sábado, 22 de fevereiro de 2020

Ainda uma homenagem



Esta, de Alberto Gonçalves. Sincera, vê-se que o é. Mas logo atribulada pela maldade de quem, em vez de lhe reconhecer nobreza, logo deturpa as intenções do colunista, com labirínticos pretensiosismos condenatórios, de paralelismos despropositados, bem reveladores da nossa mesquinhez invejosa e tosca.
Um herói português
Uma noite, após o jantar, o Vasco soltou inadvertidamente um cliché, não recordo qual. Ficou envergonhado durante cinco minutos, e deprimido outros dez. Estas lições não têm preço.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 21 fev 2020, 21:496
Disse-o na Rádio Observador e repito aqui: Vasco Pulido Valente foi o maior escritor em português das últimas – largas – décadas. Reduzi-lo a um notável historiador, ao maior dos colunistas ou ao ocasional, e desiludido, político não será uma ofensa mas é sobretudo um desperdício.
É um desperdício não reparar no supremo domínio da língua revelado nos milhares de páginas que o Vasco publicou ao longo de meio século. E é um prazer imenso ter reparado. Um prazer e uma luz: sem o Vasco, eu dificilmente teria descoberto que o português contemporâneo podia ser assim, claro, inteligente e furiosamente atento ao indício de qualquer lugar-comum, na escrita e na vida.
Para cúmulo, sem o Vasco eu certamente não teria descoberto que a crónica jornalística podia ser assim. Por causa disso e por causa dele fiz da crónica uma espécie de ofício, dúbia bênção que pude agradecer-lhe mais do que uma vez. De todas as vezes, o Vasco reagiu à tentativa de elogio com aquela expressão que usava quando queria que uma pessoa deixasse de dizer disparates. Não eram disparates, era uma evidência de que ele, por pudor, evitava desfrutar.
Ninguém escrevia como o Vasco, poucos pensavam como o Vasco. Uma noite, após o jantar, o Vasco soltou inadvertidamente um cliché, não recordo qual. Ficou envergonhado durante cinco minutos, e deprimido outros dez. Estas lições não têm preço.
O Vasco, que jamais me deu aulas, foi o melhor professor que tive. Nunca vi alguém tão apto a identificar e a desmontar em pedacinhos o ridículo das pessoas e das situações. Arriscando um cliché deprimente, o Vasco era uma ilha de lucidez num oceano de alucinados. Era culto, brilhante, cínico, impaciente, generoso, divertido e, o que soará estranho aos que o não conheceram e a alguns que o conheceram, um homem afável. E era, convém insistir com persistência, um extraordinário escritor, dos raríssimos casos em que é possível ponderar a aplicação da palavra “genial”.
Se é muito triste que o Vasco tenha morrido, é uma sorte que tenha existido. Não sei se Portugal, que tanto o irritava e atraía, o mereceu. Hoje, porque hoje é o dia que é, vou acreditar que sim. Neste país sem heróis, o Vasco foi o meu.
COMENTÁRIOS:

Paulo Gálatas:  A crónica de Alberto Gonçalves tem o mérito de não repetir as suas cem crónicas anteriores, como as últimas cem antes desta fizeram. Desta vez o cronista não desancou nas "criaturas", não gozou da plebe, não disse que o país está irremediavelmente perdido e não se afirmou acima de tudo isso. Centrou-se no Pulido Valente. É óbvio que o admira. Toda a gente sabia do óbvio. Muitos, aliás, acusam o AG de ser um clone, fraquinho, do VPV. A crónica, em si, é amplamente exagerada. À boa maneira latina, o AG alinha na beatificação imediata dos mortos. De um vivo, nenhum português que se preze diz mais do que um pudico "não tenho nada a dizer dele". Já de um morto, nada menos do que "génio", um "herói", o "maior escritor desde o Eça"... VPV, que não tinha pachorra para semelhantes bandalheiras, seria o primeiro a ridicularizar esta e outras crónicas semelhantes. Sendo um homem obviamente inteligente e um analista brilhante, VPV nem se podia considerar um escritor, quanto mais o melhor escritor das últimas décadas. Tinha muito de mau feitio mas não tinha feitio, nem paciência, para ser herói de coisa nenhuma. Não merecia (nem quereria) as homenagens hipócritas e tolas que lhe estão a ser feitas, metade delas por gente que não suportava. Diria "bah!" E eu digo o mesmo.

Fernando Feijó: Alguns destes comentários revelam bem como somos. Por conseguinte, não passamos da cepa torta.
victor guerra: Um exagero, Gonçalves. VPV foi um diletante na vida política portuguesa. Um cínico útil à reflexão.
Josefrin Ganor: VPV fica (ou ficou) a muitos milhões de anos luz de Agostinho da Silva, esse sim o supra sumo do pensamento português das últimas – largas – décadas!

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