Foi Adriano
um imperador romano, filho adoptivo de Trajano
e seu sucessor, que governou no segundo século da nossa era, com pulso duro mas
com nobreza e determinação, e cujas memórias Marguerite Yourcenar ficciona para nos dar a imagem de uma figura ímpar de
sinceridade e grandeza autocríticas de grande rigor analítico. Nos finais da
vida, ansiado pelas dores, ele próprio informa (o seu filho adoptivo e
sucessor, Marco Aurélio) que teve
desejos de se apagar, e bem sugestivas são as páginas em torno do uso da sua
liberdade para o fazer - do que desistiu após a má experiência com um fiel
assistente dos seus sonos agitados, Iollas,
a quem ele seduzira para o matar, mas que preferira matar-se a si próprio,
incapaz de atentar contra a vida do seu amado imperador. São de extrema dureza realista
as referências aos sofrimentos morais e físicos finais, nas “Mémoires d’Hadrien”, livro publicado em 1951
e seguindo uma documentação ampla em torno da figura, sobre a qual Marguerite Yourcenar recria essas
memórias. E uma bela lição de vida, a resolução final de continuar a aceitar
viver:
«Eu
compreendi que o suicídio pareceria ao pequeno grupo de amigos dedicados que me
rodeiam uma marca de indiferença, de ingratidão, talvez; não quero deixar à sua
amizade esta imagem amarga de um supliciado incapaz de suportar uma tortura
mais. Outras considerações se me apresentaram, lentamente, durante a noite que
seguiu a morte de Iollas: a existência deu-me muito, ou, pelo menos, eu soube
obter muito dela: neste momento, como no tempo da minha felicidade, e por
razões bem opostas, parece-me que ela não tem mais nada a oferecer-me: não
tenho a certeza de não ter mais nada a aprender com ela. Escutarei as suas
instruções até ao fim. Em toda a minha vida eu confiei na sabedoria do meu
corpo: tratei de saborear com discernimento as sensações que me concedia este
amigo: devo a mim próprio o apreciar-lhe também as últimas. Não recuso mais
esta agonia feita para mim, este fim lentamente elaborado no fundo das minhas
artérias, talvez herdado de um antepassado, nascido do meu temperamento
preparado pouco a pouco por cada um dos meus actos ao longo da minha vida. A
hora da impaciência passou: no ponto em que estou, o desespero seria de tão mau
gosto como a esperança. Renunciei a precipitar a minha morte.»
São reflexões de um homem que teve
forças e fraquezas, mas que se impõe pelo estoicismo e pela grandeza de
carácter que a nem todos são facultados. Mas servem para criar em nós uma noção
de respeito pelo ser que somos, na humildade de não nos considerarmos senhores
de uma vida que nos foi dada. O sofrimento, compete aos outros o debelá-lo, não
o de lhes fornecermos a liberdade de empunhar o gládio assassino, nem a nós a
arrogância sem nome de lho estendermos-
São considerações que surgem na
sequência de mais um texto certeiro e argutamente irónico, apenas mais uma
opinião de alguém com dois dedos de testa e de coração, que se não deixa
manipular pelos dizeres perversos da nova acefalia social. O texto de Walter Osswald - Vamos à morte, que a vida é certa, entre os
imensos de gente que protesta e que não merecerão a atenção
dos nossos “Adrianos” augustos.
OPINIÃO
Vamos à morte, que a vida é certa
O
decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate
nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.
WALTER OSSWALD
PÚBLICO, 19 de
Fevereiro de 2020
Há
tempos ouvi a Vasco Pinto de Magalhães esta frase, que é a inversão do bem
conhecido dito popular. Vem-me com frequência à mente, nos últimos tempos, esta
asserção, que os
projectos de lei acerca da eutanásia e da ajuda ao suicídio têm
tornado particularmente actual.
