sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Voltando à vaca fria



O texto de JOSÉ RIBEIRO E CASTROPortugal amordaçadodevia ser dado a ler na Assembleia, antes de se votar a tal lei de que se fala agora – e de que não se falou durante a campanha da propaganda eleitoral - et pour cause. Não consigo usar termos finos de ironia sarcástica, porque a minha repulsa é total não só pela questão em si como por todos aqueles que a defendem e que iludem a sua gravidade, falando ou escrevendo com gravidade doutoral – pueril - em defesa da aprovação de algo que já foi referendado e não aprovado pelos cidadãos de que hoje se não tolera novo referendo. O Eixo do Mal foi disso prova, quer nos discursos mais ou menos entaramelados de ambiguidades e falsa fé, dos três componentes masculinos, quer na história patética da Clara Ferreira Alves a respeito de uma heroína medalhada mas sofredora, que quis morrer (e morreu) por via desse sofrimento incomportável que nem poupou o seu próprio cão, companheiro dedicado, para sempre infeliz, como o outro Hachiko japonês de que há pouco vi o filme americano com Richard Gere (“Sempre ao seu Lado”, na tradução brasileira).
Não interessa alongar-me. O texto de José Ribeiro e Castro é suficientemente esclarecedor para quem queira ser esclarecido. Trata-se de uma infâmia a todos os níveis, e todos sabem disso, mesmo a Clara do cãozinho e da heroína sofredora, como tantos mais casos há, a quem a ciência vai abrandando as dores como pode, provavelmente precipitando com isso a morte, sem o escândalo de uma eutanásia a pedido e de destaque mediático.
Das visitas vaidosamente pueris que faço às estatísticas do meu blog, descobri hoje um texto que fiz em tempos sobre o mesmo assunto e que alguém recuperara e resolvi transcrevê-lo, em inútil tentativa de reforço, juntamente com um, também antigo, de João Miguel Tavares. Puras achegas sem reflexo no resultado que já está pré estabelecido há muito, tal a casta dos cidadãos que uma esquerda traiçoeira manipulou, incluindo os liberalismos saloios de Rui Rio, que igualmente luta pela sua sobrevivência. Haja Deus!

Portugal amordaçado
Quando tantos deputados dizem que é tema de consciência individual, vamos a isso. A consciência individual que importa é a dos cidadãos, não a dos deputados. Ninguém vota em consciências individuais.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
PÚBLICO, 13 fev 2020
Se Mário Soares fosse o líder do PS, não tenho dúvidas de que aprovaria a convocação do referendo sobre a eutanásia. E aprovaria sem hesitar. Receio bem que, quanto à questão de fundo (a morte a pedido) seria a favor da posição da maioria do seu partido, diversamente de Maria Barroso. Mas, vendo um movimento civil a arrancar da sociedade para reclamar um referendo democrático, não pestanejaria: venha o referendo, oiça-se a voz do povo.
Muitos portugueses ainda se lembram do papel de Mário Soares na defesa, na edificação, na consolidação e na afirmação da democracia. Não ouviram só contar. Viram-no e muitos participaram. Mário Soares foi também um dos líderes que melhor casou democracia e cidadania. Se visse um movimento de cidadãos com uma causa justa, não o despachava, mandando embora. Recebia-o, ouvia-o e, mesmo quando não fosse da mesma opinião, seria capaz de o seguir no que fosse o exercício da cidadania, não o fundo da questão. Mário Soares tinha prazer genuíno na animação cidadã, na democracia quando chamava. Era esse espírito republicano que transmitia e, por vezes, o emocionava. Por isso, peço emprestado o título do seu livro mais conhecido, quando tantos se afadigam a amordaçar a expressão popular democrática da voz da cidadania.
Nesta questão da eutanásia, lançada agora à pressa, para precipitar uma decisão legislativa parlamentar sobre uma matéria de primeira grandeza e profundíssima sensibilidade, o referendo é mais do que ajustado. E, se uma iniciativa popular de referendo, com as dezenas de milhar de assinaturas que a lei exige, tomar forma e se submeter à decisão processual do Parlamento, a Assembleia da República não pode deixar de lhe dar seguimento, se não quiser negar o seu capital fundador: democracia. Ainda como deputado, ouvi lá algumas vezes cantar “Grândola, vila morena, o povo é quem mais ordena.” Está na hora de os deputados o ouvirem outra vez e darem luz verde ao povo que quer ouvir a voz do povo.
