Aquela em que vivemos, em grande parte habituada
quer aos efeitos seguros de drogas, que libertam da consciência como da dor, ou
a outros impactos prazerosos que vão contribuindo para um deslizar da vida mais
distanciado das habituais asperezas, quer a uma doçura virtuosa e disponibilidade
para a defesa dos mais carenciados, (mas tendo, como contrapartida, o
lançamento da imediata pedra contra os outros, os ávidos responsáveis pelas
discrepâncias sociais profundamente repulsivas, ainda que o não sejam). A eutanásia enquadra-se bem
nestas fórmulas definidoras da modernidade: a anestesia contra a dor, o carpe diem favorecedor do prazer, uma
acefalia generalizada libertadora de responsabilidade, um carinho de aparência
virtuosa, na realidade, um frio desejo de libertação de pesos sociais. E o ódio
ressabiado contra a espécie humana, que se nota na resposta do comentador final
à pergunta de outro comentador do sereno e justo texto de Paulo Rangel, que apenas mereceu dois comentários
apoiantes, apesar da justeza da sua análise:
Pergunta: Proíbe-se
o assassinato de animais, mas abre-se aos seres humanos! Não valem as pessoas
muito mais do que os animais?
Resposta: Não.
Valem exactamente o mesmo.
Uma resposta viciada de preconceito e
falsidade, a menos que o Terráqueo, que a produz, se não desfaça dos
parasitas que porventura alguma vez lhe povoaram ou povoarão o corpo,
preferindo preservá-los como algo tão valioso como ele próprio, dentre a fauna
universal. Creio que terá razão, em todo o caso, no caso próprio, como digno
exemplar de fauna equiparável entre si, com perdão para os demais exemplares
dessa outra.
OPINIÃO
Eutanásia: insisto, um sereno “não”
Ao debate português, falta maturação,
pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do
Parlamento.
18
de Fevereiro de 2020, 6:23
Todos
já lidámos, estamos a lidar ou teremos de lidar, de uma maneira ou de outra,
junto dos que amamos e dos que simplesmente nos rodeiam, com a morte, a doença,
o sofrimento. Todos conhecemos situações dificílimas e duríssimas de doença
(terminal ou não), de enorme sofrimento físico e psíquico, de quase total alienação
ou ausência de um nosso próximo. São situações muito complexas e delicadas, que
mexem com o mais fundo de nós, com a essência da humanidade e da vida, com as
mais belas e as mais sombrias emoções e convicções. Não devemos nem podemos
arrumar a questão da vida e da morte, da doença e do sofrimento, do amor e da
compaixão, da dignidade e da indignidade, do humano e do desumano, num debate
redutor e simplista, num dogmatismo lauto e primário. Creio que devemos
fazer silêncio, falar baixinho, estudar, conhecer, pensar, ponderar, sentir,
respirar. Ouvir, ouvir e escutar, escutar. E pacientemente, serenamente, deixar
que a consciência – não no sentido de “com ciência” ou “com saber”, mas no
sentido de “ciência com”, de “saber com”, de “saber com o outro”, de “sageza
partilhada”, de “sentido comum”, de “ciência fraterna e solidária” – nos fale,
nos murmure, nos interpele.
2. Nem tudo é
eutanásia
Este
processo de escuta e debate é especialmente difícil, por haver muita
confusão conceitual, muito “tribalismo” de rede social e muito, mas mesmo
muito, preconceito. Muitíssimos dos casos que tantos julgam cair ou recair
no domínio da eutanásia
consubstanciam afinal situações pacíficas de recusa de tratamento excessivo
e desnecessário, que, a ocorrer, redundariam em pura obsessão terapêutica.
3. Não há
direito à morte
Disseminou-se
a ideia – e também a terminologia (as palavras fazem caminho e imprimem
“carisma”) – de que, entre os direitos e as liberdades, figuraria um direito
de nova geração, um direito de “última geração”: o direito à morte. Não
vislumbro como filosófica, antropológica ou juridicamente possa subsistir um
tal “direito”, uma símile “liberdade”. Argumenta-se
habitualmente com o suicídio, que seria uma liberdade individual e cuja
tentativa não é sequer punida pela ordem jurídica. Se o
suicídio fosse uma liberdade, se a pessoa tivesse o direito de se matar, então
deveria ter também o direito de pedir a morte – alega-se. Eis o fundamento e o substrato do direito
à morte. Mas o suicídio não é nem uma liberdade nem um direito. É uma
mera possibilidade fáctica. Tal como o homicídio, que, sendo proibido, nem por
isso deixa de ser cometido. Quando a ordem jurídica não pune a simples
tentativa de suicídio, isso não significa que reconheça a liberdade da pessoa
se matar. Não. Ela não pune a tentativa de suicídio – o suicídio falhado
–, porque a pena a aplicar seria ineficaz e contraproducente. Como é óbvio,
prender alguém que se tentou suicidar em nada contribuiria para evitar e
combater o suicídio. Não há um direito a morrer por acção própria. Muito
menos deve aceitar-se um direito a morrer por acção alheia.
