas vezes pareciam incongruências: a sua absoluta
intransigência em relação à Liberdade. Foi um
homem livre e sempre respeitou a total liberdade dos outros, mesmo quando esta
tocava as raias da extravagância. Parece fácil ou evidente? Não, é muito
difícil, e foi, em Vasco Pulido Valente, a forma privilegiada da sua
generosidade. Historiadora
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