domingo, 16 de fevereiro de 2020

Qui vivra verra



Um mundo sempre em convulsão. Custa a crer que assim será. Serviu o texto para eu lembrar “A Filha de Ryan” com extraordinárias paisagens revoltas e extraordinários desempenhos sobre o ódio irlandês ao ocupador inglês, a isso sobrepondo-se o amor, devidamente castigado. Coisa de filmes. A realidade, contudo, poderá vir a ser a descrita por Jorge Almeida Fernandes, de que, de resto, já se fala há muito, embora pareça utópica a perspectiva de uma tal mudança.
ANÁLISE
Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda
O “Brexit” pôs a História em movimento e deverá abrir a porta à reunificação irlandesa e selar o fim do Reino Unido.
JORGE ALMEIDA FERNANDES
PÚBLICO, 15 de Fevereiro de 2020
Inacreditável. Em 2016, raros sonhavam com a reunificação da Irlanda no horizonte das suas vidas. Na Escócia, depois do referendo, muitos duvidavam da viabilidade da independência. Subitamente, elas aí estão, no centro da agenda política. Não quer dizer que venham a acontecer. Quer dizer que passaram a ser possíveis. Não foram o Sinn Féin nem o Partido Nacional Escocês (SNP) que fizeram revoluções. Foi o “Brexit”, de Boris Johnson, que pôs a História em movimento. Para onde vamos? Não sabemos. Falta o segundo tempo. Boris ganhou o referendo contra a Europa. Quererá ficar na História como o primeiro-ministro que perdeu o Reino Unido?
Todos os olhos estão postos no Sinn Féin, o antigo braço político do IRA. Temendo uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias, apresentou apenas 42 candidatos (para 160 lugares). Procura distanciar-se da era da violência e escolheu uma liderança mais jovem; chefiada por Mary Lou McDonald.
Fez uma campanha longe dos temas nacionalistas, centrada nos problemas da habitação, da saúde ou das pensões de reforma. Não viu o vento mudar, contra o “duopólio do poder” do Fianna Fáil e do Fine Gael, que durava desde a fundação da República. Mesmo assim, venceu. Explica o politólogo Jonathan Evershed, da Universidade de Cork: “Para os eleitores, o passado do Sinn Féin é muito menos importante do que as promessas sobre o futuro. Esta eleição representa uma tendência de longo prazo na política irlandesa.” Por outro lado, a restauração da partilha de poder em Belfast (Irlanda do Norte] terá ajudado à mudança de imagem do Sinn Féin.” É uma importante mudança simbólica, uma viragem de página na História.
O Sinn Féin Ganhou as legislativas irlandesas de domingo com a estratégia errada. Temendo uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias, apresentou apenas 42 candidatos (para 160 lugares)
Ponto fulcral: já não podemos falar da “questão irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão inglesa”. O grande marco é o ano de 2016, em que os britânicos votaram tangencialmente a separação da União Europeia. Escoceses e norte-irlandeses (estes por estreita margem) votaram contra o “Brexit”. Esta fractura foi então assinalada mas depressa obscurecida pelo agressivo debate da “questão europeia”.
Nacionalismos cruzados
As consequências manifestaram-se, em todo o seu esplendor, nas legislativas britânicas de 12 de Dezembro. Na Escócia, o SNP ganhava 48 dos 59 mandatos. No Parlamento de Londres, pela primeira vez, os republicanos norte-irlandeses têm mais um deputado do que os unionistas. Na Inglaterra, os conservadores de Boris arrasaram trabalhistas e liberais: os ingleses plebiscitaram o “Brexit”.
Resumiu a Reuters:O resultado eleitoral foi celebrado como uma vitória dos nacionalismos, do inglês, do escocês e do irlandês – e pode selar o fim do Reino Unido.”
Nessa noite, o mundo pareceu virado do avesso. Disse à BBC Mike Nesbitt, líder do Partido Unionista do Ulster, entre 2012 e 2017, radical adepto da união à Grã-Bretanha: “A grande ironia de tudo isto é que, durante décadas, os unionistas olhavam por cima do ombro e decidiram que os nacionalistas irlandeses eram a grande ameaça. De facto, [a ameaça] é o nacionalismo inglês.” Os unionistas queixam-se do “egoísmo” dos ingleses e as negociações com a UE convenceram-nos de que os seus interesses pouco pesam em Londres.
Já não podemos falar da “questão irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão inglesa”. O grande marco é o ano de 2016, em que os britânicos votaram tangencialmente a separação da União Europeia
Lamentou a escocesa Jo Swinson, líder (demissionária) do Partido Liberal-Democrata: “Muitos vão celebrar a vaga de nacionalismo que está a varrer os dois lados da fronteira.” Nicola Sturgeon, líder do SNP e chefe do governo escocês, foi categórica: “Boris Johnson pode ter mandato para retirar a Inglaterra da União Europeia. Mas não tem, categoricamente, um mandato para retirar a Escócia da EU. Cabe à Escócia escolheu o seu futuro.”
A coligação que sustentou o “Brexit” juntava velhos eurocépticos, liberais e nacionalistas ingleses, caso do UKIP, que era então o partido de Nigel Farage. O que interessa é que souberam apresentar o projecto como uma “libertação nacional”, um levantamento “para se libertar a nação do pesado jogo da União Europeia”, na fórmula do radical Jacob Rees-Mogg. Acontece que ou outros britânicos não pensavam da mesma forma nem exprimiam os mesmos interesses. O patriotismo britânico cedia passo ao nacionalismo inglês.
“Há aqui uma grande ironia”, escreveu o irlandês Finton O’Toole, colunista do Irish Times. “A Grã-Bretanha não é nem nunca foi um Estado-nação. Na maior parte da sua história enquanto Estado foi o coração, não de uma entidade nacional, mas de um vasto império multinacional e poliglota. E o próprio Reino Unido é a amálgama de quatro nações, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Não existe um Reino Unido-nação anterior à UE para regressar a si mesmo. Não há um ‘povo’ unido a quem o poder seria devolvido.” A nação inglesa renascia através de um “Brexit” a que se opunham as outras três nações britânicas. Apela a Economist a “um retorno do nacionalismo inglês ao patriotismo britânico.”
A mudança virá do Norte
Os factores de mudança mais importantes podem vir da Irlanda do Norte. O primeiro é o demográfico. Pela primeira vez desde a “partilha” de 1921, os católicos são a primeira comunidade religiosa. Num país em que a identidade política era “sectária” é uma mudança de grande alcance. A religião deixa de ser fundamento da política. Os unionistas estão a perder a hegemonia eleitoral. Um segundo factor é o sistema de “partilha do poder” em Belfast, com governos de coligação de unionistas e republicanos. Contribuiu para a normalização das relações entre as duas comunidades.
Por fim, há uma lenta mudança de mentalidades, que o “Brexit” vai acelerar. Os cidadãos “protestantes” do Norte evocam uma tripla identidade: Ulster, Grã-Bretanha e Europa. Acabam de perder a Europa. Uma sondagem recente, realizada por uma instituição conservadora, indicava que uma curta maioria dos irlandeses do Norte votariam em referendo a favor da reunificação: 51% contra 49.
Nenhum partido irlandês ou britânico, nem sequer o Sinn Féin, está seriamente interessado numa agenda de reunificação”, escreve Mary C. Murphy, também da Universidade de Cork. “Mas a questão começa a provocar alguma mobilização na sociedade civil.”
Os Acordos da Sexta-feira Santa de 1998 abrem uma via para a reunificação: um referendo constitucional votado positivamente nas duas Irlandas. Ninguém se quer precipitar num processo muito complexo e arriscado. Nenhum referendo poderá ser legitimado por uma margem tangencial. Serão necessárias longas conversações. Mas o Norte começa a descobrir a sua incompatibilidade com a Inglaterra. Por isso, conclui Mary Murphy, “o ‘Brexit’ será o detonador de inesperadas conversações.”
COMENTÁRIOS
JonasAlmeida: Que o Brexit é sintoma que o processo histórico está de volta à Europa não tenho dúvida que JAF tem razão. Assim como o regresso da agência das nações europeias como seus actores (é isso que define as nações). Agora na matemática de JAF vejo contas muito questionáveis. Há 4 nações no UK (e eu não tenho objecções absolutamente nenhumas que digam os seus próprios caminhos) - duas votaram maioritariamente pelo Brexit (Inglaterra e país de Gales) e duas não (Escócia e Irlanda). Se isso quebra o UK ou não é coisa que terão exemplarmente a oportunidade de decidir por maioria nos seus próprios referendos. Agora na maioria do Brexit não ser suficiente em Democracia, mais ainda depois de estrondosamente confirmada nas eleições parlamentares, eu só vejo a matemática que desconta a Demos.
PRO: O jonas vê contas questionáveis porque você não aceita que haja quem defende a UE! Infelizmente para si a UE vai continuar e nem o Brexit por muito sucesso que tenha irá destruir a UE! Aliás mais depressa destrói o UK! Ahahah e ainda bem!
francisco tavares: Os políticos ingleses que se lembraram de patrocinar o Brexit ensandeceram? Ouvimos dizer: com o Brexit perde a Inglaterra e perde a UE. Mas a Inglaterra perde mais. Perderam os britânicos a sua capacidade de raciocinar com lógica? Potencialmente, os horizontes que se abrem aos britânicos no que toca a relações económicas são maiores do que os actuais. Mas as relações económicas com a UE parecem ser de muito maior qualidade. A capacidade dos europeus de comprar produtos britânicos não é coisa de menosprezar. A facilidade das trocas comerciais vai ser difícil de reproduzir com o resto do mundo. A criatividade dos ingleses vai ser posta à prova. Vai ser bonito de se ver como se desenvencilham. Quem sabe se não nos surpreendem.
JonasAlmeida: É precisamente disso que vc diz em conclusão que os eurocratas têm medo, Francisco - "Quem sabe se não nos surpreendem". O regime ordoliberal em Bruxelas arrasta o continente para a ruína, humilhação e desagregação social em nome de regras e mercados imaginados à medida de elites parasitas. Elites que se querem engordadas e estofadas à custa e a salvo da vontade e aspirações dos povos. Teresa de Sousa, que só tem costelas europeistas, disse aqui o mesmo que vc, que não a espantaria se daqui a 10 anos o UK estivesse muito melhor do que a UE.
PRO: O problema é que o Jonas acha que se o UK tiver sucesso económico isso irá incentivar outros a saírem! Mas você esqueceu se que aquilo que une os Europeus vai muito além do sucesso económico! E não vamos deixar que a UE acabe! Os Remainers até podem ser muitos caminhos mas o resto dos Europeus não são.
AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter qualquer coisa de verdade: Ainda irá correr muita água sob as pontes antes de o RU se desmembrar. A Irlanda do Norte até pode beneficiar da reunificação com a Irlanda mas a Escócia ganha o quê?!!. Será sempre uma nação irrelevante, mesmo na UE, sem o abrigo do poderoso pai inglês.
PRO, Como assim? Existem inúmeras nações Europeias mais pequenas que a Escócia e igualmente importantes: os Bálticos, Malta, Luxemburgo. Aliás em 27 Membros só 4 ou 5 são grandes. Mas todos são igualmente importantes.
mário borges: O Boris fez mais sem saber pela unificação da Irlanda e pela independência da Escócia que centenas de anos de luta. Foi um gigantesco tiro no próprio pé. A primeira-ministra da Escócia reuniu-se esta semana no Parlamento Europeu e disse muito simplesmente: "O povo da Escócia votou pela permanência da Escócia na União Europeia. Como é que pensam resolver isto?"
PRO: Interessante que se refira isto: "Nenhum referendo poderá ser legitimado por uma margem tangencial.". Exactamente! O referendo do Brexit nunca deveria ter sido legitimado por ter sido tangencial. Agora o RU deverá ter o seu fim. Estaremos de braços abertos para acolher a Escócia e a Irlanda reunificada.


Nenhum comentário: