Haverá sempre o responsável que desliga
a máquina. Ainda que eu tenha avisado, por escrito, que o fizessem, no caso de.
Esse alguém, que o fará, vai contabilizar as suas mortes por ele assistidas e
descriminalizadas com a minha assinatura permissiva. Não terá pesadelos com
isso? O melhor, por conseguinte, é ignorar o “juramento de Hipócrates” no seu preceito seguinte, pelo menos, que os médicos
têm o hábito de jurar no começo da carreira: «Guardarei respeito absoluto pela
Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus
conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade». Uma ova,
esse preceito! Que é isso de Humanidade? Com que direito imponho esse
peso a outrem? O melhor mesmo é ser eu, família ou amigo do peito, a desligar a
máquina.
OPINIÃO
A morte na primeira pessoa
O “referendo à eutanásia” é para mim
desajustado e equívoco, mas percebo que haja quem o queira, até para tentar
contrariar uma provável maioria parlamentar. Se houver, lá estarei. Se houver
assinaturas em quantidade suficiente, se houver pressão social (da Igreja, por
exemplo), se houver debate e sobretudo tempo, faça-se!
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO,
16 de Fevereiro de 2020
No
debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido, há elementos lamentáveis.
As confusões deliberadas, feitas por políticos, activistas e jornalistas, entre
suicídio assistido e eutanásia, assim como entre eutanásia activa e
passiva, ou entre eutanásia voluntária e involuntária, são o resultado da
ignorância ou da vontade de enganar. É igualmente deplorável que se
trate o referendo como uma faculdade de mero oportunismo: quando convém, somos
a favor do referendo; quando se receia o resultado, somos contra. É
finalmente lastimável que haja quem utilize um tema como este para incomodar um
partido ou obrigar a realinhamentos partidários. Mas paciência! A democracia
é assim. A política também. Não vale a pena aspirar, nem sequer em temas como
este, a uma discussão serena.
Como
sempre, o debate sobre a substância transforma-se em discussão sobre os
procedimentos e as intenções.
O recurso ao referendo, por exemplo. É um clássico. Defendem-no os que têm
possibilidades de ganhar, os que querem incomodar os adversários e os que
desejam compensar uma previsível derrota no Parlamento. Os seus adversários são
exactamente o contrário. A mesma pessoa ou o mesmo partido pode ser
sucessivamente a favor ou contra.
Sou
geralmente favorável ao referendo e à iniciativa popular. Gosto de referendos,
com serenidade, peso e medida. São mecanismos de recurso ao soberano com
méritos evidentes: associam a população a decisões importantes, implicam as
pessoas em obra comum, fortalecem uma decisão, permitem que muita gente se
associe à política sem ser exclusivamente pela via partidária e dão a
oportunidade a um debate público. Mas também com enormes defeitos, como sejam a
demagogia, o populismo e a simplificação de problemas complexos para além dos
limites razoáveis. E bem sabemos que os referendos, a quente, podem ser
demagógicos.
Não
me parece razoável recorrer a referendos para certas questões que impliquem a
vida, a religião e alguns direitos fundamentais. Mas, se houver quem queira e se existir uma
percentagem importante de pessoas e de instituições que o pretendem, então que se
faça! Mesmo se não concordo. Sempre defendi o referendo da Constituição e da
integração europeia, que nunca se fizeram, mas não defendi o referendo ao
aborto, que se fez. Não apoiaria um referendo aos impostos
(“Concorda com a percentagem máxima de 10% do rendimento para o volume de
impostos pagos?”), mas percebo que haja quem o queira e iria votar se houvesse.
O problema é que não se pode gostar dos referendos quando convém e eliminar
a hipótese quando há riscos de perder.
O “referendo à
eutanásia” é para mim desajustado
e equívoco, mas percebo que haja quem o queira, até para tentar contrariar uma
provável maioria parlamentar. Se houver, lá estarei. Se houver assinaturas
em quantidade suficiente, se houver pressão social (da Igreja, por exemplo), se
houver debate e sobretudo tempo, faça-se!
