Também serve na mortalha. De um país em
estado de catalepsia. Mas que nunca Nuno
Pacheco se cale. É só o que me lembra dizer. Com um entusiasmo
jamais esmorecido. Pelo menos enquanto não chegar a hora da assinatura ao
documento da minha própria eutanásia…
OPINIÃO
A ortografia do português e a estranha
história do prédio pintado de roxo
Vai ser discutida na AR uma
iniciativa cidadã para repor a ordem ortográfica. Não bastam três países para
validar um acordo: ou todos ou nenhum.
PÚBLICO, 20 de Fevereiro de 2020,
Há histórias verdadeiramente
exemplares. Querem ouvir uma?
Num prédio de oito andares e várias famílias, estabeleceu-se um método simples
para as coisas do condomínio: cada andar designava um delegado e, reunidos os
oito, propunham o que lhes parecia ser sensato. Era o comité. Mas depois, para
que a coisa fosse mesmo democrática, as propostas do comité iam a votos em cada
andar, as famílias assinavam um papel e só quando os oito papéis estavam na mão
do fiel depositário escolhido (o vizinho do rés-do-chão) é que se avançava. E
assim iam os lixos, as floreiras, a ventilação, a limpeza das escadas, a
manutenção dos elevadores.
Um
dia, o comité teve uma ideia brilhante: pintar o prédio de roxo. Todo,
de alto a baixo. As cores originais oscilavam entre o creme, o rosa velho, umas
molduras azuladas em torno das janelas e um enorme, mas já esbatido, desenho de
arte pública numa das empenas. Quanto aos interiores, originalmente em branco,
já disputavam cores ao arco-íris. A proposta do comité era radical: acabar
com a anarquia cromática, não fosse a personalidade do prédio desintegrar-se.
Assim, ficaria roxo por fora, sendo os interiores apenas brancos ou
cinzentos. Uniformidade cromática no exterior, dupla coloração (uma
facultatividade!) nos interiores. Esta mudança tinha ainda um pressuposto: a
aprovação prévia de um Regulamento da Cor. Deste modo, evitavam-se anarquias
futuras, salas verde-alface ou às florinhas, sabia-se lá.
O
vizinho do rés-do-chão exultou e correu a colher assinaturas. O do último
andar, idem. Mas tardava a papelada. E do Regulamento, nada. Um desespero para
o comité, que já tinha encomendado as tintas. Sete anos passados, o comité
tentou outra estratégia: dispensava-se para já o regulamento. Talvez
assim assinassem. Resultado nulo. Então o comité lançou mão de um ardil:
propôs, e fê-lo por escrito, que bastavam as assinaturas de três andares
para pôr as trinchas em marcha. Assim foi: quatro andares assinaram, com muitas
trapalhadas de nomes e datas à mistura, e o prédio pôs-se roxo. Ainda hoje,
passados anos, andam a bater à porta dos resistentes, trinchas na mão,
gritando: “Não resistam mais! Branco ou cinzento! É a lei!” Face ao silêncio,
não desarmam: “Leiam, leiam! Está tudo na nota explicativa!”
Ou todos ou nenhum
A história deste prédio imaginário
replica a do chamado Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa. Assinado
em 1991, esteve a marinar até 1998, ano em que um protocolo modificativo lhe
dispensou a data inicial de entrada em vigor (1994) e a existência prévia de um
“regulamento” (um vocabulário ortográfico comum),
mantendo, no entanto, que tinham de assinar todos (artigo 3.º): “[o
AO90] entrará em vigor após depositados os instrumentos de ratificação de todos os
Estados junto do Governo da República Portuguesa.” Como não resultasse,
inventaram em 2004 um segundo protocolo onde o artigo 3.º foi redigido assim: “[o AO90] entrará
em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto
da República Portuguesa.” O roxo do prédio foi um acordo
impingido a 8 por via de apenas 4, e com datas muito duvidosas, como
já aqui pormenorizadamente se escreveu e documentou.
O
que diz, a este respeito, a Convenção de Viena de 1969 (em vigor na ordem
internacional desde 27/1/1980 e que Portugal ratificou em 6/2/2004)? Que “a
adopção do texto de um tratado efectua-se pelo consentimento de todos os
Estados participantes na sua elaboração” (art.º 9.º) e
que a sua entrada em vigor (art.º
24.º) se faz “nos
termos e na data nele previstos ou acordados” ou, na falta destes, “logo que o
consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os
Estados que tenham participado na negociação.” Por todos. Convém dizer
ainda que a Convenção de Viena vigora em Portugal desde 7 de Março de 2004,
antes da assinatura do segundo protocolo modificativo do AO90 (27 Julho de
2004).
Por
isto, que não é pouco, há-de ser discutida na Assembleia da República uma iniciativa legislativa
de cidadãos (ILC-AO)
com 21.206 subscritores e já admitida em 2019 como projecto de lei. O que
pretende? A revogação da Resolução da AR n.º 35/2008, de 29 de Julho
que aprovou o texto do segundo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico. Ou
seja: que o prédio não possa ser pintado de roxo só com o acordo de metade dos
inquilinos.
Ora o que se passou foi o
contrário, violando os pressupostos do próprio AO90 e as regras da Convenção de
Viena de 1969 que Portugal ratificou. Independentemente de se gostar ou não do
conteúdo do AO90 (que, repita-se, é um erro com coisas, não uma coisa com
erros), um mínimo de decência obrigaria a cumprir a regra de “ou todos, ou
nenhum”.
Com Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau e Timor-Leste de fora; e com Portugal, Brasil, Cabo Verde e São
Tomé e Príncipe dados como “ratificadores”, mas com práticas duvidosas
(bastantes “buracos” no processo e uma “aplicação” ainda contestada,
incentivadora de múltiplos erros e, em muitos lugares e instituições, ainda
rejeitada ou simplesmente ignorada), impõe-se ao menos anular a “regra três”:
ou todos ou nenhum! Para que o
roxo seja, apenas, a cor da vergonha de quem decidiu corromper as regras da
democracia para impor a sua vontade.
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