As observações finais de Francisco Assis, e assim teríamos uma crónica impecável
de riqueza e elegância crítica.
Lembro-me de ter gostado, talvez pela
primeira vez, do discurso que me pareceu objectivo, de Rui Rio, nesse dia do Orçamento. Nos de Jerónimo de Sousa e de Catarina Martins não notei diferenças dos anteriores, na
fraseologia, suficientemente espertos ambos para defenderem qb o seu tacho, e
de caminho os tachitos dos seus apaniguados, por conta do apoio que dão a um
governo que lhes vai piscando o olho afável, do seu savoir faire “piscado”.
OPINIÃO
Os afectos contra a política
O partido que esteve melhor no IVA da
electricidade foi o BE. Projectou um ar de seriedade, o que já não é pouco nos
tempos que correm.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 8 de
Fevereiro de 2020
“No reino do kitsch exerce-se
a ditadura do coração. (…) O kitsch faz-nos vir duas lágrimas de emoção aos
olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita, crianças a
correr num relvado!
A segunda diz: Que coisa bonita,
comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num
relvado! Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja o kitsch. (…) O
kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e de
todos os movimentos políticos.” Milan
Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
Milan
Kundera é um dos espíritos mais lúcidos que a Europa produziu nos últimos
cinquenta anos. Romancista
de génio permite-nos, através da sua obra, aceder à compreensão dos aspectos
mais recônditos e complexos do tempo que vivemos. A Insustentável Leveza do Ser projectar-se-á decerto no futuro como
um dos livros de referência da segunda metade do século XX europeu.
Na
citação em epígrafe Kundera elabora uma magistral reflexão sobre a natureza
do discurso político prevalecente na época contemporânea. Esse discurso
adquiriu características absolutamente patológicas nos regimes totalitários
comunistas. Kundera aborda a questão de modo soberbo neste livro. Não é
esse, porém, o tema que nos interessa agora. Tão pouco nos importa abordar o conceito
designado pela palavra kitsch, palavra de origem alemã que se foi
progressivamente disseminando como sinónimo de uma vulgaridade pretensiosa
destinada a apelar a emoções fáceis e superficialmente compartilháveis.
Kundera
confronta-nos com um dos principais problemas que se colocam ao discurso
político numa democracia de massas: a propensão para o culto de um
registo emotivo que tem o condão de se reproduzir infinitamente anulando, quase
inadvertidamente, a dimensão crítica que só a inteligência garante. No mundo da pan-afectividade, nessa dimensão peculiar
onde nos estamos sempre a emocionar com as nossas próprias emoções e com as dos
outros, deixa de haver lugar para os dois pilares essenciais que são, por um
lado, o pensamento e, por outro lado, a realidade. Ambos são
demasiado rugosos, contêm demasiados abismos e remetem para demasiadas
indeterminações para poderem caber nesse magma de emoções básicas.
Tudo isto se acentuou radicalmente com o advento das redes sociais. No grande mar das paixões e dos afectos coabitam o
angelical apelo a uma certa unicidade sentimentalista e ferozes disputas de
carácter quase puramente passional. Em lugar do espaço público imaginado
e concretizado pelas sociedades demo-liberais, e amplamente aprofundado pelo
contributo de correntes mais radicalmente democráticas, temos
agora um espaço semi-público e semi-privado onde prevalecem narcisismos de toda
a espécie e particularismos tribais fechados a qualquer tipo de disputa
argumentativa. Em 1983
Milan Kundera desconhecia o glorioso mundo das selfies. Hoje em dia é quase só
nesse mundo que nos movemos.
Num
texto publicado recentemente Paulo
Tunhas faz uma
consideração deveras interessante acerca da relação entre duas atitudes de
espírito, a ironia e a gravidade, que habitualmente são percebidas como quase
antitéticas. Na sua perspectiva, elas devem ser entendidas, e
sobretudo praticadas, como complementares. Justifica-o de forma muito incisiva:
a ironia sem a gravidade origina o cinismo; a gravidade sem a ironia gera a
pomposidade. Nos últimos
dias, ao assistir ao debate parlamentar sobre o Orçamento do
Estado, dei
comigo a projectar esta consideração de Paulo Tunhas nos discursos e nos
comportamentos dos deputados de vários quadrantes políticos. Ao fim de uma
escassa hora tornara-se-me evidente a pertinência do seu raciocínio. Com
raríssimas excepções, os discursos dos nossos representantes oscilam entre o
cinismo próprio de quem verdadeiramente já não acredita em nada e a pomposidade
característica de quem acredita cegamente em tudo aquilo em que acredita. Não parece haver nenhuma frincha por onde entre o
ar puro da ambiguidade, da abertura ao contraditório, da aceitação de um módico
de incerteza. É certo que o debate político, por definição
agonístico, tende sempre a uma polarização nos limites do excessivo. Contudo, o que surpreende agora é a forma tão
linear como tudo isto acontece. Tudo parece resumir-se a um
confronto, ora entre bandos de fanáticos, ora entre viciados no puro jogo da
política, entendida esta como uma esfera destituída de qualquer referência
exterior a ela própria.
Isso
ficou particularmente visível no debate sobre a questão do IVA da
electricidade. Do
Governo e dos seus partidários ouviram-se declarações de uma ridícula
pomposidade; de quase todos os demais partidos políticos surgiram sinais de um
cinismo desenfreado. O PCP levou
esse cinismo tão longe que acabou por se enredar em atitudes e em declarações
patéticas. Curiosamente, ou até talvez não, o partido que esteve melhor sob
todos os pontos de vista foi o Bloco de Esquerda. Projectou um ar de seriedade,
o que já não é pouco nos tempos que correm.
Militante
do PS
COMENTÁRIOS:
henrique
Mota, 08.02.2020
: Excelente análise, como sempre. Merecia melhor título
... afectos será a palavra mais adequada?
AndradeQB, 08.02.2020: Mesmo que não sejam artigos destes que
motivem mais leituras dos jornais, são seguramente os que justificam a sua
existência. É que a dispensa de pensamento e de olhar a realidade é algo
transversal às redes sociais e à generalidade das notícias e artigos de opinião
de jornalistas. Rara é a notícia fiel aos factos e raro é o artigo de opinião
suportado em mais do que no mundo particular de quem o escreve. Aqui, como
sempre, a raridade vale ouro.
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