Um mundo sempre em convulsão. Custa a
crer que assim será. Serviu o texto para eu lembrar “A Filha de Ryan” com extraordinárias paisagens revoltas e
extraordinários desempenhos sobre o ódio irlandês ao ocupador inglês, a isso
sobrepondo-se o amor, devidamente castigado. Coisa de filmes. A realidade,
contudo, poderá vir a ser a descrita por Jorge Almeida Fernandes, de que, de resto, já se fala há muito, embora pareça
utópica a perspectiva de uma tal mudança.
ANÁLISE
Esqueça tudo o que sabe sobre a Irlanda
O “Brexit” pôs a História em movimento e
deverá abrir a porta à reunificação irlandesa e selar o fim do Reino Unido.
JORGE ALMEIDA FERNANDES
PÚBLICO, 15 de Fevereiro de 2020
Inacreditável.
Em 2016, raros sonhavam com a reunificação da Irlanda no horizonte das suas
vidas. Na Escócia, depois do referendo, muitos duvidavam da viabilidade
da independência. Subitamente, elas aí estão, no centro da agenda política.
Não quer dizer que venham a acontecer. Quer dizer que passaram a ser possíveis.
Não foram o Sinn Féin nem o Partido Nacional Escocês
(SNP) que fizeram revoluções. Foi o “Brexit”, de Boris Johnson, que pôs a
História em movimento. Para onde vamos? Não sabemos. Falta o segundo tempo.
Boris ganhou o referendo contra a Europa. Quererá ficar na História como o
primeiro-ministro que perdeu o Reino Unido?
Todos
os olhos estão postos no Sinn Féin, o antigo braço político do IRA. Temendo
uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias, apresentou
apenas 42 candidatos (para 160 lugares). Procura distanciar-se da era da
violência e escolheu uma
liderança mais jovem; chefiada por Mary Lou McDonald.
Fez uma campanha longe dos temas nacionalistas,
centrada nos problemas da habitação, da saúde ou das pensões de reforma.
Não viu o vento mudar, contra o “duopólio do
poder” do Fianna Fáil e do Fine Gael, que durava desde a fundação da República.
Mesmo assim, venceu. Explica o politólogo Jonathan Evershed, da
Universidade de Cork: “Para os eleitores, o passado do Sinn Féin é muito menos
importante do que as promessas sobre o futuro. Esta eleição representa uma
tendência de longo prazo na política irlandesa.” Por outro lado, a restauração da partilha de poder em Belfast (Irlanda do
Norte] terá ajudado à mudança de imagem do Sinn Féin.” É uma importante
mudança simbólica, uma viragem de página na História.
O
Sinn Féin Ganhou as legislativas irlandesas de domingo com a estratégia errada.
Temendo uma humilhação eleitoral, na sequência do seu fiasco nas europeias,
apresentou apenas 42 candidatos (para 160 lugares)
Ponto fulcral: já não podemos falar
da “questão irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão
inglesa”. O
grande marco é o ano de 2016,
em que os britânicos votaram tangencialmente a separação da União Europeia.
Escoceses e norte-irlandeses (estes por estreita margem) votaram contra o
“Brexit”. Esta fractura foi então assinalada mas depressa obscurecida pelo
agressivo debate da “questão europeia”.
Nacionalismos cruzados
As
consequências manifestaram-se, em todo o seu esplendor, nas legislativas
britânicas de 12 de Dezembro. Na Escócia, o SNP ganhava 48 dos 59 mandatos. No
Parlamento de Londres, pela primeira vez, os republicanos norte-irlandeses têm
mais um deputado do que os unionistas. Na Inglaterra, os conservadores de Boris
arrasaram trabalhistas e liberais: os ingleses plebiscitaram o “Brexit”.
Resumiu a Reuters: “O
resultado eleitoral foi celebrado como uma vitória dos nacionalismos, do
inglês, do escocês e do irlandês – e pode selar o fim do Reino Unido.”
Nessa
noite, o mundo pareceu virado do avesso.
Disse à BBC Mike Nesbitt, líder do Partido Unionista do Ulster, entre 2012 e
2017, radical adepto da união à Grã-Bretanha: “A grande ironia de tudo isto é
que, durante décadas, os unionistas olhavam por cima do ombro e decidiram que
os nacionalistas irlandeses eram a grande ameaça. De facto, [a ameaça] é o
nacionalismo inglês.” Os unionistas queixam-se do “egoísmo” dos ingleses
e as negociações com a UE convenceram-nos de que os seus interesses pouco pesam
em Londres.
Já não podemos falar da “questão
irlandesa” e da “questão escocesa” sem falar também da “questão inglesa”. O
grande marco é o ano de 2016, em que os britânicos votaram tangencialmente a
separação da União Europeia
Lamentou
a escocesa Jo Swinson, líder (demissionária) do Partido Liberal-Democrata:
“Muitos vão celebrar a vaga de nacionalismo que está a varrer os dois lados da
fronteira.” Nicola Sturgeon, líder do SNP e chefe do governo escocês, foi
categórica: “Boris Johnson pode ter mandato para retirar a Inglaterra da União
Europeia. Mas não tem, categoricamente, um mandato para retirar a Escócia da
EU. Cabe à Escócia escolheu o seu futuro.”
A
coligação que sustentou o “Brexit” juntava velhos eurocépticos, liberais e
nacionalistas ingleses, caso do UKIP, que era então o partido de Nigel Farage. O que interessa é que souberam apresentar o
projecto como uma “libertação nacional”, um levantamento “para se libertar a
nação do pesado jogo da União Europeia”, na fórmula do radical Jacob Rees-Mogg.
Acontece que ou outros britânicos não pensavam da mesma forma nem exprimiam os
mesmos interesses. O patriotismo britânico cedia passo ao nacionalismo inglês.
“Há
aqui uma grande ironia”, escreveu o irlandês Finton O’Toole, colunista do Irish Times.
“A Grã-Bretanha não é nem nunca foi um Estado-nação. Na maior parte da sua
história enquanto Estado foi o coração, não de uma entidade nacional, mas de um
vasto império multinacional e poliglota. E o próprio Reino Unido é a amálgama
de quatro nações, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Não
existe um Reino Unido-nação anterior à UE para regressar a si mesmo. Não há um
‘povo’ unido a quem o poder seria devolvido.” A nação inglesa renascia através
de um “Brexit” a que se opunham as outras três nações britânicas. Apela a Economist a
“um retorno do nacionalismo inglês ao patriotismo britânico.”
A mudança virá do Norte
Os
factores de mudança mais importantes podem vir da Irlanda do Norte. O primeiro é o demográfico. Pela primeira vez
desde a “partilha” de 1921, os católicos são a primeira comunidade religiosa.
Num país em que a identidade política era “sectária” é uma mudança de grande
alcance. A religião deixa de ser fundamento da política. Os unionistas estão a
perder a hegemonia eleitoral. Um segundo factor é o sistema de “partilha do
poder” em Belfast, com governos de coligação de unionistas e republicanos.
Contribuiu para a normalização das relações entre as duas comunidades.
Por
fim, há uma lenta mudança de mentalidades, que o “Brexit”
vai acelerar. Os cidadãos “protestantes” do Norte evocam uma tripla identidade:
Ulster, Grã-Bretanha e Europa. Acabam
de perder a Europa. Uma sondagem recente, realizada por uma instituição
conservadora, indicava que uma curta maioria dos irlandeses do Norte votariam
em referendo a favor da reunificação: 51% contra 49.
“Nenhum
partido irlandês ou britânico, nem sequer o Sinn Féin, está seriamente
interessado numa agenda de reunificação”, escreve Mary C. Murphy, também da
Universidade de Cork. “Mas a questão começa a provocar alguma mobilização na
sociedade civil.”
Os
Acordos da Sexta-feira Santa de 1998 abrem uma via para a reunificação: um
referendo constitucional votado positivamente nas duas Irlandas. Ninguém se
quer precipitar num processo muito complexo e arriscado. Nenhum referendo
poderá ser legitimado por uma margem tangencial. Serão necessárias longas
conversações. Mas o Norte começa a descobrir a sua incompatibilidade com a
Inglaterra. Por isso, conclui Mary Murphy, “o ‘Brexit’ será o detonador de
inesperadas conversações.”
