domingo, 23 de fevereiro de 2020

Sociedade anestesiada



Aquela em que vivemos, em grande parte habituada quer aos efeitos seguros de drogas, que libertam da consciência como da dor, ou a outros impactos prazerosos que vão contribuindo para um deslizar da vida mais distanciado das habituais asperezas, quer a uma doçura virtuosa e disponibilidade para a defesa dos mais carenciados, (mas tendo, como contrapartida, o lançamento da imediata pedra contra os outros, os ávidos responsáveis pelas discrepâncias sociais profundamente repulsivas, ainda que o não sejam). A eutanásia enquadra-se bem nestas fórmulas definidoras da modernidade: a anestesia contra a dor, o carpe diem favorecedor do prazer, uma acefalia generalizada libertadora de responsabilidade, um carinho de aparência virtuosa, na realidade, um frio desejo de libertação de pesos sociais. E o ódio ressabiado contra a espécie humana, que se nota na resposta do comentador final à pergunta de outro comentador do sereno e justo texto de Paulo Rangel, que apenas mereceu dois comentários apoiantes, apesar da justeza da sua análise:
Pergunta: Proíbe-se o assassinato de animais, mas abre-se aos seres humanos! Não valem as pessoas muito mais do que os animais?
Resposta: Não. Valem exactamente o mesmo.
Uma resposta viciada de preconceito e falsidade, a menos que o Terráqueo, que a produz, se não desfaça dos parasitas que porventura alguma vez lhe povoaram ou povoarão o corpo, preferindo preservá-los como algo tão valioso como ele próprio, dentre a fauna universal. Creio que terá razão, em todo o caso, no caso próprio, como digno exemplar de fauna equiparável entre si, com perdão para os demais exemplares dessa outra.

