terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Não podia perder este


O texto de João Miguel Tavares sobre Vasco Pulido Valente. Honesto e franco, como é seu hábito. E com a suficiente dose de sabedoria e inteligência críticas para apontar características salientes de um escritor pouco comum: "português, escritor, para sempre sem idade".
OPINIÃO
O humor e os humores de Vasco Pulido Valente
Os humores de Vasco Pulido Valente podem ter sido problemáticos ao longo da sua vida, mas o humor inteligente dos seus textos foi uma dádiva extraordinária ao país, que influenciou uma geração inteira de colunistas, sobretudo à direita.
PÚBLICO, 25 de Fevereiro de 2020
Vasco Pulido Valente pertencia à classe mais rara de colunistas: aquela em que a coerência dos argumentos ou a precisão das análises é um detalhe secundário face ao prazer da escrita, da ironia, ao ritmo do texto, à capacidade de formulação, à descrição cirúrgica e, muitas vezes, assassina. Os seus artigos eram um resmungar perpétuo contra os vícios da piolheira, e todas as semanas punha o país à frente do espelho da Monarquia Constitucional e da Primeira República, para mostrar, cem anos depois, os mesmos tiques, as mesmas falhas, as mesmas debilidades institucionais. Foi, de facto, o maior cronista português da segunda metade do século XX, e é por isso que os jornais se encheram de textos pesarosos por parte de inúmeros companheiros de ofício: nunca tantos deveram tanto a um só.
Não o conheci pessoalmente, nem fiz por isso, até porque conhecer gente por quem temos admiração intelectual em geral é má ideia. Falta-me paciência para pessoas com uma opinião demasiado elevada de si próprias, e a fama dos seus humores inconstantes travou a minha curiosidade. No entanto, também havia quem o conhecesse e me garantisse que ele era o contrário disso: o notável cronista Vasco Pulido Valente seria, afinal, um homem inseguro, que no seu íntimo vivia frustrado pelo grande romance que nunca escreveu e pela vasta obra de História que nunca completou. Os anos passados em aventuras políticas e a trabalhar para revistas e jornais tinham-no afastado irremediavelmente da Grande Obra, que admitia estar ao alcance da sua cultura, formação e intelecto, mas para a qual lhe tinha faltado empenho.
É possível que assim fosse. As pessoas mais inteligentes e talentosas que conheço raramente estão satisfeitas com a sua inteligência ou com o seu talento. Quando descobres ser o grande peixe no pequeno lago, apenas celebras o feito durante três meses: a partir daí passas a lamentar não seres mais do que um pequeno peixe no grande lago. Envergonhas-te de ouvir demasiadas vezes a palavra “génio” na tua terra, porque tens de cor uma lista de 100 pessoas mais brilhantes do que tu em Inglaterra ou nos Estados Unidos, e é com elas que te comparas. É um grande peso para se ter em cima dos ombros, e não são muitos os que lhe resistem, sem acabarem a beber demais, a fumar demais, e a pensar demasiado nisso.
Poupemos, pois, na palavra “génio”, que não faz bem a quem a ouve, até porque as pessoas que são muito espertas em certas coisas costumam ser bastante estúpidas noutras. E celebremos aquilo que mais importa em Vasco Pulido Valente: o facto de ter sido um dos intelectuais portugueses que mais decisivamente contribuiu para a substituição da matriz cultural francesa pela matriz cultural anglo-saxónica neste país, com poupanças assinaláveis em linguagem gongórica, argumentação barroca e hermenêutica caramelizada.
Na década de 60 houve autores que começaram a polvilhar o wit britânico e a prosa enxuta pela sua obra, de José Sesinando Palla e Carmo a José Cardoso Pires, mas foi o Pulido Valente pós-Oxford quem espalhou o wit pelos jornais, até Miguel Esteves Cardoso lhe começar a dar gás no Expresso e, depois, no Independente. Os humores de Vasco Pulido Valente podem ter sido problemáticos ao longo da sua vida, mas o humor inteligente dos seus textos foi uma dádiva extraordinária ao país, que influenciou uma geração inteira de colunistas, sobretudo à direita. Durante 40 anos não houve melhor. É provável que nos próximos 40 também não haja.
Jornalista

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