Reconhecendo
os perigos do referendo, é possível imaginar dispositivos que os diminuam. Exigir
participação ou maiorias qualificadas, por exemplo. Estes mecanismos
moderam os ânimos. Mas há um outro, essencial, o tempo. Entre a proposta de um
referendo e a sua realização deveria decorrer um prazo de amadurecimento de
vários anos, o que teria o condão de diminuir a demagogia, de arrefecer os
entusiasmos e de obrigar a ponderar os argumentos. Tempo é reflexão.
Lamento
que tanta gente levada pelo entusiasmo das guerras de religião, simplifique o
que não o deve ser. E que faça amalgama de argumentos. A designação de
“morte assistida” é deliberadamente equívoca. Há uma diferença abissal entre
suicídio assistido e eutanásia. Como existe uma diferença essencial entre
vários tipos de eutanásia. Os que misturam tudo têm evidentemente intenções
escondidas: incomodar os adversários, desviar os méritos da questão ou reduzir
o debate a uma batalha campal com interesses partidários evidentes.
A
minha vida é… minha! Não é de Deus, nem do Estado, nem da família. Quero ser só
eu, tão informado e lúcido quanto possível, a decidir sobre a minha vida. São
muitos os motivos que me podem levar a querer continuar ou terminar a vida:
dor, sofrimento, desespero, resignação, arrependimento, erro, culpa, demissão,
abandono, solidão e outras. Sou adversário de qualquer decisão que dispense a
minha escolha. Tentarei elaborar um testamento vital, como tentarei dar
instruções aos médicos, aos parentes e aos amigos íntimos. Mas, se não
conseguir fazê-lo (imprevisão, acidente, perda de razão, etc.), não quero que o
Estado, o médico ou um familiar me substituam. Quero que a medicina faça o
que tem a fazer, sem encarniçamento. E isso não inclui a legalização da
eutanásia. Há mil situações de fronteira, incluindo algumas com riscos, que
devem ser consideradas, em cada caso, em cada situação, mas que não exigem lei
geral. Sou favorável à despenalização do suicídio assistido, na exacta
medida em que essa decisão depende de mim. A minha liberdade é o principal
critério de decisão. E não a religião, a dignidade, a lei ou a pressão familiar.
Os
defensores da eutanásia invocam o argumento da dignidade (na vida e na morte)
da pessoa humana. Fazem bem. E têm alguma razão. Mas não toda. Também há
dignidade na maneira como se suporta a dor e o sofrimento. Também pode haver
dignidade no modo como se desiste ou renuncia. Por isso, o argumento da
dignidade não deve ser invocado. O principal argumento é para mim a
liberdade pessoal, a decisão autónoma, expressa e conhecida.
Aludir
a outras prioridades, como sejam o desenvolvimento económico, a educação ou a
corrupção é absolutamente demagógico: objectivos e prioridades estão em planos
diferentes e não são alternativos ou incompatíveis. Do mesmo modo, a
utilização do argumento dos cuidados paliativos é semelhante. Não são
alternativos. Com ou sem eutanásia, com ou sem suicídio assistido, os cuidados
paliativos são essenciais e urgentes. Não é admissível que se dê a entender que
existe uma alternativa: eutanásia ou paliativos!
A legalização da eutanásia
involuntária é perigosa e moralmente discutível. E remete para o médico e os
serviços de saúde, públicos ou privados, decisões polémicas que não deveriam
ser as suas. Por isso, respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem
a liberdade individual é o critério essencial, a decisão pessoal é o factor
chave. Sem o factor primordial, a decisão pessoal do doente e a sua liberdade,
a eutanásia não deve ser legalizada.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Fowler Fowler: osso.
Um manifesto liberal na 1ª pessoa que, neste caso, subscrevo. Resta saber se,
para o exercício do direito de liberdade de escolha serão disponibilizados os
meios necessários para a expressão dessa vontade (suicídio assistido).
Félix Carlos: Grato
por ter feito uma abordagem completa da questão e sobre o referendo em geral,
umas vezes convêm, outras, depois de um especial, foge-se como o diabo da cruz.
Por estes dias de enrubescimento, tem aparecido um dito recorrente “gato por
lebre”, é isso que está em cima da mesa, se alguém atempadamente decidir por
si a sua morte assistida no âmbito de uma doença dolorosa e sem remissão, o
serviço médico executante não deve ser criminalizado. Mas essa decisão deve ter
mediadores iniciais de preferência bons psicólogos, para excluir interferências
directas ou indirectas de terceiros além de posterior validação clínica. Para
quem não decidiu em tempo útil, deverá existir a tal rede real e não virtual de
cuidados paliativos e “in fine” o amor de deixar morrer apertando a mão de quem
se cuidou.