Já escrevi, a respeito deste tema da morte provocada, que tudo isto me causa a maior estranheza, quando a nossa Constituição garante, com imperativa clareza: “A vida humana é inviolável.” (art.º 24.°, 1). Não consigo entender como é que o Presidente da Assembleia da República, perante o projecto de lei do Chega propondo a pena de castração química, o obstaculizou – e muito bem – com fundamento em inconstitucionalidade, e não obstaculiza igualmente todos os cinco projectos da eutanásia, com igual fundamento.
Mas onde a Constituição levará também forte abalo por parte da Assembleia da República será na proibição do referendo, se isso vier a acontecer.
Ao contrário do que me pareceu ouvir ser o entendimento de alguns deputados, a soberania não reside nos deputados. O facto de a Assembleia da República ser um órgão de soberania, não significa ser titular da soberania. “A soberania, una e indivisível, reside no povo” (art. 3.º, 1). E, não fosse alguém não ter lido bem à primeira, o art. 108.º acrescenta: “O poder político pertence ao povo.”
Aliás, a Constituição, que gosta da cidadania tanto ou mais que Mário Soares, estimula muito a participação dos cidadãos. É o que diz o art. 48.º: “Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país.” E logo acrescenta: “directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos” – ou seja, tomar parte directamente em primeiro lugar. Para não ficar qualquer dúvida, o art. 109.º ainda remata: “A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático.”
Quer a Assembleia da República desmerecer disto tudo?
Recordemos os dois primeiros artigos da Constituição. “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana” (art. 1.º). “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático.” (art. 2.º) Numa matéria que toca precisamente na essência mais sensível da dignidade da pessoa humana – o primeiro valor afirmado pela nossa Constituição –, iremos tratar como migalhas negligenciáveis traves fundamentais do Estado de direito democrático? É possível fazer isto sem ouvir o povo? Estando o povo à porta a pedir que se oiça directamente o povo soberano, pode a Assembleia da República dizer que não e trancar a porta?
Poder, pode. Mas é ilegítimo que o fizesse. E mostraria que lê pelo mínimo dos mínimos as normas constitucionais que conformam a democracia e estimulam a participação.
A questão é mais premente para os deputados da Iniciativa Liberal e do Partido Socialista. Ambos estes partidos apresentaram projectos de lei para despenalização da eutanásia, sem terem incluído uma só linha, uma só palavra a esse respeito nos seus programas eleitorais.
No caso do PS, a omissão é mais sintomática e mais grave, porque o PS esteve no debate de 2018, onde foi derrotado. E, pelo silêncio do programa de 2019, muitos eleitores podem ter concluído que deixara de considerar prioritária esta questão – como efectivamente não é prioritária. Outros poderão pensar, agora, que o PS fez um truque de ilusionismo: mostrou que o projecto já não estava lá… e afinal, continuava lá. E pensarão ainda que esse truque de ilusionismo se devera ao Manual de Laboriosos Estratagemas de que o PS lançou mão em busca da maioria absoluta: pelo sim, pelo não, o melhor era não assustar eleitores com qualquer questão polémica. Mas, se isto fosse assim, se o PS escondeu as suas intenções em matéria de eutanásia por interesseirismo eleitoral, como objectivamente aparenta, então estaríamos nos graus abaixo de zero da falta de ética democrática.
Por isso, digo que Mário Soares nunca chumbaria o referendo. Não tenho dúvidas sobre isso. Primeiro, jamais fabricaria aquele truque: se era para fazer, ou estava no programa, ou falava na questão em campanha. E, segundo, se alguma vez fosse apanhado por essa dúvida, tudo faria para a desmentir. Como? Ouvindo o povo. Mário Soares não tinha medo do povo.
Os deputados da IL e do PS têm o dever reforçado de apoiar e reforçar o referendo, pois essa é a única forma de suprirem a omissão dos seus programas. Os outros proponentes (BE, PAN e PEV) também.