OPINIÃO
Eutanásia: insisto, um sereno “não”
Ao debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento.
18 de Fevereiro de 2020, 6:23
Todos já lidámos, estamos a lidar ou teremos de lidar, de uma maneira ou de outra, junto dos que amamos e dos que simplesmente nos rodeiam, com a morte, a doença, o sofrimento. Todos conhecemos situações dificílimas e duríssimas de doença (terminal ou não), de enorme sofrimento físico e psíquico, de quase total alienação ou ausência de um nosso próximo. São situações muito complexas e delicadas, que mexem com o mais fundo de nós, com a essência da humanidade e da vida, com as mais belas e as mais sombrias emoções e convicções. Não devemos nem podemos arrumar a questão da vida e da morte, da doença e do sofrimento, do amor e da compaixão, da dignidade e da indignidade, do humano e do desumano, num debate redutor e simplista, num dogmatismo lauto e primário. Creio que devemos fazer silêncio, falar baixinho, estudar, conhecer, pensar, ponderar, sentir, respirar. Ouvir, ouvir e escutar, escutar. E pacientemente, serenamente, deixar que a consciência – não no sentido de “com ciência” ou “com saber”, mas no sentido de “ciência com”, de “saber com”, de “saber com o outro”, de “sageza partilhada”, de “sentido comum”, de “ciência fraterna e solidária” – nos fale, nos murmure, nos interpele.
2. Nem tudo é eutanásia
Este processo de escuta e debate é especialmente difícil, por haver muita confusão conceitual, muito “tribalismo” de rede social e muito, mas mesmo muito, preconceito. Muitíssimos dos casos que tantos julgam cair ou recair no domínio da eutanásia consubstanciam afinal situações pacíficas de recusa de tratamento excessivo e desnecessário, que, a ocorrer, redundariam em pura obsessão terapêutica.
3. Não há direito à morte
Disseminou-se a ideia – e também a terminologia (as palavras fazem caminho e imprimem “carisma”) – de que, entre os direitos e as liberdades, figuraria um direito de nova geração, um direito de “última geração”: o direito à morte. Não vislumbro como filosófica, antropológica ou juridicamente possa subsistir um tal “direito”, uma símile “liberdade”. Argumenta-se habitualmente com o suicídio, que seria uma liberdade individual e cuja tentativa não é sequer punida pela ordem jurídica. Se o suicídio fosse uma liberdade, se a pessoa tivesse o direito de se matar, então deveria ter também o direito de pedir a morte – alega-se. Eis o fundamento e o substrato do direito à morte. Mas o suicídio não é nem uma liberdade nem um direito. É uma mera possibilidade fáctica. Tal como o homicídio, que, sendo proibido, nem por isso deixa de ser cometido. Quando a ordem jurídica não pune a simples tentativa de suicídio, isso não significa que reconheça a liberdade da pessoa se matar. Não. Ela não pune a tentativa de suicídio – o suicídio falhado –, porque a pena a aplicar seria ineficaz e contraproducente. Como é óbvio, prender alguém que se tentou suicidar em nada contribuiria para evitar e combater o suicídio. Não há um direito a morrer por acção própria. Muito menos deve aceitar-se um direito a morrer por acção alheia.
4. Dignidade vs. Indignidade
Muitos dos que defendem a eutanásia legalizada põem a questão no patamar da dignidade, da morte digna ou indigna. Mas vale a pena meditar sobre esta dicotomia “digna-indigna”. Ninguém, nenhum ser humano, perde dignidade por estar doente, por ter uma deficiência, por estar incapaz, por estar agonizante. Continua a ser uma pessoa, um semelhante, um próximo, em tudo igual aos demais e, em especial, na sua dignidade enquanto ser humano. Haverá decerto sofrimento que nos parece intolerável, inaceitável e absolutamente injusto, mas ele em nada reduz a dignidade da condição humana. Não há mortes dignas nem indignas, porque a dignidade está na pessoa que morre, não no acto ou no processo da morte, por mais violento ou trágico que este se afigure.
5. O exercício prático: riscos e irreversibilidade
De um ponto de vista prático, a maior objecção à eutanásia é a sua irreversibilidade. Argumento que, aliás, em caso diverso – o da proibição da pena de morte – ajuda a convencer muitos dos que até aceitariam a pena capital. Para a eutanásia, porque é morte, não há remédio nem reversão. A eutanásia, nunca é demais lembrá-lo, é sempre irreversível. Que garantias temos da lucidez e consciência do pedido? Que garantias temos da absoluta fidelidade daqueles que a aceitam executar? Que vemos nós nas experiências comparadas da Bélgica e da Holanda? O risco de extensão informal das situações permitidas e de normalização ou banalização são óbvios. O risco de abusos e de enganos também. E mais, sistemicamente, que dizer da evolução de um serviço nacional de saúde que ofereça como solução plausível a eutanásia?
6. O argumento “ad terrorem”: a religião
É triste a disseminação do argumento “papão” de que quem está contra a legalização da eutanásia está dominado por uma visão religiosa e sagrada da vida. Pode até estar, alguns estarão, e se estiverem, qual é o mal? Têm todo o direito a estar. Mas quem está a favor da eutanásia também tem uma concepção da vida e uma mundividência pessoal, religiosa ou para-religiosa, que quer fazer valer no espaço público, impondo a sua concepção moral, filosófica ou antropológica.
7. Um “não” sereno
Por tudo isto e muito mais que não cabe aqui, no dia em que celebro a vida, renovo, quase com as mesmas palavras, o que outrora escrevi: sou serenamente contra a eutanásia. Ao debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento português, de alguns dos seus partidos e deputados. Esta não é uma questão de sacristia, mas não pode passar a ser uma simples questão de secretaria.
8. Para lá do tempo e do espaço
Noutra dimensão, já fora da conjuntura espácio-temporal, fica um juízo do nosso tempo, da voragem, da vertigem, da materialidade, do utilitarismo, dos tabus. Não será afinal tudo isto um afloramento de um desejo ancestral, humano e paradoxalmente religioso, de matar a morte?
SIM Marega. O gesto inédito e corajoso de abandonar o terreno de jogo em nome do valor da igualdade entre todas as pessoas, qualquer que seja a sua raça, é um enorme serviço ao país e ao desporto.
SIM Tozé Martinho. Um dos grandes impulsionadores da ficção nacional, como argumentista e como actor. A televisão portuguesa não seria mesma sem a sua paixão e, já agora, a sua discrição.

