Percurso por uma História social das
últimas quatro décadas e meia neste país de parca consistência racional, na
explosão de ditames sucessivos colhidos no acaso pretensioso de novas doutrinas, vindas de fora, com a função de nos demarcarem da saloiada retrógrada do
conservadorismo, provando a nossa muita inteligência e a muita “humanidade” progressista
de novos “guardadores dos rebanhos”, rebanhos esses constituídos pelos tais do “efectivamente”,
receosos de parecerem menos sábios se não enfileirarem nas propostas de
alteração, de acordo com o que surge de novidade lá fora. Um regalo de crónica
mordaz, esta de Helena Matos, impaciente
com a
presunção, hipócrita ou subserviente, de uns e de outros, de facto apenas
provocatória e desestabilizadora.
Racismo,
dizem eles e os “efectivamente” concordam /premium
Passos Coelho foi o “africanista de
Massamá”. Também tivemos o “escurinho do FMI” e a “África é dos africanos”. Foi
isto racismo? Perguntem aos “efectivamente”.
OBSERVADOR, 02 fev 2020
Esta semana os “efectivamente”, essa
gente que só entra nas polémicas com um livre-trânsito passado pelo
progressismo, mal podiam sair de casa com tanta explicação: era o problema de
André Ventura ter escrito “Eu proponho que a própria deputada Joacine seja
devolvida ao seu país de origem”, a que se juntava o problema da devolução do património dos nossos museus e
arquivos (será que se pode dizer nossos?), sem esquecer a questão que os vai
atormentar nas próximas semanas: como tomar posição contra a eutanásia sem
correr o risco de ser considerado reaccionário?
Agora
não há dia em que os “efectivamente” não sintam necessidade de mostrar a sua
repulsa por André Ventura, mas daqui por umas semanas para aí andarão
frenéticos a demarcar-se do bode expiatório então de turno até porque, como é
mais que certo, a propósito da eutanásia, alguém, entre os que se lhe opõem,
escreverá ou dirá algo de menos cauteloso ou menos certo. E de imediato, não o
duvido, logo começará o ciclo do “não, antes pelo contrário”, “de modo algum”…
e será quase com alívio que, antes que Fevereiro acabe, a eutanásia será
aprovada porque assim, pelo menos por uns tempos, não se terá de tomar partido,
e os “efectivamente” terão algum sossego.
Habituada
que estou ao exercício diário desta penitência, confesso que às vezes ainda há
situações que pelo seu absurdo me surpreendem. Por exemplo, como entender, o
clima de “eu condeno mais e melhor que tu” criado em torno das declarações de
André Ventura sobre a deputada Joacine, quando em Portugal temos
aproximadamente um milhão de pessoas referidas prosaicamente como retornados? O que é
um retornado senão um devolvido ao seu país mesmo que, como acontecia no caso,
muitos nunca tivessem vindo ao país para que os mandavam retornar?
Ora
os mesmos que em 1974 acharam que a “devolução” de um milhão de pessoas era tão
natural, inevitável e justa que até lhes chamaram retornados, impedindo que
fossem designadas como refugiados, pretendem agora que é um crime de racismo
André Ventura ter escrito a propósito da proposta da devolução do património
das ex-colónias portuguesas feita pelo Livre, “Eu proponho que a própria
deputada Joacine seja devolvida ao seu país de origem. Seria muito mais tranquilo
para todos… inclusivamente para o seu partido! Mas sobretudo para Portugal!” Se pesquisarmos nos debates parlamentares
constataremos que a frase não tem nada que a destaque de tantas outras trocadas
entre deputados, e nem sequer estou a incluir nesta lista os debates entre
Sousa Tavares e Jerónimo de Sousa!
Todo
este folclore só é possível porque, com a pressa de obterem o salvo-conduto
diário, os “efectivamente” são os primeiros e os mais veementes participantes
das ondas de indignação lançadas pelos activistas de turno. Não interessa que
as novas causas sejam contraditórias entre si e com as causas anteriores e até
que os respectivos activistas digam uma coisa e façam o seu contrário: a
esquerda que agora vislumbra racismo em todas as palavras proferidas à direita
do PS, trauteou e trauteia uma canção de intervenção intitulada “Independência”
que afirma nada mais nada menos que isto: “África é dos africanos/ Já chega
quinhentos anos/ Já chega quinhentos anos/ A África é dos africanos” e os
socialistas trataram Passos Coelho como “africanista de Massamá”. Também
tivemos o “escurinho do FMI” na versão de Arménio Carlos, Alberto João
Jardim “Bokassa” no retrato que dele fez Jaime Gama, os brasileiros que
deviam regressar ao Brasil porque tinham votado em Bolsonaro…
Nada nestas polémicas tem de ter a
mínima substância. O que
conta é o seu potencial de agitação.
