O comentário aposto a este texto de Paulo Rangel, parece querer equiparar os dois
cronistas – Paulo Rangel e João Miguel
Tavares – do ponto de vista de projecção literária, merecendo o último
inúmeros comentários, ao invés do primeiro. Julgo que isso não significa menos
valia de Paulo Rangel, cuja
investigação política e sentido crítico sério apresentam uma objectividade e
rigor diferentes da irreverência subjectiva - embora moldada pela sensatez do
pensamento moral, - que atraem, naturalmente a participação dos comentadores.
Não significa, a ausência de comentários, senão uma maior dificuldade de
captação dos dados políticos ou a indiferença por estes, as críticas
provocatórias, de conteúdo social, sendo mais facilmente apreciadas porque mais
do domínio da laracha. Mas o texto de Paulo Rangel merece a nossa ponderação, pleno de dados que é, de
importância para todos nós.
OPINIÃO
Uma agenda política para o “Brexit”
Um ponto parece certo, teremos mais um
ano para caminhar em cima do fio da navalha.
PAULO RANGEL
PÚBLICO. 4 de Fevereiro
de 2020
1. Nada
se adianta ou inova, se se insistir em que o “Brexit”
representa uma enorme perda para a União Europeia. Uma perda política,
simbólica e cultural; uma perda geopolítica e estratégica; uma perda económica,
financeira e demográfica. Haverá uma Europa antes do “Brexit” e
uma Europa depois dele. Reciprocamente a
saída da União implica uma enorme perda e grandes riscos para o Reino Unido tal
como o conhecemos. A situação a que chegámos e que desembocou neste resultado é
uma situação em que as duas partes perdem. E perdem muito. A extensão e a
profundidade dos danos dependerá estreitamente do acordo que agora for
efectuado para regular e reger a relação futura. Muitos danos podem ser mitigados e minimizados.
Ou, pelo contrário, podem ser alargados e exponenciados.
2.
Na regulação da relação futura, o primeiro grande risco é o tempo. Por
força da obstinação de Boris Johnson, o período de transição termina a 31 Dezembro de
2020, o que significa se dispõe apenas de menos de 11 meses para efectuar as
negociações, chegar a um acordo e aprová-lo no parlamento britânico, nas
instituições europeias e eventualmente nos parlamentos nacionais e até
regionais dos 27 Estados-membros (porque, dependendo do conteúdo do acordo, isso
pode revelar-se necessário). Na prática, os negociadores de um lado e do
outro não disporão de mais de 5 ou 6 meses úteis. Pois bem, se houvermos
em conta que a duração média das negociações de acordos comerciais com
Estados terceiros ronda os 7 anos, é fácil antever a dimensão da tarefa que
está diante de ambas as partes. É certo que em face de parceiros como o
Canadá, o Japão ou o Vietname, trata-se de criar e construir uma plataforma
comum. Já, nas negociações com o Reino Unido, cura-se ao invés de “desfazer”
ou de excepcionar pontualmente uma plataforma que está já criada e consolidada.
Sucede, porém, que, nas declarações de ontem, o primeiro-ministro britânico deixou
claro que não pretende manter um alinhamento sistemático com os padrões
e standards europeus,
por exemplo, a nível de protecção social e ambiental. E que, por sua vez, essa é uma conditio sine que
non do lado europeu para garantir um acesso britânico pleno e não sujeito
a tarifas e outras barreiras aduaneiras.
Dadas
estas diferenças de partida e o prazo curtíssimo de negociação, o risco de este processo poder desaguar
num hard "Brexit” não pode ser descartado. São já várias as soluções provisórias, precárias ou
incompletas apresentadas para evitar a materialização desse risco. De um
acordo-quadro genérico a carecer de posteriores acordos sectórias de
concretização até à simples celebração de alguns acordos parcelares e
segmentados, que possam estar em vigor a 1 de Janeiro de 2021, muitas soluções
híbridas têm sido aventadas. Um ponto parece certo, teremos mais um ano para
caminhar em cima do fio da navalha.
3. O
grande mistério continua a ser o desígnio geopolítico do Governo britânico.
Mercê do apoio constante do Presidente Trump ao “Brexit”, era expectável que
o Governo de Johnson estabelecesse uma relação privilegiada com os EUA.
Também talvez porque são as duas economias globais que mais dependem dos
serviços. A abertura dos ingleses à chinesa Huawei deu, no entanto, um primeiro
sinal de que a relação transatlântica não seria posta à frente de tudo e deixa um indício de que já há concessões
à realpolitik. A declaração de ontem, com o elogio irrestrito do livre
comércio global e a condenação dos proteccionismos (incluindo aí o
“trumpiano”), aponta também para uma desvalorização – mesmo que táctica – da
relação preferencial com os EUA. De resto, basta olhar para a posição
quanto ao Irão para notar que, pelo menos nesse particular, os britânicos estão
mais perto da linha europeia do que da linha norte-americana. Esta ideia
de a Grã-Bretanha se tornar no campeão universal do comércio livre não permite
neste momento perceber que tipo de posicionamento acabará por vingar. Corre por
aí a ideia estranha de que subsiste a vontade de transformar as ilhas
britânicas na Singapura do Ocidente, o que também não parece coadunar-se com
esta defesa irrestrita da liberdade de comércio.
Aparentemente,
por detrás da vontade de não alinhamento com a UE, está um possível
relaxamento nas exigências sociais e ambientais de modo a incrementar a
competitividade. A confirmar-se esta orientação aumenta obviamente o risco
político interno, pois o “Brexit” foi acompanhado da promessa de um maior
investimento em políticas sociais (Serviço Nacional de Saúde, à cabeça) e a
base de apoio do actual Governo assenta em muitas circunscrições com grande
debilidade e carência social (Norte da Inglaterra, por exemplo).
4. Mais
sério e problemático é o risco de dissolução do Reino Unido, causado pela
aspiração independentista da Escócia e pelo horizonte de reunificação das duas
Irlandas. Assume-se hoje que um dos factores relevantes para o resultado do
referendo escocês de 2014 foi a perspectiva de que, uma vez independente, o
novo país estaria fora da UE. Pois bem, tendo votado por se manter no Reino
Unido e assim na UE, vê-se agora confrontado com uma saída forçada, para a
qual não contribuiu. Eis um forte argumento para fazer um novo referendo
que o Governo inglês se obstina em não autorizar. A solução que Boris
Johnson encontrou para a Irlanda do Norte e que lhe permitiu chegar a um acordo
com a UE, ela mesma já favorece a saída daquele país do Reino Unido. Na
verdade, o truque de Johnson foi aceitar um regime especial para o Ulster em
que este território fica sujeito às regras europeias enquanto que a
Grã-Bretanha fica fora delas. Num certo sentido, Johnson abdicou da
Irlanda do Norte, provavelmente antecipando que, mais tarde ou mais cedo,
haverá lugar à reunificação. Esta ambiguidade negocial criou um caldo
político que pode bem sedimentar uma vontade secessionista do Ulster, ainda
que isso possa não passar por uma imediata e simultânea reunificação com a
República do Eire.
SIM. Michel Barnier.
Depois de três anos a chefiar as negociações da saída, cabe-lhe agora liderar a
feitura do acordo do "Brexit” sobre a relação futura. Ele é a
garantia de um resultado de excelência.
NÃO. Ministro Santos Silva.
Apesar de agora querer escondê-lo, o Governo português nunca percebeu a perda
geopolítica que o “Brexit” traz a Portugal. Anda apenas a reboque da linha
geral da UE.
COMENTÁRIOS
Aguia,
04.02.2020 : No Público
online estão juntas as crónicas de Paulo Rangel e de João Miguel Tavares. Esta
última tem 44 comentários e 377 partilhas. Aquela tem 0 (zero) comentários e 22
partilhas. Não comento nenhuma. Mas constata-se que, em termos de filosofia
política que ambos defenderão - capitalismo liberal de mercado - o
"produto" que JMT vende é muito mais apelativo do que o de PR. Ora
isto é (ou devia ser, numa economia de mercado, mais consentânea neste caso com
JMT, do que com PR - supostamente "social democrata"...) uma falha
para os vendedores do produto. É certo que os OCS (órgãos de com. social) em
Portugal privilegiam nos cronistas, o estatuto e não a qualidade do produto,
mas convida-se PR a um restyling, começando por explicar a razão de dar guarida
a Juan Guaidó. Os comentários subiriam.
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