COMENTÁRIOS:
paula.o.rego.442120, 19.02.2020: Um revoltado não, à hipocrisia discursiva de todos quantos se opõem ao direito ao não sofrimento do próximo e a isso chamam direito à vida. Como já alguém disse, não querem, não usem.
José Manuel Martins, 18.02.2020: este imenso chorrilho retórico fica de fora do único bastião que, no seu catolicismo laico bafiento, queria poder conquistar como a uma alma ganha para as hostes da salvação: precisamente, o bastião inviolável e impenetrável de uma alma que diga, não uma, mas cinco vezes, diante de um quadro objectivamente terminal determinado por terceiros - 'quero morrer já'. É, a liberdade é um mistério, desde logo porque talvez nem exista, e apesar disso passe a vida a exercer-se quando menos se espera. A liberdade não pertence às tuas gavetinhas das doutrinas, é um poço sem fundo, deixa-a estar e cala-te, em seu nome. Todo este linguarejar de salamandra rondante tenta desviar a atenção do centro do alvo inviolável: nem tu nem deus nem ninguém nada podem, diante de um ser que se é a si próprio.
Nuno Gonçalves, 18.02.2020: eutanásia de uma semana? Peço imensa desculpa, mas a verdade é que quem passa por um cancro terminal, infelizmente morre sem dignidade. Para evitar suicídios dessas mesmas pessoas que têm doenças terminais, a Eutanásia devia sim, ser aceite mas com um conjunto de regras e normas, que não fizesse dela algo banal. Eu sou inteiramente a favor da Eutanásia!
viana, 18.02.2020: adormecer e impedir uma decisão legítima da AR. "Como é óbvio, prender alguém que se tentou suicidar em nada contribuiria para evitar e combater o suicídio." Não?! É mais fácil alguém suicidar-se estando numa prisão vigiado 24h por dia, ou em liberdade? Não nos tome por parvos! "Não há mortes dignas nem indignas" Sabe que está a mentir. A morte de alguém que morre tentando salvar a vida de outro não é mais digna que a morte de alguém que morre a tentar matar outro?... O resto é mais do mesmo, para tentar adiar uma decisão porque lhe interessa. Apenas e só.
António Cunha, 18.02.2020: a dormir há tempo demais!
Colete Amarelo, 18.02.2020: Mais uma vez um discurso platónico e generalista a tentar decidir como se deve enfrentar a realidade num caso bem específico.
Caetano Brandão, 18.02.2020: Paulo Rangel, insisto serenamente: vá durante uma semana ver o cenário que encontra na maior parte dos hospitais portugueses. Entre nas enfermarias sobretudo de medicina interna. Quando sair, senão for estupido que acho que não é, vai pensar com os seus botões: muito antes de chegar a esta situação em que só lhe resta um corpo que respira e mal, espero que já tenham legalizado uma pilula para eu tomar antes de chegar aqui...
Pedotec, 18.02.2020: O argumento ad nauseam. O Paulo Rangel quer sofrer até ao fim quando chegar a altura dele? Ninguém o impede.Não pode é forçar os outros, num processo em que julga ter uma superioridade moral que o torna um chato. Embrulha repetidamente os mesmos argumentos de forma diferente, quando é evidente que o que lá está é o conceito da Vida-dom- de-deus. Que, felizmente, já não convence muita gente.
Joao2, 18.02.2020: Mais um ao serviço da Opus Dei.
Joao Garrett, 18.02.2020: Excelente artigo, muito obrigado. Está aqui tudo dito. Tudo o que se tem passado e vai passar a partir da próxima quinta-feira ficará para a História e será um testemunho do nosso tempo para memória futura. A menos que... decidam vir a reescrevê-la...
Antonio Leitao, 18.02.2020: Ponto por ponto: 1) Aplica-se tanto a quem é contra como a quem é a favor da eutanásia. 2) Mesma razão acima. 3) Se é uma possibilidade sem penalização, é um direito. O suicídio poderia perfeitamente ser criminalizado e ter outra penalização que não a cadeia. 4) A dignidade/indignidade está aos olhos de quem a sofre: a eutanásia não força uma visão única de dignidade a ninguém nem considera indigno quem sofre. 5) Ao contrário da pena de morte, a eutanásia é praticada sobre si mesmo, e não sobre outrem que quer viver. Contra a banalização, vide caso IVG. 6) O mal de ter uma visão religiosa é querer imputá-la aos outros. 7) Falta maturação ao debate quando nos convém e desconsiderar o parlamento é uma tática anti-democrática. 8) Fica também o juízo da liberdade contra o dogma.
João Cunha, 18.02.2020: Para quem sofre e quer deixar (em definitivo!) de sofrer talvez a pressa faça sentido e qualquer atraso seja incompreensível! E quanto ao comentário de Baptista Santos, é precisamente por as pessoas valerem muito mais do que os animais que devem ter o direito de decidir por si, sem leis ou médicos a interferir, se querem ou não continuar a viver/sobreviver.
Baptista Santos, 18.02.2020: Proíbe-se o assassinato de animais, mas abre-se aos seres humanos! Não valem as pessoas muito mais do que os animais?
Terráqueo, 18.02.2020: Não. Valem exactamente o mesmo.

Nenhum comentário: