quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

“Hadrien”



Foi Adriano um imperador romano, filho adoptivo de Trajano e seu sucessor, que governou no segundo século da nossa era, com pulso duro mas com nobreza e determinação, e cujas memórias Marguerite Yourcenar ficciona para nos dar a imagem de uma figura ímpar de sinceridade e grandeza autocríticas de grande rigor analítico. Nos finais da vida, ansiado pelas dores, ele próprio informa (o seu filho adoptivo e sucessor, Marco Aurélio) que teve desejos de se apagar, e bem sugestivas são as páginas em torno do uso da sua liberdade para o fazer - do que desistiu após a má experiência com um fiel assistente dos seus sonos agitados, Iollas, a quem ele seduzira para o matar, mas que preferira matar-se a si próprio, incapaz de atentar contra a vida do seu amado imperador. São de extrema dureza realista as referências aos sofrimentos morais e físicos finais, nas “Mémoires d’Hadrien”, livro publicado em 1951 e seguindo uma documentação ampla em torno da figura, sobre a qual Marguerite Yourcenar recria essas memórias. E uma bela lição de vida, a resolução final de continuar a aceitar viver:
«Eu compreendi que o suicídio pareceria ao pequeno grupo de amigos dedicados que me rodeiam uma marca de indiferença, de ingratidão, talvez; não quero deixar à sua amizade esta imagem amarga de um supliciado incapaz de suportar uma tortura mais. Outras considerações se me apresentaram, lentamente, durante a noite que seguiu a morte de Iollas: a existência deu-me muito, ou, pelo menos, eu soube obter muito dela: neste momento, como no tempo da minha felicidade, e por razões bem opostas, parece-me que ela não tem mais nada a oferecer-me: não tenho a certeza de não ter mais nada a aprender com ela. Escutarei as suas instruções até ao fim. Em toda a minha vida eu confiei na sabedoria do meu corpo: tratei de saborear com discernimento as sensações que me concedia este amigo: devo a mim próprio o apreciar-lhe também as últimas. Não recuso mais esta agonia feita para mim, este fim lentamente elaborado no fundo das minhas artérias, talvez herdado de um antepassado, nascido do meu temperamento preparado pouco a pouco por cada um dos meus actos ao longo da minha vida. A hora da impaciência passou: no ponto em que estou, o desespero seria de tão mau gosto como a esperança. Renunciei a precipitar a minha morte.»
São reflexões de um homem que teve forças e fraquezas, mas que se impõe pelo estoicismo e pela grandeza de carácter que a nem todos são facultados. Mas servem para criar em nós uma noção de respeito pelo ser que somos, na humildade de não nos considerarmos senhores de uma vida que nos foi dada. O sofrimento, compete aos outros o debelá-lo, não o de lhes fornecermos a liberdade de empunhar o gládio assassino, nem a nós a arrogância sem nome de lho estendermos-
São considerações que surgem na sequência de mais um texto certeiro e argutamente irónico, apenas mais uma opinião de alguém com dois dedos de testa e de coração, que se não deixa manipular pelos dizeres perversos da nova acefalia social. O texto de Walter Osswald - Vamos à morte, que a vida é certa, entre os imensos de gente que protesta e que não merecerão a atenção dos nossos “Adrianos” augustos.

OPINIÃO
Vamos à morte, que a vida é certa
O decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.
WALTER OSSWALD
PÚBLICO, 19 de Fevereiro de 2020
Há tempos ouvi a Vasco Pinto de Magalhães esta frase, que é a inversão do bem conhecido dito popular. Vem-me com frequência à mente, nos últimos tempos, esta asserção, que os projectos de lei acerca da eutanásia e da ajuda ao suicídio têm tornado particularmente actual.
Projectos de lei praticamente sobreponíveis (alguns até recorrem ao mesmo fraseado) que têm como cerne a despenalização da morte a pedido, posta em prática por terceiro (nestes projectos, um médico); projectos pobremente fundamentados, com textos introdutórios que, em vez de justificarem o corpo da lei, exemplificam confusão e contradição. Na realidade, a relevância total e definitiva dada à autonomia é filosoficamente inaceitável e negada pela realidade: a autonomia é um importante princípio ético, mas ela é sempre conjuntural, limitada e relacional. Recorrem os textos igualmente ao conceito de sofrimento, sem o tentarem caracterizar e tornar operacional; sendo de natureza subjectiva, não mensurável, a presença de sofrimento dependerá apenas das declarações de quem o possa viver. De resto, não se compreende, nesta linha de pensamento, a proposta de restrições ou limitações à elegibilidade para acesso à eutanásia – se a autonomia é o factor crucial, então qualquer adulto não padecendo de doença psíquica deveria poder candidatar-se à eutanásia, mesmo estando de perfeita saúde (circunstância em que o exercício da autonomia é bem mais garantido do que se houver doença grave ou terminal).
Acresce que a iniciativa de legislar nesta matéria é extemporânea e inútil: não há qualquer movimento de fundo na sociedade portuguesa a exigir que se legisle nesta matéria (é certo que existe uma petição nesse sentido, mas há outra, até com mais assinaturas, em sentido oposto) e não há conhecimento de conflitos suscitados por pedidos de eutanásia não atendidos pelos profissionais de saúde. Pelo contrário, oncologistas, médicos de cuidados paliativos, outros profissionais que lidam diariamente com a morte, afirmam que é extremamente raro o pedido de eutanásia e que por via de regra a atenção e a prestação de cuidados adequados e personalizados fazem desaparecer essas raras solicitações.
Outro aspecto importante para avaliar a bondade de uma inovação legislativa é, obviamente, a natureza e amplidão das consequências que poderá ter. Ora, nesta área temos certezas, resultantes do que se passou na última década na Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. Assim, é certo que existe a praxis de um alargamento de indicações, condições restritivas, de uma banalização do excepcional. É fenómeno bem conhecido o da rampa deslizante, em consequência do qual pessoas sãs mas alegando cansaço de viver têm acesso à eutanásia, o mesmo acontecendo com crianças doentes, a pedido dos seus progenitores. De resto, se fosse aprovado qualquer dos projectos agora apresentados, nem sequer seria necessário esperar pela instalação da rampa deslizante para podermos assistir à eutanásia de cegos ou amputados, já que os projectos incluem estas condições (perda irreparável e definitiva de órgão) como admitindo o recurso à prática letal.
A eventual aprovação de legislação deste tipo implicaria uma profunda alteração de normas e vivências da sociedade portuguesa. Se a vida humana sob certas condições deixar de ser inviolável, então abrir-se-á a porta à demanda extremista, latente em certos círculos, da re-introdução da pena de morte para delitos particularmente graves; e será necessário rever a atitude da sociedade e particularmente dos meios da saúde quanto ao suicídio. Se for legítima a ajuda ao acto suicidário, como poderemos justificar a prevenção do suicídio, os esforços para impedir a concretização do acto em si e o tratamento médico de tentativas de suicídio?
Não há dúvidas de que este tema é, como se tornou usual dizer, fracturante. Isto significa que as opiniões se dividem, com os profissionais de saúde, que devem ser os peritos nesta matéria, a rejeitarem maioritariamente a eutanásia. Sendo assim, e não existindo qualquer pressão da opinião pública para urgência legislativa, porque existe oposição à realização de um referendo esclarecedor? Existirá uma necessidade político-partidária de arrumar o assunto antes de uma eventual alteração das condições hoje existentes na nossa Assembleia, insinuando-se assim no espírito do cidadão comum a noção de que há um parlamento mau (o que reprovou há um ano e meio a eutanásia) e um parlamento bom (o que parece querer aprová-la). O decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.
Afinal, o povo tem razão: vamos à vida, que a morte é certa.
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