No extraordinário livro “Mémoires d’Hadrien” de Marguerite Yourcenar, faz este, às
portas da morte, o relato do seu percurso de uma vida extrema de realização,
que, todavia, reconhece cinicamente a nulidade da glória humana, perante o médico
que lhe assiste aos progressos da doença: “Il
est difficile de rester empereur en présence d’un médecin, et difficile aussi
de garder sa qualité d’homme”. Não se trata, é claro, no caso da moderna eutanásia,
de se ser imperador ou vilão. A doença reduz o ser humano, que fica a mais, na
sociedade. Mas outros factores há a ter em conta, que são astutamente marginalizados:
o peso económico, por exemplo, desses que envelhecem numa boa, sobrecarregando
os novos com as suas reformas incomportáveis, prolongadas para além do
programado, quando para elas descontaram. Os velhos são um peso, os doentes
terminais também, mas os cientistas têm culpa no prolongamento da vida. Os que
se afadigam em torno dos que estão a mais, com falsos pretextos de comiseração
pela dor, fingem que é por humanidade que impõem a lei da “morte assistida” e
não passa isso de truque blandicioso. E a sociedade dos que se encarregam dos
destinos da nação, decide limpar-lhes realmente o sebo a esses que “estão
mexendo no seu bolso”, contrariando preceitos protectores dos cientistas, e
pensando, sobretudo, nos seus próprios arranjinhos vivenciais, antes da sua própria assinatura eutanásica.
Mas cito os versos latinos do Imperador
Adriano, que Marguerite Yourcenar reproduz em epígrafe:
“Animula vagula, blandula / Hospes
comesque corporis, / Quae nunc abibis in loca / Pallidula, rígida, nudula, /
Nec, ut soles, dabis iocos” (Pequena
alma terna flutuante, companheira e hóspede do corpo agora se prepara para
descer a lugares pálidos, árduos, nus, onde não terás mais os devaneios
costumeiros).
Servem eles para mostrar que a vida é
pertença de cada ser com alma, e que a imposição da morte assistida é pura
balela criminosa de uma sociedade que vai perdendo paulatinamente a razão e o
sentimento, quer por falta de leituras, e conversão ao mundo mecânico, quer por
excesso de leituras e conversão ao mundo do pedantismo desumanizante, quer por
cobardia institucional, imposta pelas almazinhas benfeitoras blandiciosas...
Mas leiamos mais um texto, este sobre
Marcelo. De Helena Pereira, sobre os
interesses do Presidente e da sua “animula
vagula blandula”…
Os 70% de Marcelo
Há
alguns meses, as presidenciais de Março de 2021 eram olhadas com pouco
interesse, como um passeio para Marcelo. Mas, na política, como na vida, tudo
pode mudar de um momento para o outro.
HELENA PEREIRA
PÚBLICO, 14 de Fevereiro de 2020
Em que é que a última directiva da procuradora-Geral da
República, o referendo à eutanásia e Ana Gomes se cruzam? A resposta é Marcelo
Rebelo de Sousa. Os três podem
vir a ser pedras bicudas no sapato do Presidente que sonha ser reeleito com
mais dos 70,35% dos votos que os portugueses deram a Mário Soares em 1991.
1.
Entre a
possibilidade de um referendo que trave a eutanásia ou o veto
político do diploma (que é certo que será aprovado no Parlamento na próxima
semana), o Presidente da República preferirá a primeira hipótese. Nessa
perspectiva, Marcelo não necessitaria de irritar o eleitorado de esquerda em
vésperas de eleições presidenciais e veria resolvido aquilo que a seu ver é um
problema. Porém, a realização de um referendo não será aceite pela maior parte dos deputados e,
por isso, a decisão deverá caber a Marcelo que nem sequer poderá contar com
grande ajuda do Tribunal Constitucional. O futuro elenco do plenário do
Palácio Ratton será mais à esquerda e o Presidente da República sabe que as
hipóteses do diploma sobre a eutanásia ser declarado inconstitucional diminuem
drasticamente. A única forma de o debate sobre a eutanásia não prejudicar
as contas presidenciais de Marcelo seria os partidos de direita arrastarem as
audições - há já vozes a pronunciarem-se nesse sentido - e prolongarem o
processo para a próxima sessão legislativa.
2. É
a assinatura de Marcelo Rebelo de Sousa que consta na nomeação de Lucília Gago como procuradora-geral da República, em Setembro
de 2018, embora sob proposta de António Costa, cuja carta a Presidência oportunamente
divulgou na sua página na Internet. Quando a actual procuradora-geral
faz uma directiva que inflama os magistrados do Ministério Público e lança a
suspeita de se poder proteger políticos, é também Marcelo Rebelo de Sousa que
fica sob fogo. Se Lucília Gago não recuar em toda a linha (esta semana, houve um
primeiro passo), o Presidente será chamado a intervir de forma mais
enérgica, tal como já se percebeu pela entrevista do
secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
ao PÚBLICO. Como o novo parecer que a procuradora-geral pediu ao Conselho
Consultivo poderá demorar alguns meses, este será portanto mais um tema que
pode ficar adiado para o final do ano, já a bater com a campanha para as
presidenciais.
3.
Há alguns meses, as eleições presidenciais de Março de 2021 eram olhadas com
pouco interesse, como sendo um passeio para Marcelo, a confirmar-se a sua
apresentação de recandidatura (o tabu só será desfeito em Outubro). Na
política, como na vida, tudo pode mudar rapidamente de um momento para o outro
e foi o que aconteceu. O CDS, que estava disposto a apoiar Marcelo, mudou de
líder e de ideias. O PS, que preparava terreno para dar o “sim” a Marcelo,
ameaça deslaçar-se com apelos
sucessivos a uma candidatura de Ana Gomes. E, pelo meio, até surgiu
uma nova candidatura populista e xenófoba, a de André Ventura, do Chega.
70,35%
dos votos em 2021? A aritmética não facilita. Mas, também é certo, tudo pode
mudar rapidamente de um momento para o outro.
TÓPICOS POLÍTICA OPINIÃO LUCÍLIA GAGO PROCURADORIA-GERAL
DA REPÚBLICA MINISTÉRIO PÚBLICO PRESIDENTE DA REPÚBLICA MARCELO REBELO DE SOUSA
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