quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Um exemplo de retrato inamovível



Sem retoques. Impiedoso e cruel. Nasceu connosco, esse retrato, morrerá connosco, povo que somos, como já Eça e outros nos descreviam, com raiva, talvez, mas com pena certamente, que, no caso de Eça, um saudosismo posterior iria inverter para o apego real às coisas nacionais. Este, de VPV, é de 17/10/2010. Extraído do livro de Vasco Pulido Valentede mal a pior”, publicado em 2016 por “Publicações D. Quixote, e, segundo o autor, “Estas crónicas são uma pequena parte das centenas que escrevi entre 1998 e 2015. Pedi a Miguel Pinheiro que as seleccionasse para que o conjunto agora publicado fosse o resultado de um olhar mais fresco e mais desinteressado do que o meu. Por mim, gostei da escolha.”
Um livro de fácil leitura, em pequenos trechos de um derrotismo imanente, que poderia ensinar-nos a sentirmos tristeza e vergonha e a desejarmos corrigir-nos, mas a estratificação é antiga, em calçada à portuguesa definitivamente rebuscada e artificiosa, mas as mais das vezes esburacada e com lombas, propícia a quedas, como tantas casas e monumentos degradados, mau grado os consertos que por vezes se verificam aqui ou além, segundo respeitáveis determinações governativas. Nas aldeias, aliás, o panorama foi rejuvenescido, com casas novas e seus jardins cuidados, casas de emigrantes que por vezes vêm nas férias – cada vez menos, parece-nos, pois, mantendo um aparato de frescura e cor, permanecem silenciosas e sem movimento perceptível, até mesmo nas férias, os seus “moradores” emigrantes tendo-as construído quer por demonstração orgulhosa de êxito nas suas vidas fora do seu país, quer por prevenção para uma velhice na terra natal, que acabam por desdenhar, presos ao maior requinte do seu viver junto da família que criaram e permanece no estrangeiro, definitivamente mais justiceiro para com os seus trabalhadores que não traiu.
Eis a crónica “A vassourada” que VPV, escreveu em 17/10/2010, como exemplo da escrita sinteticamente analítica, nas suas zargunchadas sem temor, de quem emotivamente, afinal, desejaria que assim não fosse, como, aliás, a última crónica exemplifica, de 4/3/2006`”E entretanto, o indivíduo morreu. Não fui feito para isto.”

A VASSOURADA
«O Governo entregou um Orçamento incompleto no último minuto. Os queixumes, como se esperava, foram gerais. A classe média – da classe média baixa à classe média alta – vai pagar a crise, como suspeitavam e agora proclamam, com indignação, os jornais de referência. Não se percebe o escândalo e a surpresa. A classe média que por aí anda – é necessária a paciência de o repetir – não passa de uma emanação torpe e maligna, do Estado democrático. A administração central e a administração local inventaram maneiras de a criar (e lhe pagar), a troco da fidelidade e do voto, para não fazer nada de útil e de produtivo. Desde o princípio que os partidos vivem dela e que ela, inerte e incapaz, tornou o país num covil de parasitas sem vergonha ou carácter. O desaparecimento do funcionalismo directo ou indirecto (ou, pelo menos de quatro quintos dele) não prejudicaria ninguém.
Conheço pessoas que o PSD e o PS (e até o PC) a seu tempo instalaram em altas posições que mal sabem ler e, definitivamente, não sabem escrever. Conheço pessoas que se dedicam antes de mais nada a justificar a sua injustificável existência, pelo curioso meio de aumentar a “verba” e o pessoal do departamento onde por acaso caíram com o único propósito de promover o seu estatuto, espatifando zelosamente o que lhe dão. Vejo dia-a-dia a obra das câmaras, que pouco a pouco se tornou um exercício de extravagância, megalomania e, desconfio, em muitos casos de puro latrocínio. Podia fazer uma longa lista de gente que o Estado persiste em sustentar em nome de actividades sem espécie de justificação possível. Como podia fazer uma longa lista dos “negócios” em que se meteram milhões, em exclusivo benefício de interesses que não sofrem descrição.
Que todo este mundo se afunde e desapareça, com os seus “cartões de crédito” de “representação” e os seus carros de empresa, com as suas casas no Recife e as suas férias na Tailândia não me comove. Portugal precisa de uma grande vassourada e a tragédia será que a crise poupe esta piolheira. Ontem descobri num restaurante que já se festeja intensamente o Natal. A degradação a que a nossa classe média chegou não se cura com menos de uma catástrofe. O primeiro-ministro, José Sócrates, não é um acaso, é um símbolo: o símbolo da vacuidade, da ambição e do oportunismo que o regime permitiu e protegeu.»

Da crónica seguinte, de 4/12/2010, “Uma tragédia portuguesa”, extraio o parágrafo final:
“O segundo mistério de Nogueira Leite é a frequência e a finalidade com que ele remete as mais graves desordens do presente para a tradição cultural do país, sem explicar exactamente em que tradição está a pensar. Fala a certa altura, como Antero no século XIX, do ethos do catolicismo. Infelizmente não lhe ocorre que a grande e genuína tradição portuguesa é a miséria. O horror ao risco, o compadrio, a obsessão com o Estado, a ânsia de aproveitar as vacas gordas vêm sempre (e virão sempre) da insegurança e da pobreza. Dar – com o euro – a chave do banco a uma população famélica leva inevitavelmente ao que levou. Agora apareceu a factura. Só que o país não irá reagir como Nogueira Leite espera com racionalidade, liberdade e trabalho. A tragédia portuguesa é essa.»

Sim, julgo que sim, mas não se aplica a todos. No passado, tivemos heróis que desbravaram mares e mundos, por ânsia de adquirir fortuna, talvez, como, mais tarde, passaram a fronteira, esses emigrantes corajosos, movidos pelas suas ambições justas, numa pátria, é certo, desde sempre “metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. A vil tristeza comandada superiormente, por falta, isso sim, de educação adequada. Mas Vasco Pulido Valente foi dos que desde sempre desprezou, na pátria, a própria escola, onde cometeu desacatos, mas teve o privilégio de poder estudar fora, entre gente exigente que o tornou mais exigente.
Ainda bem que assim foi. Talvez que a sua exigência altiva ajude um pouco essas classes da nossa escassez social a corrigir tais tendências miserabilistas tão indignas de um povo. Para isso era preciso lê-lo. E repudiá-lo nessa generalização que não atingirá, certamente, muitos dos que, trabalhando com seriedade e profissionalismo, não aceitarão, certamente, a crueza arrogante  e pueril que a todos engloba, sem contemplação.

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