Em torno de um denunciante de crimes que
não só comprometem a situação económica do país, como a honorabilidade de toda
uma nação que foi e vai permitindo o arrastar da sua investigação.
OPINIÃO
Denunciante de eventuais crimes através de leaks?
Não pode restar a ideia há muito
instalada de que há leaks bons e leaks maus, nem que alguém
é um perigosíssimo hacker ou um beatífico denunciante. A realidade
dos factos e o seu tratamento jurídico
não se compadecem com tal visão maniqueísta.
ANDRÉ LAMAS LEITE
PÚBLICO, 3 de Fevereiro de 2020
A
propósito dos leaks, tem-se discutido até que ponto a nossa lei já
consagra protecção processual ou irresponsabilidade criminal para aqueles que,
de modo ilícito, acedem a material probatório que possa ser essencial para a
prova de certos factos.
A
Lei n.º 83/2017, de 18/8, estabelece medidas de combate ao branqueamento e ao
financiamento do terrorismo, transpondo para a nossa ordem jurídica a chamada
“4.ª directiva” da UE (a 5.ª já
devia ter sido transposta até 10/1/2020, mas, no domínio aqui analisado, apenas
assegura mais garantias aos denunciantes).
Apenas
e tão-só para as entidades obrigadas aí indicadas se determina a existência de canais
de denúncia em que se protegem os denunciantes (whistleblowers),
pretendendo-se que, quem pertença a uma dada organização, em especial,
sociedade comercial, seja incentivado a comunicar a suspeita da prática de
ilícitos. Anteriores directivas já o previam.
As
instituições financeiras, os notários, os oficiais do registo, as empresas de
intermediação imobiliária e os advogados são algumas das entidades obrigadas. Quanto a estes últimos, há complexas questões de
compatibilização com o segredo profissional (que já existiam antes) e que terão
de passar por regulamentação específica.
Quem
é responsável pelo cumprimento das medidas de compliance nas
entidades obrigadas tem o dever de denúncia, sob pena de, não o fazendo,
cometer um crime. Os demais que o conheçam não são obrigados a fazê-lo, no
sentido em que não há sanção penal associada ao incumprimento.
O
denunciante tem a garantia de que “as entidades obrigadas [se] abstêm de
quaisquer ameaças ou actos hostis e, em particular, de quaisquer práticas
laborais desfavoráveis ou discriminatórias contra quem efectue comunicações,
não podendo [as mesmas], por si só, servir de fundamento à promoção pela
entidade obrigada de qualquer procedimento disciplinar, civil ou criminal
relativamente ao autor da comunicação, excepto se as mesmas forem deliberada e
manifestamente infundadas”.
O
incumprimento deste dever acarreta somente responsabilidade
contra-ordenacional, uma vez que o regime de denúncia obrigatória só existe
para órgãos de polícia criminal, autoridades judiciárias e para funcionários
(art. 386.º do CP) no exercício e por causa das suas funções. Revertendo ao
que vem sendo noticiado, Rui Pinto não se encontra em nenhuma das condições de
beneficiar deste regime: não é abrangido pela Lei citada e não impende sobre
ele qualquer dever de denúncia. Mesmo que impendesse, isso não o ilibaria da
eventual responsabilidade criminal por que está pronunciado.
Também
não é aplicável, no caso, o regime da lei de protecção de testemunhas (Lei n. 93/99,
de 14/7), em que estas últimas são definidas como “qualquer pessoa que,
independentemente º do seu estatuto face à lei processual, disponha de
informação ou de conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação
de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte um
perigo para si ou para outrem”,
dado que essas salvaguardas apenas se dirigem a quem não tenha, de qualquer
forma, praticado um ilícito relativamente aos alegados crimes de que a
testemunha teve conhecimento.
O
chamado “direito premial” já existente em diversas
normas do CP e em legislação avulsa não se aplica a Rui Pinto. Na verdade,
estamos em face de eventual dispensa ou atenuação da pena (uma vezes mesmo
obrigatória), para quem “auxiliar concretamente na recolha
das provas decisivas para a identificação
ou a captura dos responsáveis pela prática
dos factos”. Simplesmente,
a lei só o garante para quem tenha comparticipado na actividade delituosa, o
que não é o caso. Certo é que estas revelações assumidas pelo
jovem, se ele for condenado, deverão ser tidas em conta na medida da pena, no
sentido de a diminuir.
Isto
dito, há uma outra linha argumentativa a explorar: em anterior artigo aqui no
PÚBLICO, já assinalei a necessidade de se analisar a possibilidade de valoração
probatória não perdendo de vista o princípio da unidade da ordem jurídica. E,
para além disto, mesmo no Penal, se o agente exercer um direito,
estamos no âmbito de um tipo justificador que elimina a ilicitude do facto. Sem
ilicitude não há crime, visto que este é, tecnicamente, a reunião cumulativa de
uma conduta humana, típica, ilícita, culposa e punível.
No Football
Leaks, quem começou a denunciar alegados esquemas de corrupção,
entendia que, mesmo descoberta a ilicitude do acesso a tais elementos, estaria
no exercício de um direito à liberdade de informação com interesse público,
pelo que seria punido. Tudo
está em elaborar uma excruciante ponderação de interesses entre os ilícitos
anteriores à aquisição do material probatório e as vantagens comunitárias que
dele derivaram, sendo certo que não se pode afirmar que num Estado de Direito a
verdade não vale a todo o custo, para depois, pela janela, passar a admitir que
o “interesse público” tudo legitima.
Por
outras palavras, e como o STJ já tem decidido, é bem possível que, nessa
concordância prática entre direitos, se afaste o “efeito-à-distância” que já aqui no PÚBLICO descrevi. Tal importa
que os desembargadores e conselheiros, em sede de recurso e, antes, os juízes
de 1.ª instância e os procuradores, são chamados a realizar um equilíbrio
sempre discutível e que, por certo, terminará no Tribunal Constitucional.
Figuras
como o “colaborador-arrependido” ou um novo “denunciante” que possa
não ser punido ou merecer uma atenuação especial da pena quando revelar factos
essenciais para investigações criminais mexem com a arquitectura basilar da
nossa Constituição em sede processual penal. Assim,
nunca é boa conselheira a pressa em legislar em cima de casos concretos, pelo
que estou muito curioso com a noticiada proposta a apresentar pela ministra da
Justiça.
Não pode restar a ideia há muito instalada de que há leaks bons
e leaks maus, nem que alguém é um perigosíssimo hacker ou
um beatífico denunciante. A realidade dos factos e o seu tratamento jurídico
não se compadecem com tal visão maniqueísta.
Professor
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
COMENTÁRIOS
Manuel, 03.02.2020: Creio que começa a ser suspeito que a grande defensora
do rui pinto tenha acesso à informação roubada de varias origens e que lhe
permita lançar na praça pública várias suspeitas: como lançou suspeitas de
lavagem de dinheiro da Isabel dos Santos? Como lançou suspeitas sobre o slb e
Vieira, e hoje sobrr uma lista de juízes? É positivo que existam cidadãos
atentos e corajosos que denunciem, mas não pode uma sociedade de direito
fomentar a invasão da privacidade como método. O que o rui pinto parece ter
feito foi criminosamente "andar à pesca" de ilegalidades em alvos
selectivis...
Bernardo Ribeiro: este tema é daqueles em que existem 5 opiniões por cada
3 portugueses
Manel: André
Lamas Leite, simpático adepto portista, volta mais uma vez a dar mil e uma
piruetas para complexificar aquilo que é mais simples do que parece. Não há
leaks bons ou leaks maus, há a Constituição da República Portuguesa, Art. 32.,
ponto 8, quando diz "São nulas todas as provas obtidas mediante tortura,
coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão
na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações." Posto isto, não há grande volta a dar, por muita cambalhota
argumentativa que se dê. Ficamos todos à espera que o próximo artigo de
André Lamas Leite seja sobre uns famosos leaks em áudio, disponíveis
publicamente no you tube, para nos dizer se esses são bons ou maus, lícitos ou
ilícitos. Desconfio da resposta.
bento guerra: O Pinto
teve outras agendas, umas a cobrar, outras pro bono
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