Por exemplo, a intenção de devolver o património às ex-colónias
além da constrangedora pergunta – onde estão em Angola, Moçambique ou Guiné, os
grandes museus dedicados a preservar o património dos seus povos? Não vão dizer que estão por construir à espera das
poucas centenas de peças que estão em Lisboa, pois não? – traduz-se em quê
exactamente? Portugal devolve o quê a Cabo Verde que nem sequer era povoado?
E o Brasil devolve o que a corte para lá levou na fuga da família real ou
fica por conta dos diamantes que vieram para Lisboa? De caminho, a França
devolve o que nos pilhou durante as invasões ou só se fazem devoluções para
África? Recordo que aquando das invasões, os franceses chegaram a
Portugal com cientistas e listas do que havia para levar e de facto levaram –
a alternativa a essa selecção era o saque casa a casa como aconteceu em
Évora entre 29 e 30 de Julho de 1808 – Mas como várias das peças que os
franceses levaram de Portugal e agora exibem nos seus museus tinham sido
recolhidas nas colónias portuguesas, a devolução será feita directamente a
essas colónias ou a Portugal? E se for feita às antigas colónias,
os destinatários desses objectos serão os museus (esses produtos do
colonialismo!) ou os descendentes das tribos onde vários desses artefactos
foram produzidos? Convém lembrar que a questão das devoluções não é apenas um
assunto entre estados, pois muitas destas devoluções colocam frente a frente os
direitos dos povos nativos contra os direitos dos estados em que vivem… E por
fim, mas não menos importante, o património que os retornados deixaram em
África vai ser-lhes pago ou devolvido?… Nada disto faz sentido. Mas esta
insanidade hiperactiva veio para ficar e durar porque aqui serve os propósitos
políticos dos donos da situação e em África limpa a imagem dos cleptocratas que
por ali governam.
Gostava
de escrever que dentro de alguns anos, todo este circo estará desactivado e a
deputada Joacine, segundo ela mesma escolhida por ser negra e gaga, vai ser
olhada com a ironia agora reservada ao deputado da UDP na Constituinte, Américo
Duarte, escolhido por ser operário.
Mas não arrisco tal cenário porque aquilo que temos pela frente neste
momento não é a rejeição de um modelo de sociedade, como aconteceu no Portugal
de 1975 em que Américo Duarte pretendia levar os fascistas
para o Campo Pequeno.
Aquilo que agora está em causa não é
uma revolução mas sim o esboroar da sociedade em que vivemos. O corroer dos
seus valores. A luta de classes como motor da revolução deu lugar à luta de
raças/minorias/etnias/grupos como motor da destruição. A utopia trágica da
sociedade sem classes deu lugar ao pragmatismo decadente da sociedade
tribalizada. E daí a minha impaciência com os “efectivamente”: num processo
revolucionário o confronto acaba por ser violento pelo que os “efectivamente”
acabam a ter de fazer escolhas ou assistem aos outros fazendo-as por si. Já num
processo de esboroamento como aquele que vivemos os “efectivamente” podem
acabar a jogar um papel decisivo. E negativo. Porque de cada vez que acham que
a questão não é a verdadeira questão ou que sendo a verdadeira questão não
devia ser colocada daquele modo ou que devendo ser colocada daquele modo não o
foi no momento adequado… acabam a dar o poder aos que efectivamente reconhecem
como os donos da situação: os que há décadas nos impedem de viver em paz e sossego
numa das sociedades mais justas e tolerantes que a civilização criou, os
estados democráticos do Ocidente. Estes venceram o comunismo mas receio que
sejam derrotados pela tribalização.
PS. “António Costa alertou que a descida do IVA da luz
para 6% representa 800 milhões de euros por ano, o que é insustentável
financeiramente.” Provavelmente será. Mas em 2016 baixar o IVA na restauração
foi sustentável ou apenas uma decisão populista cuja factura estamos agora a
pagar?
COMENTÁRIOS
António Vasconcelos: Parabéns Helena pela coragem.
Fez-me lembrar algo que, há uns anos, foi escrito por um dos homens mais
odiados no Brasil, sobre os seus "efectivamente". http://olavodecarvalho.org/a-sindrome-de-al-capone/
MCMCA: Retrato perfeito de uma sociedade doente.
Pedro Ferreira: Excelente artigo. Bom domingo a todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário