Esta, de Alberto Gonçalves. Sincera, vê-se que o é. Mas logo atribulada pela
maldade de quem, em vez de lhe reconhecer nobreza, logo deturpa as intenções do
colunista, com labirínticos pretensiosismos condenatórios, de paralelismos
despropositados, bem reveladores da nossa mesquinhez invejosa e tosca.
Um herói português
Uma noite, após o jantar, o Vasco soltou
inadvertidamente um cliché, não recordo qual. Ficou envergonhado durante cinco
minutos, e deprimido outros dez. Estas lições não têm preço.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 21 fev 2020, 21:496
Disse-o na
Rádio Observador e repito aqui: Vasco Pulido Valente foi o
maior escritor em português das últimas – largas – décadas. Reduzi-lo a um
notável historiador, ao maior dos colunistas ou ao ocasional, e desiludido,
político não será uma ofensa mas é sobretudo um desperdício.
É
um desperdício não reparar no supremo domínio da língua revelado nos milhares
de páginas que o Vasco publicou ao longo de meio século. E é um prazer imenso
ter reparado. Um prazer e uma luz: sem o Vasco, eu dificilmente teria
descoberto que o português contemporâneo podia ser assim, claro, inteligente e
furiosamente atento ao indício de qualquer lugar-comum, na escrita e na vida.
Para
cúmulo, sem o Vasco eu certamente não teria descoberto que a crónica
jornalística podia ser assim. Por causa disso e por causa dele fiz da crónica
uma espécie de ofício, dúbia bênção que pude agradecer-lhe mais do que uma vez.
De todas as vezes, o Vasco reagiu à tentativa de elogio com aquela expressão
que usava quando queria que uma pessoa deixasse de dizer disparates. Não
eram disparates, era uma evidência de que ele, por pudor, evitava desfrutar.
Ninguém
escrevia como o Vasco, poucos pensavam como o Vasco. Uma noite, após o jantar,
o Vasco soltou inadvertidamente um cliché, não recordo qual. Ficou envergonhado
durante cinco minutos, e deprimido outros dez. Estas lições não têm preço.
O
Vasco, que jamais me deu aulas, foi o melhor professor que tive. Nunca vi
alguém tão apto a identificar e a desmontar em pedacinhos o ridículo das
pessoas e das situações. Arriscando um cliché deprimente, o Vasco era uma
ilha de lucidez num oceano de alucinados. Era culto, brilhante, cínico,
impaciente, generoso, divertido e, o que soará estranho aos que o não
conheceram e a alguns que o conheceram, um homem afável. E era, convém insistir
com persistência, um extraordinário escritor, dos raríssimos casos em que é
possível ponderar a aplicação da palavra “genial”.
Se é muito triste que o Vasco tenha
morrido, é uma sorte que tenha existido. Não sei se Portugal, que tanto o
irritava e atraía, o mereceu. Hoje, porque hoje é o dia que é, vou acreditar
que sim. Neste país sem heróis, o Vasco foi o meu.
COMENTÁRIOS:
Paulo Gálatas: A crónica de Alberto Gonçalves tem o mérito de não
repetir as suas cem crónicas anteriores, como as últimas cem antes desta
fizeram. Desta vez o cronista não desancou nas "criaturas", não gozou
da plebe, não disse que o país está irremediavelmente perdido e não se afirmou
acima de tudo isso. Centrou-se no Pulido Valente. É óbvio que o admira. Toda a
gente sabia do óbvio. Muitos, aliás, acusam o AG de ser um clone, fraquinho, do
VPV. A crónica, em si, é amplamente exagerada. À boa maneira latina, o AG
alinha na beatificação imediata dos mortos. De um vivo, nenhum português que se
preze diz mais do que um pudico "não tenho nada a dizer dele". Já de
um morto, nada menos do que "génio", um "herói", o
"maior escritor desde o Eça"... VPV, que não tinha pachorra para
semelhantes bandalheiras, seria o primeiro a ridicularizar esta e outras
crónicas semelhantes. Sendo um homem obviamente inteligente e um analista
brilhante, VPV nem se podia considerar um escritor, quanto mais o melhor
escritor das últimas décadas. Tinha muito de mau feitio mas não tinha feitio,
nem paciência, para ser herói de coisa nenhuma. Não merecia (nem quereria) as
homenagens hipócritas e tolas que lhe estão a ser feitas, metade delas por
gente que não suportava. Diria "bah!" E eu digo o mesmo.
Fernando Feijó: Alguns destes comentários revelam bem como somos. Por conseguinte, não
passamos da cepa torta.
victor guerra: Um exagero, Gonçalves. VPV foi um diletante na vida política portuguesa. Um
cínico útil à reflexão.
Josefrin Ganor: VPV fica (ou ficou) a muitos milhões de anos luz de Agostinho da Silva,
esse sim o supra sumo do pensamento português das
últimas – largas – décadas!
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