Quando tantos deputados dizem que é matéria de consciência individual, vamos a isso. A consciência individual que importa ouvir é a dos cidadãos, não a dos deputados. Ninguém vota em consciências individuais, mas em propostas políticas dos partidos. Se é de consciência, o referendo é o primeiro instrumento

COMENTÁRIOS
Pedro Dragone: Na penúltima legislatura um projecto de lei a favor da eutanásia foi chumbado no Parlamento por escassa maioria. Nessa altura, ninguém viu Ribeiro e Castro a exigir uma consulta popular em referendo para validar, ou não, a decisão tomada pelos representantes do Povo. Pelos vistos, nessa altura, o poder representativo dos deputados e a sua consciência individual foram suficientes. O que é que mudou de então para cá para vermos JRC a defender com tanto afinco que uma decisão desta gravidade não pode ser tomada sem ser referendada?! Oppsss, que cabeça a minha a colocar questões de resposta tão evidente. Já nem me lembrava que a decisão tomada pelo Parlamento de então no sentido do chumbo era do agrado de JRC! Passe a publicidade, amanhã tenho de ir comprar uns compridos de Memofante para “meter a minha memória na ordem”.
Contra Ponto: Vamos imaginar, por instantes, que o sr. X sabe, tendo a certeza absoluta disso, que a Máfia pretende assassiná-lo. Vamos imaginar também que o sr. X sabe, tendo a certeza absoluta disso, que, se for à capital da Sicília, a Máfia vai sequestrá-lo e assassiná-lo. Mas o Sr. X vai à capital da Sicília... mesmo sabendo que será sequestrado e assassinado pela Máfia. Vamos imaginar, igualmente, que a Máfia decide tirar a vida ao sr. X atando-o a uma linha ferroviária e esperando que, em poucos minutos, um comboio lhe roube a vida. Imaginemos também que o sr. X tem a capacidade para se libertar dos nós e evitar a morte. Imaginemos, no entanto, que o sr. X nada faz e permite que o comboio o trucide, apesar da sua capacidade para se libertar e evitar a morte. Nesta situação / circunstâncias, que nome se pode dar ao caso do sr. X? Não estamos, de forma bem clara, na presença de um suicídio? Mais do que isso, de um suicídio assistido já que o sr. X sabe que será assassinado pela Máfia e, podendo evitar a morte, nada faz para a impedir. No fundo, estamos na presença do suicídio do sr. X, suicídio esse que é assistido pela Máfia. Ora, há cerca de dois milénios, um tal de omnisciente e omnipotente Jesus (segundo as narrativas cristãs) foi à cidade de Jerusalém sabendo que seria julgado e condenado à morte e, apesar de estar todo cheio de super-poderes, nada fez para evitar a sua morte. Curiosamente, aqueles que mais veneram o protagonista desse suicídios assistido são aqueles que menos o apoiam. 
Miguel Fonte: Mario Soares, que grande exemplo. Rui Mateus volta, estás perdoado.
Miguel Barreira: Caro Ribeiro e Castro, a IL não tem a eutanásia no seu programa eleitoral, mas tem explícito no Programa Político que pretende despenalizar a Eutanásia
quinto imperio: Não percebo porque Mário Soares é idealizado por uns poucos e é visto por outros como sendo uns dos maiores bandidos que este país já viu. Não se pode dizer que Mário Soares criou um bom sistema democrático quando o país já teve 3 bancarrotas em 40 anos.
Winter is Coming: Xiuuuu...vá....vamos lá a tomar o comprimido e pouco barulho.....isso passa logo.
Paulo Guerra: Lá diz o povo“Depois de mim virá quem bom me fará.” Por acaso no que respeita ao Ribeiro e Castro já se sabe que é consoante dá jeito. O Mário Soares também topou logo à distância a Operação Marquês mas sobre isso o Ribeiro e Castro nunca se lembrou de escrever uma linha que fosse.
Carminda Damiao: Muito claro este texto.
victor guerra A eutanásia é um assunto demasiado sério ,para ser decidido pelo povo, ou por políticos de "bate no peito", movidos por razões religiosas.
Leitor Registado: Do texto realço a cobardia do PS em não ter colocado a eutanásia no programa eleitoral. No entanto também se deveria analisar a cobardia/hipocrisia do PSD e do CDS em não assumirem que se esta maioria parlamentar tem legitimidade para aprovar a eutanásia uma outra maioria tem, igualmente, legitimidade para reverter essa legislação. Votam contra o tema A, B ou C e mais tarde afirmam que não vale a pena falar desses temas porque já foram decididos e aprovados por uma maioria parlamentar anterior!!!!! Parece-me que o CDS e o PSD apenas fingem que são contra quando no fundo desejam que os assuntos sejam aprovados com a maior rapidez possível.
Antonio Ferreira: Muito bem fundamentado!
Eduardo Buisson: Muito bom texto, lógico do ponto de vista político e jurídico.
