Sem retoques. Impiedoso e cruel. Nasceu
connosco, esse retrato, morrerá connosco, povo que somos, como já Eça e outros
nos descreviam, com raiva, talvez, mas com pena certamente, que, no caso de
Eça, um saudosismo posterior iria inverter para o apego real às coisas
nacionais. Este, de VPV, é de
17/10/2010. Extraído do livro de Vasco
Pulido Valente “de mal a pior”, publicado
em 2016 por “Publicações D. Quixote”, e, segundo
o autor, “Estas crónicas são uma pequena
parte das centenas que escrevi entre 1998 e 2015. Pedi a Miguel Pinheiro
que as seleccionasse para que o conjunto agora publicado fosse o resultado de
um olhar mais fresco e mais desinteressado do que o meu. Por mim, gostei da
escolha.”
Um livro de fácil leitura, em pequenos
trechos de um derrotismo imanente, que poderia ensinar-nos a sentirmos tristeza
e vergonha e a desejarmos corrigir-nos, mas a estratificação é antiga, em
calçada à portuguesa definitivamente rebuscada e artificiosa, mas as mais das
vezes esburacada e com lombas, propícia a quedas, como tantas casas e
monumentos degradados, mau grado os consertos que por vezes se verificam aqui
ou além, segundo respeitáveis determinações governativas. Nas aldeias, aliás, o
panorama foi rejuvenescido, com casas novas e seus jardins cuidados, casas de
emigrantes que por vezes vêm nas férias – cada vez menos, parece-nos, pois,
mantendo um aparato de frescura e cor, permanecem silenciosas e sem movimento
perceptível, até mesmo nas férias, os seus “moradores” emigrantes tendo-as
construído quer por demonstração orgulhosa de êxito nas suas vidas fora do seu
país, quer por prevenção para uma velhice na terra natal, que acabam por
desdenhar, presos ao maior requinte do seu viver junto da família que criaram e
permanece no estrangeiro, definitivamente mais justiceiro para com os seus
trabalhadores que não traiu.
Eis a crónica “A vassourada” que VPV, escreveu em 17/10/2010, como
exemplo da escrita sinteticamente analítica, nas suas zargunchadas sem temor,
de quem emotivamente, afinal, desejaria que assim não fosse, como, aliás, a
última crónica exemplifica, de 4/3/2006`”E
entretanto, o indivíduo morreu. Não fui feito para isto.”
A
VASSOURADA
«O
Governo entregou um Orçamento incompleto no último minuto. Os queixumes, como
se esperava, foram gerais. A classe média – da classe média baixa à classe média
alta – vai pagar a crise, como suspeitavam e agora proclamam, com indignação,
os jornais de referência. Não se percebe o escândalo e a surpresa. A classe
média que por aí anda – é necessária a paciência de o repetir – não passa de uma
emanação torpe e maligna, do Estado democrático. A administração central e a
administração local inventaram maneiras de a criar (e lhe pagar), a troco da
fidelidade e do voto, para não fazer nada de útil e de produtivo. Desde o
princípio que os partidos vivem dela e que ela, inerte e incapaz, tornou o país
num covil de parasitas sem vergonha ou carácter. O desaparecimento do
funcionalismo directo ou indirecto (ou, pelo menos de quatro quintos dele) não
prejudicaria ninguém.
Conheço
pessoas que o PSD e o PS (e até o PC) a seu tempo instalaram em altas posições
que mal sabem ler e, definitivamente, não sabem escrever. Conheço pessoas que
se dedicam antes de mais nada a justificar a sua injustificável existência,
pelo curioso meio de aumentar a “verba” e o pessoal do departamento onde por
acaso caíram com o único propósito de promover o seu estatuto, espatifando
zelosamente o que lhe dão. Vejo dia-a-dia a obra das câmaras, que pouco a pouco
se tornou um exercício de extravagância, megalomania e, desconfio, em muitos
casos de puro latrocínio. Podia fazer uma longa lista de gente que o Estado
persiste em sustentar em nome de actividades sem espécie de justificação
possível. Como podia fazer uma longa lista dos “negócios” em que se meteram
milhões, em exclusivo benefício de interesses que não sofrem descrição.
Que
todo este mundo se afunde e desapareça, com os seus “cartões de crédito” de “representação”
e os seus carros de empresa, com as suas casas no Recife e as suas férias na
Tailândia não me comove. Portugal precisa de uma grande vassourada e a tragédia
será que a crise poupe esta piolheira. Ontem descobri num restaurante que já se
festeja intensamente o Natal. A degradação a que a nossa classe média chegou
não se cura com menos de uma catástrofe. O primeiro-ministro, José Sócrates,
não é um acaso, é um símbolo: o símbolo da vacuidade, da ambição e do
oportunismo que o regime permitiu e protegeu.»
Da crónica seguinte, de 4/12/2010, “Uma
tragédia portuguesa”, extraio o parágrafo final:
“O
segundo mistério de Nogueira Leite é a frequência e a finalidade com que ele
remete as mais graves desordens do presente para a tradição cultural do país,
sem explicar exactamente em que tradição está a pensar. Fala a certa altura,
como Antero no século XIX, do ethos
do catolicismo. Infelizmente não lhe ocorre que a grande e genuína tradição
portuguesa é a miséria. O horror ao risco, o compadrio, a obsessão com o
Estado, a ânsia de aproveitar as vacas gordas vêm sempre (e virão sempre) da
insegurança e da pobreza. Dar – com o euro – a chave do banco a uma
população famélica leva inevitavelmente ao que levou. Agora apareceu a
factura. Só que o país não irá reagir como Nogueira Leite espera com racionalidade,
liberdade e trabalho. A tragédia portuguesa é essa.»
Sim, julgo que sim, mas não se aplica a
todos. No passado, tivemos heróis que desbravaram mares e mundos, por ânsia de
adquirir fortuna, talvez, como, mais tarde, passaram a fronteira, esses
emigrantes corajosos, movidos pelas suas ambições justas, numa pátria, é certo,
desde sempre “metida no gosto da cobiça e
na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. A vil tristeza comandada
superiormente, por falta, isso sim, de educação adequada. Mas Vasco Pulido Valente foi dos que
desde sempre desprezou, na pátria, a própria escola, onde cometeu desacatos,
mas teve o privilégio de poder estudar fora, entre gente exigente que o tornou mais
exigente.
Ainda bem que assim foi. Talvez que a
sua exigência altiva ajude um pouco essas classes da nossa escassez social a
corrigir tais tendências miserabilistas tão indignas de um povo. Para isso
era preciso lê-lo. E repudiá-lo nessa generalização que não atingirá, certamente, muitos dos que, trabalhando com seriedade e profissionalismo, não aceitarão, certamente, a crueza arrogante e pueril que a todos engloba, sem contemplação.
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