O descrito por António
Barreto, mundo este que se dispõe a desfazer-se dos bens que
usurpou nas suas conquistas de outrora, que dilataram os espaços do mundo a
conhecer – no nosso caso e de mais alguns povos empreendedores e corajosos europeus
– a quem esses povos deviam estar reconhecidos, sem dúvida, pois que proporcionaram
o seu próprio desenvolvimento, como, de resto, também acontecera em tempos na própria
Europa, com as movimentações sucessivas de povos que se fixaram nas regiões que
eles próprios foram conquistando e fundindo-se, gregos, romanos, celtas,
anglo-saxões, suevos, godos, e os mouros em tempos de outrora, e os vikings aguerridos
do norte europeu. Como a cor da pele não se punha, então, como hoje, não se
falava em racismo, embora houvesse as conhecidas distinções sociais, os
escravos no degrau inferior, que até ajudaram na construção das pirâmides.
Realmente, o texto de António Barreto é uma graça de ironia sagaz, no
descritivo hiperbólico das devoluções pretendidas, trazidas à baila pelos povos
de hoje, que se pretendem nobres e que os nossos da liga de esquerda se
apressam em, servilmente, imitar, em arreganhos burlescos de uma
honestidade suspeita.
OPINIÃO
Os reparadores da História
Sarar cicatrizes da História é uma
actividade que conduzirá certamente ao desastre. Tal empreendimento é
impossível, o que já é um bom argumento para não experimentar.
PÚBLICO, 2 de Fevereiro de 2020
É fácil imaginar. A
meio do ano, aproveitando o bom tempo, milhares de autocarros,
camiões, carrinhas de segurança, comboios de mercadorias, aviões de carga,
navios porta contentores e outros meios de transporte fazem-se à estrada, ao ar
e ao mar. Uns atravessam a Europa, de Norte a Sul, de Leste a Oeste e
vice-versa. Outros cruzam o Mediterrâneo e por ali ficam, entre o Egipto e
Marrocos. Outros ainda preparam-se para atravessar o Sara e dirigem-se para as
dezenas de países africanos a Sul do deserto. Os contentores e os aviões cruzam
os mares Atlântico, Índico e Pacífico, em direcção a todos os continentes, onde
os esperam milhares de camiões e de comboios, a fim de rumar para as planícies
americanas, os vales asiáticos e as florestas de todos os sítios. Estão
milhões de pessoas empenhadas na tarefa, incluindo motoristas, carregadores,
polícias, forças armadas, arqueólogos, pintores, pedreiros, químicos, físicos,
joalheiros e burocratas. Ao chegarem aos seus destinos, descarregam os bens que
transportavam: edifícios, muralhas, obeliscos, pinturas, frescos,
baixos-relevos, esculturas, múmias, jóias, objectos de ouro, de marfim e de
lápis-lazúli. E muito, muito mais. Depois de tudo descarregado e devidamente
verificado, os camiões, contentores, comboios e aviões são carregados com
outras tantas dezenas de milhões de objectos, da mesma natureza ou diferentes,
que serão entregues nos países onde tudo começou. É a grande tarefa da devolução de património e da restituição de obras
de arte, com a qual se refaz justiça entre países iguais e irmãos,
com o mundo a regressar a uma idade da inocência e da pureza de sentimentos.
É fácil imaginar. Fácil, mas impossível de realizar. Impossível,
estúpido e errado. O que não impede que tanta gente, desde o presidente francês aos esquerdistas
de todos os bordos, passando por ecologistas, bondosos sacerdotes e outros
serafins, esteja actualmente tão empenhada em fazer leis para
que tal se faça. Ainda não há resposta a nenhuma das perguntas
essenciais (Quem? O quê? A quem? Onde?), mas as adesões a tais planos são mais
do que muitas. Não apenas o que deve e pode ser feito, isto é, peças e objectos
bem específicos, após reivindicação por titulares identificados, para
indivíduos, países e instituições concretos e reais, com motivos de reclamação.
Não. O movimento é geral e universal. Também em Portugal, pela mão de alguns
esquerdistas, se prepara uma discussão parlamentar.
Espera-se que o assunto se esgote rapidamente.
O problema
da impossibilidade é real.
Não há gente, governos, académicos, polícias, militares, cientistas, artistas e
comerciantes em número suficiente e que estejam de acordo. Não há povos que
aceitem facilmente o princípio de refazer a História e de devolver o património
que, entretanto, é seu. Não há condições práticas para levar a cabo tão
colossal trabalho. Já houve exemplos passados de transportes de obras de
arte e de património. De Madrid para Genebra, durante a Guerra Civil de
Espanha, para salvar os tesouros do Prado. Durante a Segunda Guerra, em França,
na Inglaterra, na Alemanha e na Polónia, para proteger museus inteiros. Na
Alemanha e na Polónia, para roubar museus locais e famílias judias. Nazis e
soviéticos levaram a cabo algumas expedições de pilhagem. No passado, os
imperadores russos, prussianos e franceses, a começar por Napoleão, organizaram
transportes desse género. Tal como descobridores espanhóis e portugueses. Foi
possível transportar. Mas tudo isso é quase nada comparado com o que hoje
deveria ser devolvido se seguíssemos os critérios destes reparadores de
história.
Mais
difíceis de resolver são as questões de fundo. Devolver o quê? Um quadro pintado em
França por um pintor italiano e actualmente num museu alemão é de quem? Um
artefacto egípcio, descoberto por uma expedição alemã dirigida por um
arqueólogo francês e actualmente num museu inglês é de quem? Em geral,
devolve-se a quem? Aos povos? Ao governo do dia, mesmo se for um governo de
ditadores, predadores e cleptómanos? Aos novos burgueses desses países? Com que
fim? Sob risco de serem vendidos mais uma vez? Destruídos?
Há
evidentemente circunstâncias em que talvez seja um dever moral. Por exemplo, se
for demonstrado que se trata de obra esbulhada. Se houver prova de pertença ou
título de propriedade. Se soubermos quem roubou, a quem e quando. Se, na altura
da apropriação, havia leis nacionais e internacionais que impediam o tráfico.
Se há a certeza de que não foram bens legitimamente comprados. Se quem vendeu o
fez livremente e não diante de ameaças. Se não houve contrabando. Se há antigos
titulares que reivindicam os seus pertences.
Há,
por outro lado, na ausência de provas de propriedade, justificações
fundamentais que aconselhariam a um exame da questão. Por exemplo, mesmo
se comprados, faria todo o sentido que os frisos do Parténon, o Grande Altar de
Pérgamo ou a Porta de Ishtar fossem devolvidos aos seus países de origem e
recolocados nos locais devidos. Há certamente muitos mais casos de bens
patrimoniais que fazem parte de um local ou de um edifício e que poderiam ser
objecto de devolução. Mas, se não houver acordo, também daí não vem mal ao mundo.
Há sempre a hipótese de fazer excelentes réplicas. O que tem a vantagem de
impedir que a história volte a pregar partidas.
Ressuscitar
nacionalismos é ridículo e perigoso. Veja-se o que aconteceria na Europa, com
tudo o que os franceses, os castelhanos, os alemães e os ingleses pilharam uns
aos outros e a todos os restantes durante séculos! Ou como os europeus
rapinaram África, Américas e Ásia.
Mais
grave e sério ainda é a teoria dos defensores da restituição. De grande parte
deles, pelo menos. Há quem queira a devolução no quadro mais amplo de um pedido
de perdão pelo colonialismo e de desculpa pelas conquistas, de penitência pela
escravatura e de arrependimento pelo domínio político. Para devolver, reclamam, é necessário rever a
história do país, repensar a colonização e considerar que esta foi um erro! E
também será necessário mostrar verdadeira contrição pelas descobertas e
garantir que não haverá mais racismo!
É
um verdadeiro delírio adolescente que criou raízes nas mentes de tão ilustres
europeus de pele branca e alma colorida. Sarar cicatrizes da História é uma
actividade que conduzirá certamente ao desastre. Tal empreendimento é
impossível, o que já é um bom argumento para não experimentar. Mas, tentado, dá
tragédia.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Fowler Fowler, 02.02.2020: Já “a hipótese de fazer excelentes réplicas” para “ter a vantagem de
impedir que a história volte a pregar partidas” faz Melina Mercouri dar voltas
na tumba e faz deste Sr., mais uma vez, um provinciano admirador dos ingleses e
do kitsch. Suspeito que nem os próprios ingleses levantam tal hipótese.
cisteina, 03.02.2020 : Como? A que "provinciano admirador" se
refere? Não percebi ... nem quero crer que se refere ao autor deste escrito,
seria péssimo e uma grande tolice censurar-lhe a opinião. Enfim, talvez não
tenha percebido bem...
Fowler Fowler, 02.02.2020: Esta excelente réplica do Velho do Restelo, vem
alertar-nos para a eventual “tragédia” caso a reivindicação da actual elite dos
países colonizados, harmonizada com outros países igualmente colonizadores,
seja discutida em sede parlamentar. Porém, resta saber se, para além do
princípio da discussão, os representantes dessa elite pretendem reivindicar
também aí a posse de objectos concretos. De qualquer modo, estou curioso por
saber se as aquisições e doações efectuadas aos nossos museus foram legítimas.
James Courtauld, 02.02.2020 : Excelente e lúcido
Jose, 02.02.2020: Confundem tudo. Uns por ingenuidade infinita como
infinita é a ignorância. Outros por manha rancorosa de bombeiros incendiários.
O cidadão comum atura uns e outros como quem atura mosquitos inevitáveis. Ao
menos há repelente.
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