4. Dignidade
vs. Indignidade
Muitos
dos que defendem a eutanásia legalizada põem a questão no patamar da dignidade,
da morte digna ou indigna. Mas vale a pena meditar sobre esta
dicotomia “digna-indigna”. Ninguém, nenhum ser humano, perde dignidade
por estar doente, por ter uma deficiência, por estar incapaz, por estar
agonizante. Continua a ser uma pessoa, um semelhante, um próximo, em tudo igual
aos demais e, em especial, na sua dignidade enquanto ser humano. Haverá
decerto sofrimento que nos parece intolerável, inaceitável e absolutamente
injusto, mas ele em nada reduz a dignidade da condição humana. Não há mortes
dignas nem indignas, porque a dignidade está na pessoa que morre, não no acto
ou no processo da morte, por mais violento ou trágico que este se afigure.
5. O exercício
prático: riscos e irreversibilidade
De
um ponto de vista prático, a maior objecção à eutanásia é a sua irreversibilidade. Argumento que, aliás, em caso diverso – o da
proibição da pena de morte – ajuda a convencer muitos dos que até aceitariam a
pena capital. Para a eutanásia, porque é morte, não há remédio nem reversão.
A eutanásia, nunca é demais lembrá-lo, é sempre irreversível. Que
garantias temos da lucidez e consciência do pedido? Que garantias temos da
absoluta fidelidade daqueles que a aceitam executar? Que vemos nós nas
experiências comparadas da Bélgica e da Holanda? O risco de extensão informal das situações
permitidas e de normalização ou banalização são óbvios. O risco de abusos e de
enganos também. E mais, sistemicamente, que dizer da evolução de um serviço
nacional de saúde que ofereça como solução plausível a eutanásia?
6. O argumento “ad terrorem”: a religião
É triste a disseminação do argumento “papão” de que quem está contra
a legalização da eutanásia está dominado por uma visão religiosa e sagrada da
vida. Pode até estar, alguns estarão, e se estiverem, qual é o mal? Têm todo o
direito a estar. Mas quem está a favor da eutanásia também tem uma concepção da
vida e uma mundividência pessoal, religiosa ou para-religiosa, que quer fazer
valer no espaço público, impondo a sua concepção moral, filosófica ou
antropológica.
7. Um “não” sereno
Por
tudo isto e muito mais que não cabe aqui, no dia em que celebro a vida, renovo,
quase com as mesmas palavras, o que outrora escrevi: sou serenamente
contra a eutanásia. Ao
debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento
português, de alguns dos seus partidos e deputados. Esta não é uma
questão de sacristia, mas não pode passar a ser uma simples questão de
secretaria.
8. Para lá do tempo e do espaço
Noutra dimensão, já fora da conjuntura espácio-temporal, fica um juízo
do nosso tempo, da voragem, da vertigem, da materialidade, do utilitarismo, dos
tabus. Não será afinal tudo isto um afloramento de um desejo ancestral, humano
e paradoxalmente religioso, de matar a morte?
SIM Marega. O gesto
inédito e corajoso de abandonar o terreno de jogo em nome do valor da igualdade
entre todas as pessoas, qualquer que seja a sua raça, é um enorme serviço ao
país e ao desporto.
SIM Tozé Martinho.
Um
dos grandes impulsionadores da ficção nacional, como argumentista e como actor.
A televisão portuguesa não seria mesma sem a sua paixão e, já agora, a sua
discrição.
COMENTÁRIOS:
paula.o.rego.442120, 19.02.2020: Um revoltado não, à hipocrisia discursiva
de todos quantos se opõem ao direito ao não sofrimento do próximo e a isso chamam
direito à vida. Como já alguém disse, não querem, não usem.
José Manuel Martins, 18.02.2020: este imenso chorrilho retórico fica de
fora do único bastião que, no seu catolicismo laico bafiento, queria poder
conquistar como a uma alma ganha para as hostes da salvação: precisamente, o
bastião inviolável e impenetrável de uma alma que diga, não uma, mas cinco
vezes, diante de um quadro objectivamente terminal determinado por terceiros -
'quero morrer já'. É, a liberdade é um mistério, desde logo porque talvez nem
exista, e apesar disso passe a vida a exercer-se quando menos se espera. A
liberdade não pertence às tuas gavetinhas das doutrinas, é um poço sem fundo,
deixa-a estar e cala-te, em seu nome. Todo este linguarejar de salamandra
rondante tenta desviar a atenção do centro do alvo inviolável: nem tu nem deus
nem ninguém nada podem, diante de um ser que se é a si próprio.
Nuno Gonçalves, 18.02.2020: eutanásia de uma semana? Peço imensa
desculpa, mas a verdade é que quem passa por um cancro terminal, infelizmente
morre sem dignidade. Para evitar suicídios dessas mesmas pessoas que têm
doenças terminais, a Eutanásia devia sim, ser aceite mas com um conjunto de
regras e normas, que não fizesse dela algo banal. Eu sou inteiramente a favor
da Eutanásia!
viana, 18.02.2020: adormecer e impedir uma decisão legítima
da AR. "Como é óbvio, prender alguém que se tentou suicidar em nada
contribuiria para evitar e combater o suicídio." Não?! É mais fácil alguém
suicidar-se estando numa prisão vigiado 24h por dia, ou em liberdade? Não nos
tome por parvos! "Não há mortes dignas nem indignas" Sabe que está a
mentir. A morte de alguém que morre tentando salvar a vida de outro não é mais
digna que a morte de alguém que morre a tentar matar outro?... O resto é mais
do mesmo, para tentar adiar uma decisão porque lhe interessa. Apenas e só.
António Cunha, 18.02.2020: a dormir há tempo demais!
Colete
Amarelo, 18.02.2020: Mais
uma vez um discurso platónico e generalista a tentar decidir como se deve
enfrentar a realidade num caso bem específico.
Caetano Brandão, 18.02.2020: Paulo Rangel, insisto serenamente: vá
durante uma semana ver o cenário que encontra na maior parte dos hospitais
portugueses. Entre nas enfermarias sobretudo de medicina interna. Quando sair,
senão for estupido que acho que não é, vai pensar com os seus botões: muito
antes de chegar a esta situação em que só lhe resta um corpo que respira e mal,
espero que já tenham legalizado uma pilula para eu tomar antes de chegar
aqui...
Pedotec, 18.02.2020: O argumento ad nauseam. O Paulo Rangel
quer sofrer até ao fim quando chegar a altura dele? Ninguém o impede.Não pode é
forçar os outros, num processo em que julga ter uma superioridade moral que o
torna um chato. Embrulha repetidamente os mesmos argumentos de forma diferente,
quando é evidente que o que lá está é o conceito da Vida-dom- de-deus. Que,
felizmente, já não convence muita gente.
Joao Garrett, 18.02.2020: Excelente artigo, muito
obrigado. Está aqui tudo dito. Tudo o que se tem passado e vai passar a partir
da próxima quinta-feira ficará para a História e será um testemunho do nosso
tempo para memória futura. A menos que... decidam vir a reescrevê-la...
Antonio Leitao,
18.02.2020: Ponto por ponto: 1) Aplica-se tanto a
quem é contra como a quem é a favor da eutanásia. 2) Mesma razão acima. 3) Se é
uma possibilidade sem penalização, é um direito. O suicídio poderia
perfeitamente ser criminalizado e ter outra penalização que não a cadeia. 4) A
dignidade/indignidade está aos olhos de quem a sofre: a eutanásia não força uma
visão única de dignidade a ninguém nem considera indigno quem sofre. 5) Ao
contrário da pena de morte, a eutanásia é praticada sobre si mesmo, e não sobre
outrem que quer viver. Contra a banalização, vide caso IVG. 6) O mal de ter uma
visão religiosa é querer imputá-la aos outros. 7) Falta maturação ao debate
quando nos convém e desconsiderar o parlamento é uma tática anti-democrática.
8) Fica também o juízo da liberdade contra o dogma.
João Cunha,
18.02.2020: Para quem sofre e quer deixar (em definitivo!)
de sofrer talvez a pressa faça sentido e qualquer atraso seja incompreensível!
E quanto ao comentário de Baptista Santos, é precisamente por as pessoas
valerem muito mais do que os animais que devem ter o direito de decidir por si,
sem leis ou médicos a interferir, se querem ou não continuar a
viver/sobreviver.
Baptista Santos, 18.02.2020: Proíbe-se o assassinato de animais, mas
abre-se aos seres humanos! Não valem as pessoas muito mais do que os animais?
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