João Mourinho: Muito bem.
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QUARTA-FEIRA, 30 DE MAIO DE 2018
E admirei a manifestação contra, em frente ao Parlamento.
Não pude – nem quis – assistir ao debate, encordoada na repugnância por uma tal falta de dignidade, que só um grande atraso espiritual e moral pôde possibilitar. Sempre nos meus contactos docentes, verifiquei que os alunos mais mal-comportados eram os que tinham lido um ou dois livros na sua vida, de êxito suficiente para se julgarem acima da maralha que os rodeava, incluindo o professor que do lado fronteiro tentava justificar as funções para que fora destinado, certamente que por mérito próprio. “Ignorância atrevida” era a minha designação, em chamadas de atenção que nunca receei fazer, nem mesmo já após o libertário 25 de Abril, criador de situações perfeitamente anedóticas, tal a sua irracionalidade, num país de repente destituído de valores, e gradualmente mais propenso a comportamentos de irrisória vacuidade, se não criminalidade. No caso presente, o pretender despenalizar um crime, ou cobardemente imputar ao médico o seu cometimento, não passa de aberração proveniente de figuras DDT, de uma arrogância inqualificável na decisão de despenalização que propõem. Só porque ouviram dizer que houve quem o tivesse feito lá fora. Mas gente de bem não o faz. Os médicos convidados a matar devem ganhar bom dinheiro, é certo, e fá-lo-ão, talvez, por isso, na mesma linha de corrupção dos que o ganham ilicitamente, como “serventuários do capital”, que tantos são neste país da cauda. Não, não assisti ao debate e bati palmas de felicidade, quando o meu marido me disse o resultado da votação, que a medo inquiri. Entretanto, à noite, ouvi um debate sobre o assunto e admirei o calor e sensatez da deputada do CDS, de quem fui procurar a biografia. Isabel Galriça Neto, uma Mulher, uma argumentadora honesta, não deslumbrada como outros dois entrevistados, parece que igualmente médicos, de estrutura sanguínea, que debitaram os seus argumentos da falsa caridade em moda. Ressalvo ainda um jovem também racional e sério, dos não deslumbrados pela ideia de modernidade, como os tais parceiros que, se estivessem num país a sério, nem se atreveriam a erguer a voz apalhaçada, que se sobrepunha e mal deixava ouvir, coisa muito dos nossos hábitos de saliência pessoal, ou de obstáculo à saliência alheia.
Eis o que captei sobre Isabel Galriça:
«Isabel Maria Mousinho de Almeida Galriça Neto ComM (10 de Julho de 1961) é uma médica e política portuguesa. É Licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Mestre em Cuidados Paliativos pela mesma Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.  Foi Fundadora e Coordenadora da Equipa de Cuidados Continuados do Centro de Saúde de Odivelas (1997-2006) e Assistente Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e é Directora da Unidade de Cuidados Paliativos e Continuados do Hospital da Luz e Membro da sua Direcção Clínica e Ex-Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
A 8 de Março de 2004 foi feita Comendadora da Ordem do Mérito.
Publicou as seguintes obras: [1]
A Dignidade e o sentido da vida: reflexões sobre a nossa existência (co-autora)[1]
Manual de Cuidados Paliativos (editora e co-autora)[1]
Cuidados Paliativos - Testemunhos[1]
Foi Assistente Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.[1]
Foi eleita Deputada pelo Centro Democrático Social - Partido Popular, sempre pelo Círculo Eleitoral do Porto, na XI Legislatura, de 15 de Outubro de 2009 a 19 de Junho de 2011, na XII Legislatura, de 20 de Junho de 2011 a 22 de Outubro de 2015 e na XIII Legislatura, desde 23 de Outubro de 2015. Faz parte das Comissões Parlamentares de Educação e Ciência como Suplente e de Saúde como Coordenadora do Grupo Parlamentar, e dos Grupos de Trabalho para o Acompanhamento da Problemática do VIH/Sida e Hepatites, para o Acompanhamento das Doenças Oncológicas como Coordenadora, para a Qualidade e Segurança dos Tecidos e Células (PPL N.º 32/XIII/2.ª), para o Registo Oncológico Nacional (PPL N.º 33/XIII/2.ª), para Atos de Profissionais da Área da Saúde (PPL N.º 34/XIII/2.ª), de Avaliação das PPP-Parcerias Público Privadas da Saúde como Coordenadora, da Petição N.º 250/XIII/2.ª - Toda a vida tem dignidade e de Saúde Pública sobre a PPL 49/XIII/2.ª.»
Quanto a Rui Rio, que deu liberdade de voto aos do seu partido, não, não vou gastar palavras. É desprezo, o que sinto. Certamente que Passos Coelho agiria de forma diferente. E Santana Lopes, afinal, também, da velha guarda, e que eu escutei a seguir, no canal 5 da SIC. Mas leiamos JMT, e o desassombro dos seus considerandos válidos e decentes:

OPINIÃO: Eutanásia: somos péssimos a debater coisas sérias
Esta exigência de regulamentar a vida pública a partir das convicções pessoais de cada um é um tique totalitário só possível numa terra sem um pingo de cultura liberal.
JOÃO MIGUEL TAVARES, PÚBLICO, 29 de Maio de 2018
Poucos assuntos são mais importantes do que o aborto ou a eutanásia, e o maior erro que muitas pessoas cometem quando se começa a discutir estes temas é achar que as suas convicções individuais devem estar reflectidas na legislação nacional. Ou seja, se eu sou pessoalmente contra o aborto, é óbvio que a pátria deve proibir o aborto; se eu sou contra a eutanásia, então a pátria só pode proibir a eutanásia. E vice-versa: se eu sou a favor do “sim” ao aborto, então o Estado deve passar a pagar abortos a todas as mulheres que o pedirem, sem exigências nem limites; se eu sou a favor do “sim” à eutanásia, o SNS deve assumir o encargo de facilitar a morte a quem a requisita. Entre uma trincheira e outra é a terra de ninguém.
Esta exigência de regulamentar a vida pública a partir das convicções pessoais de cada um é um tique totalitário só possível numa terra sem um pingo de cultura liberal. Meus senhores: não tem de ser assim. Eu sou pessoalmente contra o aborto e contra a eutanásia, mas se para a maioria dos portugueses ambas as práticas forem aceitáveis, não vejo como pode o Estado punir criminalmente acções em que quem as comete está a dispor somente da sua vida (o caso do aborto é mais complexo, mas considero que a discussão sobre o início da vida humana é cientificamente irresolúvel, e por isso entendo que aos direitos do feto se sobrepõe o direito da mulher dispor do seu próprio corpo). Em temas como estes, de uma enorme complexidade, onde há argumentos válidos de ambos os lados e nenhuma forma de atingir uma só verdade, aquilo que deve prevalecer, numa perspectiva liberal, é o respeito do Estado pelas vontades individuais.
O problema num país que vive há séculos na dependência física e mental do Estado-Papá, é que quase ninguém separa aquilo que pode ser feito daquilo que é obrigação do Estado fazer. E quando a despenalização criminal resvala para a intervenção estatal (nem é bem resvalar – ninguém sequer coloca a hipótese de separar uma coisa da outra), exigindo-se a intervenção do SNS, o assunto ganha logo uma complexidade extra, a meu ver totalmente desnecessária e contraproducente. Há para mim uma diferença radical entre saber se o Estado deve permitir a eutanásia e se o Estado deve praticar a eutanásia. Estou disponível para aceitar a primeira, porque quando olhamos para casos tão extremos quanto o do galego tetraplégico Ramón Sampedro (que deu origem ao filme Mar Adentro) seria uma barbaridade estar a prender a mulher que o ajudou a matar-se (aliás, mesmo sendo a eutanásia proibida em Espanha, ela não foi sequer julgada, por falta de provas). Mas estou contra a prática da eutanásia no SNS, porque considero não existir qualquer direito à morte, nem ser competência do Estado aliviar – ou sequer avaliar – o sofrimento interior dos seus cidadãos.
Numa entrevista ao Expresso, Paulo Teixeira Pinto, que sofre de doença de Parkinson, afirmou: “Extinguimos a pena de morte, mas mantemos uma pena de vida.” Pergunto: é dever do Estado aliviar “penas de vida”? Devem as suas funções ser extensíveis à aplicação da morte a pedido, financiada pelo Orçamento de Estado? A resposta a esta pergunta até pode ser “sim” – mas então eu quero ouvi-la em referendo. Ela não pode certamente ser dada por 230 deputados que não foram mandatados para o efeito, e que sobre as questões deste texto até agora disseram nada. Se nem a eutanásia merece ser amplamente debatida, vale a pena debater o quê, afinal?

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