Projectos
de lei praticamente sobreponíveis (alguns até recorrem ao mesmo fraseado) que
têm como cerne a despenalização da morte a pedido, posta em prática por
terceiro (nestes projectos, um médico); projectos pobremente
fundamentados, com textos introdutórios que, em vez de justificarem o corpo da
lei, exemplificam confusão e contradição. Na realidade, a
relevância total e definitiva dada à autonomia é filosoficamente inaceitável e
negada pela realidade: a autonomia é um importante princípio ético, mas ela é
sempre conjuntural, limitada e relacional. Recorrem
os textos igualmente ao conceito de sofrimento, sem o tentarem caracterizar e
tornar operacional; sendo de natureza subjectiva, não mensurável, a presença de
sofrimento dependerá apenas das declarações de quem o possa viver. De
resto, não se compreende, nesta linha de pensamento, a proposta de restrições
ou limitações à elegibilidade para acesso à eutanásia – se a autonomia é o
factor crucial, então qualquer adulto não padecendo de doença psíquica deveria
poder candidatar-se à eutanásia, mesmo estando de perfeita saúde (circunstância
em que o exercício da autonomia é bem mais garantido do que se houver doença
grave ou terminal).
Acresce que a iniciativa de legislar
nesta matéria é extemporânea e inútil: não
há qualquer movimento de fundo na sociedade portuguesa a exigir que se legisle
nesta matéria (é certo que existe uma petição nesse sentido, mas há outra, até
com mais assinaturas, em sentido oposto) e não há conhecimento de conflitos
suscitados por pedidos de eutanásia não atendidos pelos profissionais de saúde.
Pelo contrário, oncologistas, médicos de cuidados
paliativos, outros profissionais que lidam diariamente com a morte, afirmam que
é extremamente raro o pedido de eutanásia e que por via de regra a atenção e
a prestação de cuidados adequados e personalizados fazem desaparecer essas
raras solicitações.
Outro aspecto importante para avaliar a bondade de uma inovação
legislativa é, obviamente, a natureza e amplidão das consequências que poderá
ter. Ora, nesta área temos certezas,
resultantes do que se passou na última década na Bélgica, Países Baixos e
Luxemburgo. Assim, é certo que existe a praxis de um alargamento
de indicações, condições restritivas, de uma banalização do excepcional. É fenómeno bem conhecido o da rampa
deslizante, em consequência do qual pessoas sãs mas alegando cansaço de viver
têm acesso à eutanásia, o mesmo acontecendo com crianças doentes, a pedido dos
seus progenitores. De resto, se fosse aprovado qualquer dos projectos agora
apresentados, nem sequer seria necessário esperar pela instalação da rampa
deslizante para podermos assistir à eutanásia de cegos ou amputados, já que os
projectos incluem estas condições (perda irreparável e definitiva de órgão)
como admitindo o recurso à prática letal.
A eventual
aprovação de legislação deste tipo implicaria uma profunda alteração
de normas e vivências da sociedade portuguesa. Se a vida
humana sob certas condições deixar de ser inviolável, então abrir-se-á a porta
à demanda extremista, latente em certos círculos, da re-introdução da pena de
morte para delitos particularmente graves; e será necessário rever a atitude da
sociedade e particularmente dos meios da saúde quanto ao suicídio. Se for
legítima a ajuda ao acto suicidário, como poderemos justificar a prevenção do
suicídio, os esforços para impedir a concretização do acto em si e o tratamento
médico de tentativas de suicídio?
Não
há dúvidas de que este tema é, como se tornou usual dizer, fracturante. Isto
significa que as opiniões se dividem, com os profissionais de saúde, que devem
ser os peritos nesta matéria, a rejeitarem maioritariamente a eutanásia. Sendo
assim, e não existindo qualquer pressão da opinião pública para urgência
legislativa, porque existe oposição à realização de um referendo esclarecedor?
Existirá uma necessidade político-partidária de arrumar o assunto
antes de uma eventual alteração das condições hoje existentes na nossa
Assembleia, insinuando-se assim no espírito do cidadão comum a noção de que há
um parlamento mau (o que reprovou há um ano e meio a eutanásia) e um parlamento
bom (o que parece querer aprová-la). O
decoro parlamentar, a decência comum apontam, claramente, para um debate
nacional que conduza a um esclarecimento do que pretende a nossa comunidade.
Afinal,
o povo tem razão: vamos à vida, que a morte é certa.
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