JonasAlmeida: Também eu estou em completa sintonia com este artigo. A
inclusão da eutanásia e o aborto no sistema de saúde são os dois temas
clássicos de referendos. A discussão da soberania pessoal, como a colectiva,
são por excelência momentos de participação e crescimento da cidadania e da
praça pública. Só o medo da Democracia pode explicar que este
referendo não tenha lugar. O único efeito será adensar a suspeita que os
partidos não só não representam a cidadania como são um obstáculo à sua
existência política.
CanemMorsu: Existem muitos riscos associados à despenalização da
eutanásia. É muito fácil condicionar a vontade de uma pessoa: levá-la ao
desespero a ponto de preferir morrer a estar viva. Basta não lhe facultar os
cuidados paliativos que a ajudem a aguentar as dores insuportáveis. Por isso a eutanásia pode transformar-se num grande
negócio: para além de não existir despesa com os cuidados paliativos ainda é
possível ganhar algum dinheiro ministrando uma morte assistida. Os portugueses devem desconfiar sempre que surge uma
novidade proveniente da Holanda. Naquele país tudo serve para negócio:
a dignidade das pessoas, a droga, os diamantes de sangue. Tudo visa o lucro
fácil, até vida se for necessário.
AndradeQB: A
discussão sobre a eutanásia involuntária, que se aproxima do homicídio, só
surge pela dificuldade de definir onde começa o encarniçamento da medicina e
proibi-la. O direito
ao suicídio é exercido diariamente sem se pedir licença a ninguém, pelo que
retirar esse direito só àqueles que fisicamente estão impossibilitados de o
exercer, é uma violência que a sociedade exerce em nome de religiões, do
negócio ou de calculismos políticos.
Não faz sentido referendar isto, como faz ainda menos sentido depositar isto em
deputados que votam em acordo com a decisão do chefe e este em acordo com o que
lhe adivinha dar mais votos. Mal por
mal, o referendo com o objectivo apontado por AB de permitir, no mínimo,
saber-se o que se está a decidir, fará mais sentido.
antoniofialho1: Concordo consigo em quase tudo, menos num aspecto: a
sua liberdade só existe se não colidir com a liberdade dos outros. Se
defende o suicídio assistido, deve considerar que ninguém pode ser obrigado a
contribuir para a morte de outra pessoa.
AndradeQB: Cro antoniofialho1, tem obviamente razão, mas o não
obrigar alguém a contribuir para a morte de alguém, não impõe que se prenda
quem se disponibilize para o fazer. Como diz António Barreto, a discussão não
pode ser sobre procedimentos ou intenções. Haverá quem, como eu, defende a
liberdade individual até extremo e quem ache que não. Todos terão as suas
razões, mas acontece que as situações de extremo sofrimento nos casos concretos
publicitados quando esta discussão acontece, são já provocados por alguém que
se encarniçou contra as leis da natureza. não se está, assim, a falar de algo
em que a mão de terceiros esteja virgem, mesmo quando feita na obrigação
profissional como acontece com os médicos, ou da família pelo desespero.
Anjo
Caído; claro que ninguém pode ser obrigado a
contribuir. é por isso que existe o objector de consciência.
joaocpedro,
16.02.2020: Referendar... para depois voltar a fazer
novo referendo uns anos depois caso o resultado não interesse, como foi no caso
do aborto. Perda de tempo.
Elsinor, 16.02.2020: Então referende-se também a Constituição. Aliás, com a
sanha dos referendos em crescendo não se compreende porque quem os advogue não
comece exactamente pelo princípio, pela origem — a Constituição.
Este pedido de referendo é expediente dilatório — nada mais. É um truque. Mas a
civilização não se compadece com arcaísmos,.. para mais quando estes implicam o
sofrimento atroz das vítimas e o prolongar artificial do sacrifício só para
enriquecimento da meia dúzia com investimentos na área da “saúde”...
R dos Bosques, 16.02.2020: Recalcado, intragável, indigesto, decadente.
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