COMENTÁRIOS
JonasAlmeida: Que o Brexit é sintoma
que o processo histórico está de volta à Europa não tenho dúvida que JAF tem
razão. Assim como o regresso da agência das nações europeias como seus actores
(é isso que define as nações). Agora na matemática de JAF vejo contas muito
questionáveis. Há 4 nações no UK (e eu não tenho objecções absolutamente
nenhumas que digam os seus próprios caminhos) - duas votaram
maioritariamente pelo Brexit (Inglaterra e país de Gales) e duas não (Escócia e
Irlanda). Se isso quebra o UK ou não é coisa que terão exemplarmente a
oportunidade de decidir por maioria nos seus próprios referendos. Agora na
maioria do Brexit não ser suficiente em Democracia, mais ainda depois de
estrondosamente confirmada nas eleições parlamentares, eu só vejo a matemática
que desconta a Demos.
PRO: O jonas vê contas questionáveis porque você não aceita
que haja quem defende a UE! Infelizmente para si a UE vai continuar e nem o Brexit
por muito sucesso que tenha irá destruir a UE! Aliás mais depressa destrói o
UK! Ahahah e ainda bem!
francisco tavares: Os políticos ingleses que
se lembraram de patrocinar o Brexit ensandeceram? Ouvimos dizer: com o Brexit
perde a Inglaterra e perde a UE. Mas a Inglaterra perde mais. Perderam os
britânicos a sua capacidade de raciocinar com lógica? Potencialmente, os
horizontes que se abrem aos britânicos no que toca a relações económicas são
maiores do que os actuais. Mas as relações económicas com a UE parecem ser de
muito maior qualidade. A capacidade dos europeus de comprar produtos britânicos
não é coisa de menosprezar. A facilidade das trocas comerciais vai ser difícil
de reproduzir com o resto do mundo. A criatividade dos ingleses vai ser posta à
prova. Vai ser bonito de se ver como se desenvencilham. Quem sabe se não nos
surpreendem.
JonasAlmeida: É precisamente disso que vc diz em conclusão que os eurocratas
têm medo, Francisco - "Quem sabe se não nos surpreendem". O regime
ordoliberal em Bruxelas arrasta o continente para a ruína, humilhação e desagregação
social em nome de regras e mercados imaginados à medida de elites parasitas.
Elites que se querem engordadas e estofadas à custa e a salvo da vontade e
aspirações dos povos. Teresa de Sousa, que só tem costelas europeistas, disse
aqui o mesmo que vc, que não a espantaria se daqui a 10 anos o UK estivesse
muito melhor do que a UE.
PRO: O problema é que o Jonas acha que se o UK tiver sucesso económico
isso irá incentivar outros a saírem! Mas você esqueceu se que aquilo que une os
Europeus vai muito além do sucesso económico! E não vamos deixar que a UE
acabe! Os Remainers até podem ser muitos caminhos mas o resto dos Europeus não
são.
AA...Para a mentira ser segura ... tem
que ter qualquer coisa de verdade: Ainda irá correr muita água sob as pontes antes de o RU
se desmembrar. A Irlanda do Norte até pode beneficiar da reunificação com a
Irlanda mas a Escócia ganha o quê?!!. Será sempre uma nação irrelevante, mesmo
na UE, sem o abrigo do poderoso pai inglês.
PRO, Como assim? Existem inúmeras nações Europeias mais
pequenas que a Escócia e igualmente importantes: os Bálticos, Malta,
Luxemburgo. Aliás em 27 Membros só 4 ou 5 são grandes. Mas todos são igualmente
importantes.
mário borges: O Boris fez mais sem saber pela unificação da Irlanda e
pela independência da Escócia que centenas de anos de luta. Foi um gigantesco
tiro no próprio pé. A primeira-ministra da Escócia reuniu-se esta semana no
Parlamento Europeu e disse muito simplesmente: "O povo da Escócia votou
pela permanência da Escócia na União Europeia. Como é que pensam resolver
isto?"
PRO: Interessante que se refira
isto: "Nenhum referendo poderá ser legitimado por uma margem
tangencial.". Exactamente! O referendo do Brexit nunca deveria ter sido
legitimado por ter sido tangencial. Agora o RU deverá ter o seu fim. Estaremos
de braços abertos para acolher a Escócia e a Irlanda reunificada.
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