O texto de João Miguel Tavares sobre Vasco Pulido
Valente. Honesto e franco, como é seu hábito. E com a
suficiente dose de sabedoria e inteligência críticas para apontar
características salientes de um escritor pouco comum: "português, escritor, para sempre sem idade".
OPINIÃO
O humor e os humores de Vasco Pulido
Valente
Os humores de Vasco Pulido Valente
podem ter sido problemáticos ao longo da sua vida, mas o humor inteligente dos
seus textos foi uma dádiva extraordinária ao país, que influenciou uma geração
inteira de colunistas, sobretudo à direita.
PÚBLICO, 25 de Fevereiro de 2020
Vasco
Pulido Valente pertencia à classe mais rara de colunistas: aquela em que a
coerência dos argumentos ou a precisão das análises é um detalhe secundário
face ao prazer da escrita, da ironia, ao ritmo do texto, à capacidade de
formulação, à descrição cirúrgica e, muitas vezes, assassina. Os seus artigos eram um resmungar perpétuo contra os
vícios da piolheira, e todas as semanas punha o país à frente do espelho da
Monarquia Constitucional e da Primeira República, para mostrar, cem anos
depois, os mesmos tiques, as mesmas falhas, as mesmas debilidades
institucionais. Foi, de facto, o maior
cronista português da segunda metade do século XX, e é por isso
que os jornais se encheram de textos pesarosos por parte de inúmeros
companheiros de ofício: nunca tantos deveram tanto a um só.
Não
o conheci pessoalmente, nem fiz por isso, até porque conhecer gente por quem
temos admiração intelectual em geral é má ideia. Falta-me paciência para
pessoas com uma opinião demasiado elevada de si próprias, e a fama dos seus
humores inconstantes travou a minha curiosidade. No entanto, também havia quem
o conhecesse e me garantisse que ele era o contrário disso: o notável
cronista Vasco Pulido Valente
seria, afinal, um homem inseguro, que no seu íntimo vivia frustrado pelo grande
romance que nunca escreveu e pela vasta obra de História que nunca completou. Os anos passados em aventuras políticas e a trabalhar
para revistas e jornais tinham-no afastado irremediavelmente da Grande Obra,
que admitia estar ao alcance da sua cultura, formação e intelecto, mas para a
qual lhe tinha faltado empenho.
É
possível que assim fosse. As pessoas mais
inteligentes e talentosas que conheço raramente estão satisfeitas
com a sua inteligência ou com o seu talento. Quando descobres ser o grande
peixe no pequeno lago, apenas celebras o feito durante três meses: a partir daí
passas a lamentar não seres mais do que um pequeno peixe no grande lago.
Envergonhas-te de ouvir demasiadas vezes a palavra “génio” na tua terra, porque
tens de cor uma lista de 100 pessoas mais brilhantes do que tu em Inglaterra ou
nos Estados Unidos, e é com elas que te comparas. É um grande peso para se ter
em cima dos ombros, e não são muitos os que lhe resistem, sem acabarem a beber
demais, a fumar demais, e a pensar demasiado nisso.
Poupemos,
pois, na palavra “génio”, que não faz bem a quem a ouve, até porque as pessoas
que são muito espertas em certas coisas costumam ser bastante estúpidas
noutras. E celebremos aquilo que mais importa em Vasco Pulido Valente: o facto
de ter sido um dos intelectuais portugueses que mais
decisivamente contribuiu para a substituição da matriz cultural francesa pela
matriz cultural anglo-saxónica neste país, com poupanças assinaláveis em
linguagem gongórica, argumentação barroca e hermenêutica caramelizada.
Na
década de 60 houve autores que começaram a polvilhar o wit britânico e a prosa
enxuta pela sua obra, de José Sesinando Palla e Carmo a José Cardoso Pires, mas
foi o Pulido Valente pós-Oxford quem espalhou o wit pelos jornais, até Miguel
Esteves Cardoso lhe começar a dar gás no Expresso e, depois, no Independente.
Os humores de Vasco Pulido Valente podem ter sido problemáticos ao longo da sua
vida, mas o humor inteligente dos seus textos foi uma dádiva extraordinária ao
país, que influenciou uma geração
inteira de colunistas, sobretudo à direita. Durante 40 anos não
houve melhor. É provável que nos próximos 40 também não haja.
Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário